Uma autópsia do Ocidente
Reflexões sobre a deriva do ser humano até os tempos atuais de policrises. Raiz está no ethos ocidental, na substituição do viver matrístico pela dominação da Natureza. Isso sedimentou o patriarcado: a princípio, pela força bruta; depois, pela dominação do mercado
Publicado 17/04/2025 às 18:38

“Certas estruturas, por viverem muito tempo,
tornam-se elementos estáveis
de uma infinidade de gerações:
embaraçam a história, incomodam-na,
e assim comandam seu fluxo.”
(Fernand Braudel)
“O Ocidente? Um possível sem futuro.”
(Emil Cioran)
O Ocidente governa o conflituoso mundo humano desde tempos imemoriais. Seu ideário milenar, que compreende todo um conjunto de crenças, valores, costumes, hábitos, tradições, apropriações, tecnologias, inovações, guerras, domínios e, sobretudo, sua perene “destruição criativa”, é talvez o principal indutor cultural do modo de viver do Homo sapiens moderno. O Ocidente que proporcionou a uma parcela significativa da população mundial progressos fabulosos, geradores de bem-estar material e de aumento da expectativa de vida dos seres humanos, é o mesmo Ocidente que escravizou, praticou exclusões, opressões, desigualdades e genocídios, inventou e utilizou armas de destruição em massa e arrastou toda a humanidade para os atuais impasses da perturbação climática planetária e da iminência de conflito geopolítico nuclear global.
Por isso, os ideais do Ocidente sempre carregaram, mais do que esperanças, muitas contradições, ambiguidades e aflições. Como bem deduziu o escritor romeno Emil Cioran (1911-1995), o filósofo do desespero, em um de seus amargos silogismos, “mil anos de guerras consolidaram o Ocidente; um século de ‘psicologia’ pôs-lhe a corda no pescoço”. Deveríamos, portanto, diante da situação de policrise terminal que marca o agônico tempo presente, investigar em profundidade as suas origens, os seus mecanismos de indução do comportamento humano e, sobretudo, a sua hoje inequívoca incapacidade de assegurar a continuidade do tortuoso curso civilizatório.
Neste início do século XXI, após o modo de viver ocidental ter conquistado todos os povos do planeta, mediante a expansão do sistema-mundo capitalista, por meio do fenômeno da globalização patrocinada pelo neoliberalismo high tech, essa inarredável conflituosidade que caracteriza o modo milenar de viver do Homo sapiens moderno esbarrou no seu paroxismo, ou melhor, no seu esgotamento, refletido especialmente em três principais impossibilidades civilizatórias que sintetizam o ápice do conflito Ocidente versus Natureza (ou versus Realidade). São elas:
1) as mudanças climáticas e o acelerado e aparentemente irrefreável processo de aquecimento do planeta, que em 2024 alcançou o perigoso patamar de 1,55 ºC acima dos níveis pré-industriais (1850-1900), ultrapassando o 1,5 ºC estipulado no Acordo de Paris (meta que deveria ser inegociável face à ameaça existencial implicada nessa aceleração, pois houve um salto de 0,4 ºC só nos últimos dois anos), evidenciando que estamos imersos e à deriva num processo de colapso ambiental, cuja aceleração ganha agora em 2025 um novo adepto de peso, o segundo (des)governo de Donald Trump que prometeu em seu discurso de posse: “vamos perfurar, perfurar e perfurar.”
Aliás, o retorno de Trump – agora sob o influxo do avanço global e irrefreável de uma extrema direita iliberal e salvacionista – pode estar encerrando irrecuperavelmente o período do Estado-nação (secular e liberal) como regulador civilizatório, assim como a Revolução Francesa pôs fim ao absolutismo mercantilista europeu. Este 2025 provavelmente será considerado no futuro o ano em que o destino das civilizações foi assumido pelos mercadores. Uma nova Ordem Comercial – que surgiu como um inofensivo parasita há cerca de 1.300 anos a. C., nos arredores do Mediterrâneo – está se sobrepondo à obsolescência do Estado-nação e passando a governar o mundo. Não há como voltar atrás, e muito menos como prever o que emergirá dessa insanidade civilizatória, inequivocamente terminal.
