Pochmann: Brasil, cinco séculos de rentismo

Breve balanço da captura da riqueza nacional, seja pelo uso da terra ou capital financeiro. A tônica: parasitismo socioambiental e globalização subordinada que corroem a soberania – e reduzem economia a entreposto do comércio exterior

Imagem: Acervo Museu Paulista
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O fim da Guerra Fria (1947-1991) favoreceu a globalização, impulsionada pelo poder das grandes corporações transnacionais em arbitrar o custo do trabalho no mundo. O conjunto de reformas patrocinadas pelo receituário neoliberal desde o Consenso de Washington (1989) derrubou o sistema de barreiras protetivas nacionais herdado do período do segundo pós-guerra mundial.

Pela crescente liberalização da mobilidade do capital e também pelo movimento migratório, a capacidade de resistência sindical se contraiu, fazendo avançar a Divisão Internacional do Trabalho cada vez mais assimétrica. No caso brasileiro, a via da especialização da produção e exportação de commodities perseguida desde o ingresso na globalização em 1990 se viabilizou pela superexploração da força de trabalho, desmonte da competência de planejamento do Estado e devastação ambiental.

Através disso, a maioria política protagonizada pelos interesses das classes sociais proprietárias se fixou na extração da renda tanto pelo capital financeiro como pelo uso da terra (mineração, agropecuária, petróleo e outros). Para David Ricardo (Princípios de economia política e de tributação, 1817), o sentido econômico do rentismo decorria da existência de segmentos sociais que, ao deterem posses obtidas de formas variadas e até pela violência, viveriam de renda sem produzir benefícios socioeconômicos.

No Brasil, a trajetória do rentismo foi concebida por Manoel Bomfim como parasitismo social, próprio da modalidade de integração dos interesses econômicos nativos com parcela da Europa e dos Estados Unidos (Manoel Bomfim, América Latina: males de origem, 1903). É neste sentido que se pode compreender a formação do segmento primário exportador durante a colonização, cuja presença do exclusivismo comercial lusitano prevaleceu entre os séculos 16 e 18.

Em 1808, com abertura dos portos patrocinada como dádiva de D. João VI ao protetorado britânico, o comércio externo passou a se deslocar rapidamente de Portugal. Entre as décadas de 1820 e 1880, por exemplo, a metade das importações brasileiras vinha da Inglaterra, enquanto 1/3 do total das exportações do Brasil eram adquiridas pelos ingleses.

Com a primeira Guerra Mundial (1914-1918), o domínio inglês perdeu força, permitindo que as relações comerciais brasileiras com os Estados Unidos se intensificassem. A partir da década de 1920, os EUA se tornam o principal parceiro do comércio externo brasileiro, o que modificou a conduta nacional (que até então estava muito mais próxima da Europa), com a nova difusão interna do estilo de consumo estadunidense.

Entre as décadas de 1920 e 1970, por exemplo, os Estados Unidos absorveram quase a metade das exportações brasileiras, sendo que o Brasil recebia quase a mesma proporção de importados provenientes daquele país. Com o dólar enfraquecido desde o abandono de sua conversibilidade ao ouro e diante das recorrentes medidas de ajuste econômico para tentar manter a hegemonia estadunidense, a economia brasileira foi profunda e negativamente afetada desde os anos de 1980.

O resultado disso foi o esvaziamento da presença dos EUA no comércio externo brasileiro. Se no ano de 1960, por exemplo, quase 45% de tudo o que o Brasil exportava se destinava aos Estados Unidos, no ano de 2000 mal alcançou 25% das vendas externas brasileiras.

Paralelamente, o comércio externo foi se diversificando entre várias nações, deslocando-se dos países do Norte Global para o Sul Global. Mas foi com a China que o Brasil avançou mais, a tal ponto que, na crise financeira global gerada pelos EUA em 2007-09, passou a ser o principal parceiro comercial do país.

Desde então e cada vez em maior proporção, o comércio externo transitou para o Oriente, centro do dinamismo econômico global. Não somente o Brasil exporta cada vez mais commodities para aquele país como as importações de produtos de maior valor agregado e conteúdo tecnológico provêm da China.

Tendo em vista as concessões nacionais ao ingresso passivo e subordinado à globalização, com o avanço da superexploração do trabalho, esvaziamento do Estado e ampliação da degradação ambiental, a temática da feitoria vem à tona. Não se trataria, evidentemente, das características de feitorias próprias do longevo e passado colonialismo mercantil, quando prevaleciam os entrepostos comerciais instalados nas áreas litorâneas pelos portugueses, recebendo a produção escravista proveniente das grandes fazendas organizadas por logística, armazéns e alfândega governada pelo feitor que regia o comércio externo.

A metáfora da feitoria moderna agora decorre da constatação de que a realidade brasileira se afasta do potencial econômico e social que poderia ocupar como nação soberana, portadora de sistema produtivo avançado, complexo e integrado. Em resumo, uma sociedade superior, não a que se percebe decorrer cada vez mais rebaixada pela direção nacional imposta por classes proprietárias de extração da renda financeira e do uso da terra no Brasil.

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