Will Smith, a covid e as nossas urgências

As reações ao tapa no Oscar lotaram as redes com opiniões discrepantes. Exaustos pela pandemia, só nos restou um consenso: a distração dos temas de fato urgentes. Mas teremos aprendido que o trauma requer cuidado, não evitação?

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Por Eduardo Guimarães

Título original: Respostas rápidas em tempos urgentes

Já faz alguns dias que as redes sociais entraram em ebulição com a cena do tapa desferido por Will Smith em Chris Rock na comemoração do Oscar 2022. Rapidamente, representantes dos mais diferentes pontos de vista se manifestaram a respeito daquele ato, fosse para revelar seu sentido, para justificá-lo, para condená-lo, para absolvê-lo ou mesmo para ironizá-lo. De modo surpreendente, surgiram compreensões tão díspares que por algum momento era possível questionar se se tratava do mesmo evento.

Chegaram a legitimar o tapa, dizendo se tratar de uma defesa da mulher negra. Mas também disseram que Will Smith havia sido machista, pois imediatamente tomou a defesa da mulher negra para si, como se essa mulher não pudesse se defender. Não faltou quem afirmasse que o tapa era uma defesa da instituição familiar ou quem enxergasse em Will Smith um modelo de masculinidade. Claro que também surgiram condenações à conduta do ator estadunidense, mas também houve as condenações das condenações, dizendo que aquelas primeiras condenações eram orientadas pelo princípio de cortesia da moralidade burguesa e que a violência pode, sim, ser legítima naquele caso.

A enorme variedade de perspectivas sobre o tapa no Oscar 2022 nos mostra o quanto esse evento foi profundamente esvaziado de qualquer significado. A cena de Will Smith pode ser aproximada da palavra “trem”, para os mineiros. Essa palavra pode assumir tantos e tão variados significados que podemos cogitar se tratar de uma palavra sem significado nenhum. Da mesma forma, por ser capaz de agradar conservadores e progressistas, direitistas e esquerdistas, e por ser capaz de desagradar conservadores e progressistas, direitistas e esquerdistas, podemos dizer que o tapa de Will Smith, talvez por algum período de tempo, não tem nenhum sentido – ou pode ter qualquer um.

A agitação e a atenção em torno desse evento me fizeram pensar se não se tratava de mais uma cortina de fumaça. Seria possível que nosso presidente havia tramado uma cena entre o ator e o comediante para distrair os brasileiros dos problemas mais urgentes que os afetam? Dessa vez, não. Não foi necessário promover intencionalmente uma cortina de fumaça, pois parece que ela nunca foi levantada: temos vivido em uma cortina de fumaça constante.

A cortina de fumaça tem nos feito evitar temas políticos e sociais urgentes, como a suspeita de corrupção no Ministério da Educação, então liderado por Milton Ribeiro, e a pandemia. E é sobre a pandemia que tem se falado cada vez menos. A proliferação das vacinas e a redução da quantidade de mortos e contaminados têm conduzido a uma espécie de retorno à vida que se vivia antes – como se isso fosse realmente possível. Utilizamos a palavra retorno por sua facilidade de entendimento e comunicação, mas não há como regressar a experiências de convívio direto e de trabalho presencial sem as marcas impostas pela pandemia em cada um de nós.

Para alguns, a pandemia intensificou o isolamento e a solidão que já operavam antes dos primeiros casos. Para outros, mobilizou um forte desejo de apertar os laços com os amigos e os familiares. Ainda há aqueles que sofrem com os sintomas pós-covid, como problemas respiratórios e de memória, assim como também alguns questionam o motivo de pessoas queridas terem sido ceifadas tão cedo, tão repentinamente, tão violentamente.

A pandemia foi uma experiência traumática para todos – mesmo para os negacionistas, por mais estranho que isso possa parecer. E o trauma, quando não devidamente elaborado, tende a se repetir infinitamente. É necessário erguer marcos de memória para que não nos esqueçamos daquilo que deve ser lembrado – e deve ser lembrado para que o negacionismo e a política genocida do atual presidente não se repitam mais, para que não sejamos mais surpreendidos com um tapa na cara tão sem sentido e tão violento.

Provavelmente, estejamos tão cansados das restrições que nos foram impostas e do medo de ser contaminados e de morrer que ansiamos, com todas as forças, distrações que nos ajudem a nos retirar da monotonia avassaladora que tomou conta de nós durante a pandemia. Talvez, queiramos celebrar e nos esquecer das tristezas vivenciadas durante esses dois anos. Ou ainda: pretendemos viver como não estávamos podendo viver antes e, depois de recuperarmos nossas forças, fazer um balanço do modo como a pandemia nos afetou coletiva e individualmente.

Nesse momento, demandamos cuidado. As múltiplas interpretações a respeito de Will Smith – e, também, de Jada Pinkett Smith e Chris Rock – raramente levaram em consideração que todos eles – e nós – demandamos cuidado, demandamos ser escutados. Silenciar o outro não é somente impedir a fala do outro, mas também impor ao outro um sentido definitivo e independente daquilo que ele mesmo fala de si. Se estamos cuidando de nossas dores da mesma forma como estamos cuidando da vida dos envolvidos no evento no Oscar 2022, então é possível dizer que estamos longe de ter aprendido alguma coisa sobre cuidar e escutar. As experiências traumáticas surgidas durante a pandemia continuarão, como fantasmas errantes, a nos assombrar – seja individualmente, seja coletivamente.

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Um comentario para "Will Smith, a covid e as nossas urgências"

  1. José Mario Ferraz disse:

    A fim de ser enganada, a humanidade foi conduzida a tamanho torpor mental que vulgaridades lhe são importantes.

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