2) a vertigem das armas nucleares de destruição em massa, que representa o ápice do progresso científico que permitiu o desenvolvimento do instrumento hobbesiano de controle da agressividade humana, criado pelo homem para lidar com a perene e inarredável lógica da “guerra de todos contra todos” (Thomas Hobbes, em Leviatã, de 1651), supostamente inscrita no “estado de natureza” humana. Os EUA e Rússia, os dois maiores beligerantes do planeta, tinham, em janeiro de 2023, cerca de 8.200 ogivas nucleares em seus arsenais militares, número tendente a crescer em razão do cada vez mais degradado contexto geopolítico dos últimos anos. Até a Europa, que agora perdeu a proteção americana em razão do novo regime “cada um por si” implementado pelo Estado-corporação da segunda gestão Trump, resolveu reativar seu passado armamentista, mas provavelmente terminará se aliando comercialmente aos autoritarismos em ascensão.
O fato é que tais armas nucleares encontram-se hoje na iminência de serem utilizadas, especialmente em face dos três principais confrontos geopolíticos imbricados, em andamento: a disputa de influência entre EUA, Rússia e Europa em torno da falida Ucrânia, a insolúvel contenda religiosa entre Israel e o fragmentado mundo islâmico, e a guerra tecno-comercial entre EUA e China. Embates estes hiperturbinados pelo novo capitalismo só de mercado inaugurado por Trump, sem Estado, sem regras internacionais e sem diplomacia.
3) catalisando as duas primeiras impossibilidades, o fenômeno da mercantilização da vida que está alçando o Mercado à condição de novo regulador civilizatório, assumindo o lugar do Estado-nação. Combinado com a crescente e perigosa retração dos regimes democráticos, resultante da captura do Estado pelos agentes do mercado – um punhado de megacorporações transnacionais –, essa nova realidade tem acelerado o processo de degradação dos vínculos de coesão social, herança nefasta de mais de quatro décadas de doutrina neoliberal que, em simbiose com as inovações do inebriante novo mundo dos algoritmos, vem desencadeando uma profunda regressão socioeconômica e uma abissal desigualdade entre os povos e classes sociais. Assunto que tem ocupado as preocupações de renomados economistas que tentam recuperar o real sentido da economia (o termo vem do grego oikos que significa casa e nomos que significa costume ou lei, ou seja, economia significa satisfazer as necessidades da casa) como Ladislau Dowbor, Mariana Mazucato, Joseph Stiglitz, Thomas Pikety, Jeffrey Sachs, Amartya Sen, Vandana Shiva, Muhammad Yunus e tantos outros.
O que torna a conturbada conjuntura global atual ainda mais sombria é que parece não existir hoje consciência coletiva nem alternativa civilizatória, frente à policrise terminal vivenciada no presente. Essa situação está refletida na inépcia política e na incapacidade de diálogo para tratar dos distúrbios planetários em curso, seja por parte dos líderes mundiais, seja por parte até mesmo da inteligência científico-acadêmica, todos ainda cognitivamente muito arraigados às esperanças iluministas que cegam o Ocidente. Seguimos inebriados com as distrações do novo mundo 4.0.
Essas dramáticas circunstâncias globais (mudanças climáticas, risco de guerra nuclear e mundo desregulado pelo Mercado) representam uma profunda agonia civilizatória pelo simples fato de que parece não haver uma saída a dois dilemas civilizatórios decorrentes desse contexto de policrise:
1) Como parar o acelerado processo de colapso ambiental em curso, uma vez que as reiteradas conferências científicas realizadas desde 1972 (Estocolmo), alertando que a sobrevivência da humanidade nas próximas décadas depende de uma redução radical das emissões de gases de efeito estufa, têm sido inócuas (ver comparativo ”CO2 vs COPs”)?
2) Como imaginar que as nações detentoras de armas nucleares abram mão de fazer uso desses arsenais para eliminar seus inimigos, o que poderia desencadear uma conflagração nuclear terminal para a humanidade, quando confrontadas com situações críticas de clara ameaça existencial, algo que nunca ocorreu ao longo da história registrada (ver listas de guerras entre países e civis)?
Resumindo, a humanidade encontra-se, pela primeira vez, diante de uma crise existencial aparentemente insolúvel, pois só uma impensável ruptura civilizatória, que interrompa a continuidade do ethos do Ocidente, cujo modo de viver foi forjado numa cultura da dominação e da predação dos recursos naturais, pode nos desviar do colapso civilizatório que se avizinha rapidamente. Portanto, se a policrise se apresenta em caráter terminal, cabe antecipar uma autópsia do Ocidente que nos permita vislumbrar saídas ante o colapso socioambiental anunciado pela agudização de suas disfuncionalidades.
