Seria a crise uma forma de governo?

A modernidade a pensou como um momento de mudança radical — porém ela tornou-se uma arte de administrar a ordem e domesticar as massas, diz pensador italiano. Para ele, a democracia liberal fracassou. Mas o que colocaremos em seu lugar?

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Dario Gentili em entrevista a Andrea Bonzo, no IHU

Imagem: Hieronymus Bosch (1450-1516)

Dario Gentili (Nápoles, 1975) emergiu, nos últimos anos, como um dos mais destacados expoentes no campo da teoria crítica italiana, essa corrente diversa e em constante evolução que busca analisar e compreender a complexidade da sociedade contemporânea, vinculando aspectos da filosofia, política, cultura e comunicação.

Uma das premissas fundamentais do trabalho deste pensador está em seu enfoque original da genealogia da crise. O conceito está presente no livro La crisis como arte de gobierno, uma obra que gerou interesse internacional e que, recentemente, foi traduzida para o espanhol.

No livro, Gentili traça a evolução do termo “crise” de sua origem na medicina grega antiga à sua manifestação contemporânea na economia política neoliberal. Segundo argumenta, a crise se tornou uma ferramenta de disciplina e controle social em uma época em que a precariedade se transformou na norma predominante.

“A crise produz uma sensação constante de perigo que torna os sujeitos mais previsíveis e mais governáveis, mas com a ilusão de que suas ações são livres porque, na realidade, ninguém os obriga”, explica.

Gentili, professor de filosofia moral na Universidade Roma Tre, recebe a Infobae Cultura em Buenos Aires, onde foi convidado pelo Centro Ítalo-Argentino de Altos Estudos da Universidade de Buenos Aires (CIAAE-UBA) e pelo Laboratório de Pensamento Italiano na América Latina.

A entrevista é de Andrea Bonzo, publicada por Infobae, 29-08-2023. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Por que considera que a crise se tornou uma ferramenta de controle?

A ideia me ocorreu durante a crise financeira dos anos 2007-2008, a primeira grande crise do neoliberalismo. Parecia ser mais uma daquelas crises que levariam a um ponto de inflexão, a uma mudança. No entanto, acabou reforçando a ordem estabelecida. Então, comecei a me perguntar se talvez a crise já não era mais o que estávamos acostumados a pensar na modernidade, ou seja, um momento de mudança radical, mas, ao contrário, a administração de uma determinada ordem.

Percebi que o uso do termo crise para se referir a um ponto de inflexão é bastante recente, remonta ao século XIX, o das grandes revoluções na Europa. Mas, originalmente, o termo, de origem grego, tinha uma função de administração da ordem: significava a sentença do tribunal ou o diagnóstico do médico.

O livro busca refletir se, hoje, estamos em uma situação em que talvez estejamos recuperando esse significado original desta palavra. Perguntei-me se a crise, em vez de ser um fenômeno econômico, político e social, não é, na verdade, parte de uma arte de governo que produz uma certa forma de vida, uma certa mentalidade: esta sensação constante de estar em um estado de perigo que torna os indivíduos mais governáveis, mais manipuláveis e mais previsíveis.

Quais as formas de controle disciplinar que este sistema utiliza?

Eu sou muito fiel a uma definição que [Michel] Foucault deu acerca do neoliberalismo. E o que disse Foucault? Que, diferente do liberalismo clássico, o neoliberalismo se caracteriza por produzir um ambiente, um ambiente em que são geradas certas variáveis que induzem determinados comportamentos e condutas.

Agora, não se trata de uma forma de controle ou de disciplina que atue diretamente sobre os indivíduos, mas que configura um ambiente dentro do qual os comportamentos, as ações e as formas de pensar das pessoas se tornam previsíveis. A crise produz sujeitos cujos movimentos são previsíveis, cujas ações são calculáveis, mas com a ilusão de que suas ações são livres porque, na realidade, ninguém os obriga.