O que define o ethos do Ocidente?
O Ocidente confunde-se com a própria noção de Civilização e de História. Para além do seu significado geográfico e temporal, o Ocidente tem na sua essência um componente cognitivo que é o aprisionamento da condição humana às dimensões teológica e teleológica, abstrações criadas pelo homem para lidar com as insuportáveis contingências da sua conflituosa realidade. Este talvez seja o principal elemento formador da noção de Civilização, ou do chamado homem dito civilizado. Digo aprisionamento porque se tais dimensões forem investigadas e compreendidas em profundidade, talvez forneçam as pistas para entendermos como chegamos às agonias que definem o tempo presente e quais são as possíveis brechas para escaparmos do crescente e aparentemente insolúvel conflito humano que arrastou toda a humanidade para o abismo existencial que está bem à nossa frente. A cultura do Ocidente pode constituir-se, nessa perspectiva, como a principal fonte da nossa crise de percepção da realidade e, consequentemente, da nossa ruína enquanto espécie animal.
Há, portanto, uma espécie de Ocidente cognitivo, principal condutor da história da humanidade, que se constitui como elemento comum a todas as grandes civilizações e culturas que se desenvolveram nos últimos seis milênios. Ele não é uma exclusividade do que se entende hoje por Mundo Ocidental. Esteve presente nas civilizações antigas, incluindo-se as do lado oriental, estudadas pelos historiadores e arqueólogos, como é o caso das que foram identificadas pelo historiador britânico Arnold Toynbee, registradas na sua grande obra Um Estudo de História (1934 a 1961). Está hoje presente naquelas que foram recentemente propostas no Choque de Civilizações (1993), do cientista político Samuel Huntington.
O renomado historiador Fernand Braudel foi muito assertivo em seus estudos sobre a dinâmica que moldou a história do Ocidente ao perceber dois fatores determinantes no tortuoso curso civilizatório: a ideia de que a história é guiada por processos de longa duração; e os muitos eventos que a forjaram irromperam nos arredores do Mediterrâneo, local a partir do qual eclodiram as diferentes culturas e civilizações formadoras do Ocidente. O mundo ocidental que conduziu a humanidade até o atual estágio agônico tem pelo menos 33 séculos de existência. Embora haja variados entendimentos sobre sua gênese e caracterização, seus antecedentes remontam, principalmente, aos muitos acontecimentos ocorridos nas cercanias do Mediterrâneo, como bem descreveu o escritor e economista francês Jacques Attali, nessa passagem do livro Uma breve história do futuro (Novo século, 2006):
“Por volta de 1.300 a.C., a maneira cíclica de pensar o mundo, então dominante, é subvertida por alguns mediterrâneos incrivelmente inventivos: gregos, fenícios e judeus. Eles têm em comum a paixão pelo progresso, pela metafísica, pela ação, pelo novo e pelo belo.
(…)
Para esses três povos, a vida humana vem antes de tudo. Para eles, todos os homens são iguais, exceto os escravos e os ‘metecos’, como eram chamados os estrangeiros domiciliados em Atenas. A pobreza é maldição. O mundo precisa ser domesticado, melhorado, construído, enquanto se espera que um Salvador venha mudar as leis deste mundo. Pela primeira vez, o futuro humano terrestre é pensado como algo que pode e deve ser melhor que o passado. Pela primeira vez, o enriquecimento material é visto como uma forma de se aproximar do ou dos deuses. É esse o ideal que se instala, e que se tornará o ideal do Ocidente e em seguida de toda a Ordem Comercial até hoje: o ideal greco-judaico.”
Portanto, um dos pressupostos que consideraremos aqui é o de que o Ocidente surgiu quando os ideais greco-judaicos irromperam entre os povos que habitavam o Mediterrâneo, na época em que a chamada Idade do Bronze chegou a termo. Ideais estes posteriormente reforçados por seus sucedâneos romano-cristãos. Daí em diante, o já tortuoso e intratável mundo humano passa a ser governado por cosmovisões frontalmente incompatíveis com a complexidade do mundo real, ou seja, com a dinâmica que move aquilo que chamamos de Natureza, da qual somos uma ínfima parte integrante e interdependente, porém profundamente desenraizada justamente por conta do nosso condicionamento milenar aos ideais ocidentais, que se estabeleceram como Cultura (modo de viver) predominante e forjaram a civilização tal como a conhecemos hoje.
Quem já havia tangenciado essa incompatibilidade, muito tempo atrás, foi o historiador alemão Oswald Spengler (1880-1936), para quem havia um “problema da História Universal” resultante de uma oposição entre a “morfologia da História Universal” e a “morfologia da Natureza”, entendimento desenvolvido na sua mais impactante obra, A Decadência do Ocidente (1918). Dizia ele:
“Natureza é a forma sob a qual o homem das culturas elevadas confere unidade e significado às impressões imediatas dos seus sentidos. História é a forma sob a qual a sua imaginação procura compreender a existência viva do Universo, com relação à sua própria vida, a fim de conferir a esta uma realidade mais profunda. Será o homem capaz de criar tais formas, e qual delas dominará a sua consciência vigilante? Eis o problema primordial de toda a existência humana.”
A solução que Spengler encontrou para tentar tratar esse “problema primordial” foi conceber a ideia de que “cultura” (Kultur) é a fase inicial (qualitativa) e “civilização” (Zivilisation) a fase decadente (quantitativa) dos ciclos vivos da História. Assim como na natureza, o surgimento das culturas seria fruto do acaso, estando destinadas a uma degenerescência quantitativa. Mas a percepção de Spengler de que a cultura ocidental europeia, “a única no nosso planeta a ter alcançado a sua plenitude”, era um processo organicamente condicionado e teve seu início subitamente, talvez se revele hoje muito limitada. Depois dos eventos que ocorreram ao longo do século XX, que ampliaram os tentáculos do Ocidente a uma dimensão planetária, a percepção de Spengler foi praticamente abandonada. Afinal de contas, Spengler não tinha à sua disposição o imenso aporte de formulações, teorias, modelos e descobertas ocorridas no século passado, sobretudo nos campos das ciências sociais, para poder tratar satisfatoriamente essa questão.
Tais aportes permitem hoje compreendermos a predominância da cultura ocidental sobre a História, a partir de novas perspectivas. Uma delas é a de que é necessária uma imersão – abstraindo-se de nossas preconcepções de mundo – nas circunstâncias que favoreceram o surgimento dos ideais do Ocidente, ou seja, é preciso investigar sem prejulgamentos o contexto que pode ter gerado as condições para a sua emergência. Para tanto, vamos tentar retornar a muito tempo atrás.
A formação do humano – uma longuíssima jornada
Não há como saber como eram exatamente os modos de vida do Homo sapiens e de seus muitos ancestrais antes da história escrita, que deve ter apenas cerca de 3.400 anos de registos documentados. Porém, temos, hoje, muitas descobertas nos campos da paleontologia, antropologia, arqueologia, etnografia, linguística, dentre outros ramos afins, que já lançaram muitas luzes sobre esses primórdios.
Existem atualmente apenas 8 exemplares remanescentes dos grandes primatas hominídeos (família Hominidae)que já povoaram a Terra, desde tempos remotíssimos: dois chimpanzés, dois gorilas, três orangotangos e nós, a inventiva espécie Homo sapiens. Todos resultaram de derivações de sucessivas linhagens ao longo de cerca de 4,5 bilhões de anos da história da vida na Terra. O antepassado comum mais longínquo de todos esses primatas viveu há cerca de 20 milhões de anos e, segundo consta na literatura científica, muito provavelmente era um símio de pequeno porte muito similar aos atuais gibões. Descobertas recentes indicam que por volta de 7 milhões de anos atrás dois desses primatas (Tumai, no Sahel, e Orrorin, no Quênia) desceram das árvores e se ergueram sobre as duas pernas. Dentre todos os primatas que nos antecederam, sabe-se que tinham em comum o comportamento social, a expressão facial e a capacidade de vocalização, diferenciando apenas a sofisticada linguagem comunicativa que é exclusiva dos humanos.
O primeiro membro conhecido do gênero Homo, que deu origem ao Homo sapiens surgido há cerca de 300 mil anos, o Australopithecus anamensis, existiu na África oriental por volta de 4,2 milhões de anos atrás, e não se tem registro arqueológico ou paleontológico de que este hominídeo ancestral e os primatas posteriores da linhagem tenham causado um impacto ambiental tão devastador quanto o que o Homo sapiens moderno causou em apenas seis dos mais recentes milênios de sua conflituosa história. Não sabemos como realmente viviam esses nossos ancestrais, mas também não há evidências – fora das abstrações criadas pelas visões teológicas e teleológicas – de que a agressividade e a autodestrutividade sejam atributos incontornáveis da natureza humana.