Junto à crise de 2007-2008, mais de uma década depois, somou-se a crise sanitária provocada pelo coronavírus. Como isso repercutiu na sociedade italiana e europeia?

A crise pandêmica, assim como a crise econômica de 2007-2008, foi vista como uma crise do modelo neoliberal. Por fim, foi dito que o Estado e a política colocam a saúde da população à frente dos interesses econômicos. Esta foi a leitura dominante na Itália. No entanto, olhando bem para isso, era só a aparência. A crise pandêmica não é uma mudança de padrão em relação à crise econômica de 2007-2008, mas está em continuidade.

Quando se lê os documentos oficiais das grandes organizações neoliberais globais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, percebe-se que eram a favor dos confinamentos, não contra eles. Por quê? Porque o capitalismo se baseia no capital humano. Sendo assim, salvaguardar a vida era o principal interesse econômico. Se cada um de nós se expõe ao risco de perder sua vida, perdemos, na realidade, o ativo mais valioso, o que produz mais lucros no campo econômico.

Um dos efeitos da atual situação de crise parece ser a ascensão da ultradireita. Como explicar esse fenômeno?

O neoliberalismo não requer necessariamente um governo autoritário. Na perspectiva do mercado neoliberal, não existe uma forma de governo preferida ou privilegiada. Contudo, o governo deve ser funcional ao mercado. O que acontece, então? Após anos de governo econômico neoliberal na Europa atual, produziu-se uma precarização do trabalho cada vez maior e também existencial, inclusive individual. E, portanto, problemas sociais cada vez maiores.

Então, a população manifesta a necessidade de um governo forte que possa proteger, defender e oferecer essa segurança que sentem que não têm. Esses governos são frequentemente apresentados como uma espécie de alternativa ao neoliberalismo, mas eu vejo essas tendências autoritárias na Europa e na Itália como uma espécie de compensação dentro do neoliberalismo por essa precariedade que é produto da política econômica neoliberal.

Também estamos assistindo ao retorno de uma moral mais tradicional, como se vê na revalorização da família e nas reivindicações identitárias, sejam elas nacionais, de gênero, raciais ou religiosas. Qual é a razão para isso?

Existe este fenômeno de retorno à família tradicional, por exemplo, porque quando se tem a dimensão laboral cada vez mais exposta às turbulências dos mercados e à insegurança da economia e do mundo do trabalho, busca-se um apoio mais seguro e sólido na dimensão privada.

A família começa a se tornar cada vez mais uma espécie de sucedâneo deste Estado de bem-estar. Não é mais o Estado que se ocupa das pessoas que experimentam uma forma de insegurança e precariedade, mas, sim, é a própria família, por exemplo, através das aposentadorias dos avós, que assume a função do que deveria ser um Estado de bem-estar.

A democracia liberal está em crise?

Vejo claramente que a democracia liberal, da forma como a conhecemos, está em uma crise profunda e não é mais capaz de gerir o que existe, de garantir o bem-estar da população, que é a base de todo governo. Então, sim, vamos continuar sendo democráticos, mas que comecemos a pensar em formas de democracia diferentes da democracia liberal para ver se existem modelos alternativos de participação e democracia.

Hoje, em quase todas as partes, a democracia liberal foi completamente esvaziada de sentido, tornou-se simplesmente uma estrutura, um andaime que já perdeu os seus valores, os seus fundamentos sociais e culturais. Quando as pessoas já não comparecem às urnas, quando o mal-estar da população é cada vez maior, talvez seja necessário começar a pensar em novas formas de democracia. A democracia liberal era um dos modelos possíveis, mas não é o único.

Você insiste na ideia de “precariedade” como condição de vida característica da crise. Como esta precariedade afeta os diversos aspectos da sociedade?

A precariedade não se limita exclusivamente ao tipo de contrato de trabalho que cada um possa ter. Ao contrário, é realmente uma condição existencial de insegurança, de incerteza, que domina sobretudo a nível psicológico.