O fato é que para imaginarmos como o Homo sapiens e seus ancestrais hominídeos se sustentaram por tanto tempo, numa escala de milhões de anos, sem se autodestruir e interromper seu processo de evolução natural – como já está evidenciado no atual estágio da civilização –, não dá para aceitar que a essência da natureza humana esteja amparada em pressuposições de que a agressividade observada nos últimos milênios da nossa história decorre de uma condição biológica. Parece ser o caso da visão hobbesiana, para a qual o animal humano veio ao mundo naturalmente destinado à violência, condenado à inarredável “guerra de todos contra todos”; ou da transmissão ancestral de instintos destrutivos imaginada por Bertrand Russell; ou ainda que o desajustado comportamento humano seja fruto do suposto pecado original que Santo Agostinho incorporou à doutrina cristã. Esta é a visão ocidental da natureza humana que predomina até hoje.
Já as hipóteses do “bom selvagem” de Jean-Jacques Rosseau ou da “tábula rasa” de John Locke, que tentaram buscar um fundamento de viés mais cultural e menos biológico para explicar a conflituosa convivência humana, parecem mais razoáveis para sustentar a possibilidade de que tenha ocorrido uma profunda ruptura cultural que modificou radicalmente o modo de viver humano, conforme abordaremos mais adiante. Mais recentemente, o neurobiólogo chileno Humberto Maturana (1928-2021) foi um dos que conseguiu dar mais razoabilidade para essa explicação acerca da natureza humana, que pode estar mais próxima da realidade de como se deu a formação do humano. E a noção de Cultura, no sentido antropológico que esse termo comporta, é a chave para essa compreensão, como argumentava Maturana: “nossa possibilidade de sair da contradição emocional básica em que estamos imersos em nossa cultura patriarcal ocidental – e assim escapar do sofrimento que essa contradição traz consigo – está em nossa possibilidade de perceber que sua origem é cultural e não biológica.”
Cabe aqui um parêntese para destacar que, diferentemente do entendimento convencional de que a ideia de “patriarcado” refere-se a um conceito associado à relação de superioridade e de dominação do masculino sobre o feminino, a noção de “Cultura patriarcal” para Maturana é bem mais ampla. Ela “se caracteriza pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade”.
Maturana sustentava, amparando-se em estudos de registros fósseis de 3,5 milhões de anos, de primatas hominídeos que precederam o Homo sapiens, que a origem do humano está no surgimento da Linguagem e no seu entrelaçamento com a Emoção. Nessa perspectiva, a origem da formação do humano estaria nesse entrelaçamento, ao contrário do que pensa o senso comum que dá centralidade à Razão e à Objetividade nas nossas ações, entendimento que constituiu a base do desenvolvimento da Ciência Moderna, surgida nos séculos XVI e XVII, na Europa. Como ele mesmo dizia, “todo sistema racional tem um fundamento emocional”. No entanto, “pertencemos a uma cultura que dá ao racional uma validade transcendente, e ao que provém de nossas emoções, um caráter arbitrário.”
Daí resultam duas premissas sobre o comportamento humano e de suas sociedades, ou seja, sobre a sua Cultura, que sustenta o seu modo de viver. São elas:
1) O viver humano está fundado no emocional e não no racional, a despeito de toda uma longuíssima construção filosófica e científica ter sido histórica e culturalmente desenvolvida em sentido contrário, o qual Maturana definia nos seguintes termos:
“A vida humana, como toda vida animal, é vivida no fluxo emocional que constitui, a cada instante, o cenário básico a partir do qual surgem nossas ações. Além disso, creio que são nossas emoções (desejos, preferências, medos, ambições…) – e não a razão – que determinam, a cada momento, o que fazemos ou deixamos de fazer. Cada vez que afirmamos que nossa conduta é racional, os argumentos que esgrimimos nessa afirmação ocultam os fundamentos emocionais em que ela se apoia, assim como aqueles a partir dos quais surge nosso suposto comportamento racional.”
2) A deriva evolutiva que deu origem à linhagem do primata Homo sapiens foi fortemente influenciada pelo aparecimento e desenvolvimento da linguagem, que Maturana chamava de “linguajear” e sintetizava nos seguintes termos:
“Nós, humanos, surgimos na história da família dos primatas bípedes à qual pertencemos quando o linguajear – como maneira de conviver em coordenações de coordenações comportamentais consensuais – deixou de ser um fenômeno ocasional. (…) Além disso, penso que, ao surgir como um modo de operar na convivência, o linguajear apareceu necessariamente entrelaçado com o emocionar.”
É a partir dessas duas premissas e do entrelaçamento recursivo entre o emocionar e o “linguajear” que Maturana observava como uma Cultura é forjada e se conserva como modo de viver, isto é, como surgem os padrões de comportamento que sustentaram, por milênios, o cotidiano das sociedades em que viviam as diversas linhagens de primatas hominídeos. Até que, em algum momento no neolítico, esse entrelaçamento entre o linguajear e o emocionar sofre uma profunda transformação que parece explicar como se deu a “queda do homem”, ou seja, como o humano metamorfoseou-se da harmonia de um conviver cooperativo e não-hierárquico, integrado às contingências do seu meio ambiente, para a agonia da “guerra de todos contra todos”, da apropriação e do domínio, que parece ter chegado ao seu clímax em nossos dias.
A “queda do homem” – as circunstâncias que propiciaram a emergência do Ocidente
Em todos os relatos mitológicos sobre as aventuras e desventuras da vida humana, desde os seus primórdios, e até mesmo na literatura científica que trata da nossa ancestralidade, sempre prevaleceu uma visão hobbesiana acerca da natureza humana, ou seja, a ideia de que o animal humano veio ao mundo naturalmente propenso a uma vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (Thomas Hobbes, em Leviatã, de 1651). Foi a partir dessa suposta compreensão da natureza humana que se criaram as cosmovisões que moldaram o viver do Homo sapiens moderno. Mas sabemos que uma cosmovisão resulta de um processo recursivo entre observador e objeto observado, em que a percepção da realidade produz e se retroalimenta da realidade percebida, o que Maturana chamava de processo de autoconservação de uma cultura estabelecida, isto é, de um modo de viver predominante. Isso parece ter muito a ver com o insight mais importante do filósofo Arthur Schopenhauer: “O mundo é a minha representação”. Foi por meio dessa dinâmica cognitiva que o Homo sapiens ocidentalizado parece ter antropomorfizado, sob o condicionamento da cosmovisão patriarcal, a sua própria ontologia.
Por exemplo, recentemente o renomado paleontólogo e biólogo britânico Henry Ernest Gee, editor sênior da revista Nature, publicou o excelente livro Uma história (muito) curta da vida na Terra: 4,6 bilhões de anos em doze capítulos (Editora Fósforo, 2024), muito elucidativo sobre a longa trajetória da evolução da vida na Terra. Na passagem em que Gee aborda sobre o comportamento do Homo erectus, uma das últimas fases do nosso gênero Homo, ele reforça a visão hobbesiana predominante ao afirmar que “as tribos que usavam o fogo viviam mais tempo, com mais saúde e produziam mais descendentes do que aquelas que não usavam. Por fim, as tribos que não usavam o fogo desapareceram. A existência desses grupos significava que, até certo ponto, o Homo erectus era territorial. Os primatas, mais do que quaisquer outros mamíferos, são propensos à violência, até mesmo ao assassinato. Os hominíneos são os mais assassinos de todos.” (grifo meu)
Sabemos, no entanto, conforme já mencionado nas preliminares deste texto, que, seguindo a razoabilidade das muitas evidências arqueológicas e antropológicas que se tem hoje, a formação do humano deu-se a partir de um longuíssimo processo de alguns milhões de anos em que os primatas bípedes passaram a conservar um modo de viver num entrelaçamento recursivo entre o emocionar e o “linguajear”, em que predominava, conforme hipótese defendida por Maturana e outros, um modo de viver matrístico, que se tratava de “uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica”, atributos que evidenciavam a existência de uma cultura “centrada na alteridade e na estética, na consciência da harmonia espontânea de todo o vivo e do não-vivo, em seu fluxo contínuo de ciclos entrelaçados de transformação de vida e morte”. Inclusive, se observarmos o comportamento dos nossos milhares de parentes animais, abstraindo-se de nossas arraigadas inclinações hobbesianas, não é tão difícil atestar que esta hipótese parece ser a mais factível.