Na Itália, o que vejo cada vez mais é uma espécie de sofrimento psicológico. É algo que afeta a todos de modo individual, tornando-se uma forma de sofrimento social. Então, a precariedade é esta insegurança e incerteza que pesa sobre a vida de cada um de nós, para a qual estamos constantemente buscando uma resposta ou uma solução.

Qual é a saída?

O problema é que a própria ordem neoliberal que provoca este sofrimento propõe a cura. Existem empresas importantes, inclusive, consideradas de vanguarda a nível de cuidado dos trabalhadores, que já consideram a síndrome de burnout uma doença comum, que pode ocorrer como um resfriado no inverno, cuidada pela própria empresa, talvez concedendo uma licença médica remunerada e outros.

Isso é considerado um progresso, mas, na verdade, se olharmos bem, é uma forma de absorver esse tipo de sofrimento social e seu componente mais subversivo, que é questionar essa mesma ordem que produz o estado de sofrimento psíquico.

Ao mesmo tempo, há uma espécie de rejeição subterrânea à ordem existente. Você cita como sintomas o fenômeno da “Grande Renúncia” e o abstencionismo eleitoral.

A questão é justamente saber ler esta rejeição à participação política e a entrar no mundo do trabalho sob determinadas condições, não como uma questão individual, mas como um fenômeno que indica uma espécie de insustentabilidade desta ordem em que estamos vivendo. Este sofrimento do individual deve ser colocado em comum.

Este é o passo político para produzir uma alternativa: entender que o problema não é individual, onde cada um deve tentar de alguma forma se salvar ou sobreviver, mas que nesta rejeição está o ponto de partida para novas formas de propostas políticas alternativas. Ou seja, é preciso partir justamente dessa rejeição para evitar que a solução volte a ser aquela que a ordem propõe.

Na Itália, durante a crise de 2008, vimos isso claramente. Pediu-se aos italianos que fizessem sacrifícios porque era necessário salvar a economia e diminuir a dívida. Agora, vinte anos depois, as pessoas começam a se perguntar: “em troca disso, desse sacrifício, o que obtive? Se sofro ainda mais, se as condições de vida pioram?”. Isto é um fato: pela primeira vez, em muito tempo, estamos em uma situação em que filhos e as filhas não têm mais a certeza de que podem viver em melhores condições do que os seus pais.

Sendo assim, esse tipo de percepção de que as formas de vida atuais são insustentáveis precisa se traduzir em uma forma política e não em uma forma de fuga individual. Aí está a questão. Enquanto não conseguirmos dar uma forma política a essa rejeição, transformá-la em uma alternativa, o risco é que voltemos ao círculo vicioso das crises como arte de governo.

Que papel a filosofia pode desempenhar no momento de imaginar uma alternativa?

Em primeiro lugar, a filosofia aponta para o problema, oferece a possibilidade de interpretar de outra forma o que se apresenta diante de nossos olhos como algo que deve ser administrado pela ordem vigente. Por isso, a filosofia deve continuar desempenhando aquilo que, ao menos para mim, foi e deve continuar sendo sua principal função: a da crítica. Poder dizer que isto não funciona mais e que é preciso começar a imaginar alternativas.

Existe uma frase muito bonita de Italo Calvino: “tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno”. Hoje, penso que esta é uma função da filosofia. Depois, cabe à política, à política democrática, à política de base, à política social, abordar as exigências de transformação.

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2 comentários para "Seria a crise uma forma de governo?"

  1. Jomas Bastos disse:

    Muitos continuam falando e escrevendo que são de Esquerda, outros de Direita e outros de Centro. Mas uma Nação não necessita de ideologias políticas mas sim de Justiça Social Pública com Saúde, Educação, Habitação, Saneamento Básico, Infraestrutura logística, Transporte Público, etc. tudo de qualidade para todos.
    E deste modo o investimento privado terá espaço para investir e gerar empregos.

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