Mas um desvio atípico no número populacional da nossa espécie, que se mantinha oscilando entre 1 e 4 milhões de indivíduos por milhares de anos, iniciado por volta de seis a sete milênios atrás, aponta que devem ter ocorrido eventos desencadeadores de uma profunda mudança comportamental, indicando uma ruptura no modo de interagir do Homo sapiens com o seu meio ambiente. Aqui se situa talvez o fenômeno mais peculiar da espécie Homo sapiens. Ela conseguiu, no curtíssimo tempo dos seis milênios mais recentes, se alastrar exponencialmente pelos quatro cantos do planeta (ver gráfico do crescimento da população mundial nos últimos 10 mil anos), enquanto os outros 7 tipos de primatas hominídeos ainda existentes mantiveram suas populações restritas a poucas áreas do globo, encontrando-se apenas na África equatorial, na Sumatra e em Bornéu.
Esse fenômeno do crescimento populacional descontrolado, em regime exponencial, inclusive provocando a supressão de outras espécies do planeta (o que se convencionou chamar de especismo), é talvez uma das consequências mais devastadoras dessa ruptura comportamental. Foi a partir desse fenômeno que provavelmente inauguramos a atual época geológica do antropoceno, em que os efeitos destrutivos da atividade humana passaram a modificar e desestabilizar a estrutura geológica da Terra, pondo sob ameaça a sua própria sobrevivência – uma disfunção que vem sendo estudada por um novo campo de estudo chamado colapsologia.
O gatilho para que esse fenômeno do desvio do crescimento populacional ocorresse pode ter sido causado pelas invasões patrocinadas pelos povos pastores guerreiros indo-europeus ou arianos, vindos das estepes euroasiáticas, ocorridas entre sete e seis mil anos atrás, a conhecida hipótese kurgan, que teriam mudado radicalmente o padrão cultural até então predominante dos povos pré-patriarcais (povos de culturas matrísticas) que habitavam a Europa Antiga. Essa hipótese foi levantada pela arqueóloga lituana Marija Gimbutas (1921-1994) e está registrada nos seus últimos livros: The Goddesses and Gods of Old Europe (1974), The Language of the Goddesses (1989) e The Civilization of the Goddess (1991).
Gimbutas apresentou seu estudo sobre a cultura kurgan em 1956, no qual ela combinava pesquisas de arqueologia e linguística com o objetivo de colher evidências no estudo dos povos de língua proto-indo-europeia. Ela mapeou três ondas migratórias desses povos kurgan que devastaram populações inteiras e causaram um enorme choque cultural na Europa Antiga: Primeira Onda, de 4300-4200 a.C.; Segunda Onda, de 3400-3200 a.C.; e Terceira Onda, de 3000-2800 a.C. “Graças ao número crescente de datações com radiocarbono, hoje é possível traçar as várias ondas migratórias dos pastoralistas da estepe ou povo kurgo, as quais varreram a Europa pré-histórica”, afirmava Gimbutas. Abordei esse assunto com mais detalhes em dois textos intitulados Pistas para entender a agonia patriarcal e Como nasceu e germinou a civilização patriarcal, publicados pelo Outras Palavras.
Um dos estudos mais aprofundados sobre este longo processo de ruptura cultural está registrado no livro O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro (1ª edição em 1987, prefaciado por Humberto Maturana), da socióloga austríaca Riane Eisler, no qual ela aborda não só o trabalho de Gimbutas mas de outros renomados arqueólogos como o britânico James Mellaart, que chamou essas ondas kurgan de “padrão desintegrador”. Eisler reuniu muitos dados arqueológicos que demonstram como a “encruzilhada evolutiva em nossa pré-história, quando a sociedade humana foi violentamente transformada”. Ela se refere à gradual passagem da “sociedade de parceria” para a “sociedade de dominação”, ocorrida ao longo de aproximadamente 1.500 anos. O desaparecimento de importantes civilizações da antiguidade como a Creta minoica, situada no mar Egeu, a Civilização do Vale do Indo, nas regiões a noroeste do sul da Ásia, e a do Elão, a leste da Mesopotâmia, pode estar associado à destruição patrocinada por essas ondas invasoras.
Essa hipótese kurgan pode também estar associada aos registros de destruições patrocinadas pelos guerreiros invasores chamados Povos do Mar, que navegavam no Mar Mediterrâneo, durante o século XIII a.C.. Muitos outros fatores também podem ter contribuído com esse sentimento de regressão como é o caso de prováveis mudanças climáticas que poderiam ter causado migrações em massa, destruições de cidades e interrupções de rotas comerciais, fatores que limitaram a produção de bronze utilizado pelas civilizações do Mediterrâneo Oriental, no século XII a.C., provocando o chamado Colapso da Idade do Bronze.
O fato é que nessa época, nos prováveis primórdios da cultura patriarcal, muitos impérios se digladiavam permanentemente entre si. Esse cenário de conflagração generalizada está bem descrito nesta passagem do livro Uma Breve História do Futuro (Novo Século, 2008), do escritor e economista francês Jacques Attali, na qual ele relata uma fase da história que ele chama de Ordem Imperial (aproximadamente de 6000 a 1300 a. C.), que foi sucedida pela Ordem Comercial (equivalente ao que chamamos hoje de democracia de mercado e que vigora até os dias atuais), e que converge com o processo de surgimento e sedimentação da cultura patriarcal:
“Há seis mil anos, alguns reinos reúnem povoados e tribos espalhados em territórios cada vez maiores. O sagrado se apaga diante da força, o religioso, diante do militar. O trabalho dos homens é obtido por meio da violência e o saber essencial se transforma naquele que permite produzir o excedente agrícola. Os objetos não têm mais nome próprio, nem personalidade. São artefatos, passíveis de troca, instrumentos. A escravidão do maior número é a condição da liberdade de uma minoria. O chefe de cada reino ou império é a um só tempo príncipe, sacerdote e chefe de guerra, aquele que domina o tempo e a força, o Homem-Deus. Só ele está autorizado a deixar traços da sua morte por um túmulo identificável. Os outros morrem ainda no anonimato. É portanto com o príncipe que nasce a noção de indivíduo. É também com a sua ditadura que surge o sonho de liberdade. (…)
Nessa fase, no planeta, mais de cinquenta impérios convivem, combatem entre si ou se esgotam. É cada vez mais difícil administrar conjuntos cada vez mais vastos. São necessários mais e mais escravos, soldados e terras. A própria Ordem Imperial começa a perder sentido: a força já não basta.”
Nessa mesma época, “algumas tribos vindas da Ásia se instalaram no litoral e nas ilhas do Mediterrâneo”. Diante do ambiente de profunda degradação social gerado pela força da Ordem Imperial, elas perceberam que “o comércio e o dinheiro são as suas melhores armas. Mar e portos, os seus principais terrenos de caça”. A partir de então, a Ordem Comercial foi, gradualmente, se estabelecendo como uma eficiente forma de controle, dominação e manutenção da ordem entre os humanos.
Como dizia o poeta inglês Thomas Eliot, “o homem não suporta muita realidade”. Num mundo desfeito pelas sucessivas ondas de invasões kurgan, que possivelmente teriam instalado essa Ordem Imperial, militarizado e no qual vigorava apenas a lei do mais forte, a necessidade de questionar a intratável existência humana (filosofia) e a ideia de progresso para reparar o processo de decaimento infringido à convivência entre grupos humanos irrompem naturalmente, nas proximidades das vastas regiões afetadas pelas culturas guerreias kurgan, que compreendem os arredores do Mediterrâneo. O filósofo Bertrand Russell parece ter intuído essa mesma perspectiva quando, investigando as causas que favoreceram o aflorar da filosofia na Grécia Antiga (História do Pensamento Ocidental, 1946), afirmou que “o modo de viver filosófico é o único a oferecer alguma esperança de superar os acasos da existência, propiciando uma fuga à roda do destino.”
Esse contexto de confluências profundamente regressivas pode ter criado as condições para a emergência de uma nova história, que pudesse colocar ordem num mundo humano que se apresentava demasiadamente hostil e degradado. É exatamente neste ponto da conflituosa história do Mediterrâneo que talvez encontremos as circunstâncias que propiciaram o irromper da história dos ideais que forjaram a longa predominância do Ocidente, sobre a qual abordaremos num próximo texto aqui em Outras Palavras.
NOTA: Registro aqui meu agradecimento aos colaboradores do Outras Palavras, o pacifista Ruben Bauer Naveira e o pesquisador da Unicamp Luiz Marques, que se dispuseram a fazer uma leitura preliminar deste texto, cujo tema é muito abrangente e controverso. Suas impressões, mesmo com alguma divergência, foram muito úteis.
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