Ciência burra, idiotas políticos e selvagens morais

Uma crônica de Ladislaw Dowbor. Sob ideais elevados, podridão é orgásmica – por isso, Big Techs, poluidoras e genocidas investem no ódio coletivo. Se a deformação social é a regra, reconstruir a democracia exige compreender o quão enredados estamos ao horror…

Por Ladislau Dowbor | Tradução: Glauco Faria

As complexas deformações sociais que enfrentamos tornaram-se um sistema fortemente interligado: no nível individual, a agressão ou mesmo o ódio são facilmente estimulados; as plataformas globais de redes sociais maximizam esses sentimentos por meio de IA e algoritmos; as sociedades financeiras contribuem com algoritmos de maximização de dividendos; no nível político, as tendências se misturam ao poder absoluto. – Ladislau Dowbor

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Certa vez, um aluno me perguntou como eu via o ser humano: somos humanos naturalmente bons, deformados pelas instituições, em uma visão um tanto quanto rousseauniana de le bon sauvage, ou um primata desesperadamente pervertido? O fato básico é que conseguimos tornar a vida miserável uns para os outros, e para todos nós, enquanto inventamos um belo discurso sobre “amar uns aos outros”, “fazer aos outros…” etc. A questão básica é se a ideia de que ajudar uns aos outros constrói uma vida decente na Terra é viável. E isso não diz respeito apenas aos indivíduos: as empresas reivindicam ESGs e continuam a destruir nosso futuro, os políticos reivindicam sua dedicação ao bem comum, e lá vamos nós para a COP29 – sim, 28 anos discutindo o que devemos fazer e não fazendo nada a respeito – enquanto a bagunça global se aprofunda.

Não se trata apenas de privilégios absurdos no topo e de instabilidade econômica para muitos. Uma das principais causas do sofrimento é o sentimento generalizado de insegurança, que penetra todas as nossas vidas, insegurança quanto ao nosso futuro e ao dos nossos filhos. Precisamos disso? Se alguns de nós – os poucos felizes – acreditam que são os capitães gloriosos, a maioria é mais realista. Certa vez, conheci um poderoso ex-ministro africano que cultivava um arrozal: assim é, comentou ele, um dia você é ministro, no dia seguinte você está na “bolanha”, o arrozal lamacento. Certamente podem ser estimulantes os altos e baixos da vida, mas a facilidade com que você pode perder sua casa, ver seus filhos passarem fome e a família se afogar em dívidas – sem falar em assassinatos, tortura, guerras absurdas com violência que varia desde crianças violadas até bombardeamentos de alta tecnologia – empurra-nos para uma batalha permanente uns contra os outros, mesmo sabendo que a única coisa que funciona é a colaboração. Parece que as vantagens individuais de curto prazo, misturadas umas com as outras, assumiram o controle.

E quanto mais inseguras as pessoas se sentem, mais elas lutam e mais acirrada é a competição. Chamam isso de liberdade, você está preparando seu próprio sofá e é assim que vai dormir. Esse é um ditado polonês. Mas quantos de nós temos escolha e sobre o que são essas escolhas? Estamos enfrentando um drama comum e é deprimente ver bilionários lutando para chegar ao topo da escala, sem perceber que todo o terreno está afundando. Sim, é apenas uma imagem, mas é a realidade. Eles não só lutam, mas constroem ativamente um sistema empresarial e político para maximizar as suas vantagens, à custa de uma desigualdade explosiva e de um desastre ambiental. Alguns constroem bunkers, outros afirmam que poderíamos ir para outro planeta, depois de termos arruinado este. Uma perigosa mistura de poder e infantilidade.

Não perceber as nossas dimensões irracionais é simplesmente perigoso. E obviamente pouco inteligente. Não há nada como a história que sugira que poderíamos substituir o conceito de  homo sapiens  pelo de  homo demens. Você já pensou que em nenhum momento da história registrada da humanidade deixamos de matar uns aos outros? Em cada guerra ou massacre que estudamos, somos levados a definir quem eram os mocinhos e quem eram os maus. E se a própria incapacidade de viver em paz e em colaboração, que seria sem dúvida mais proveitosa para todos, fosse o objeto da nossa análise? Gosto muito do texto de Frans de Waal,  Our Inner Ape, no qual fica evidente o quanto nos comportamos, em termos de defesa de nossos territórios ou tribos políticas, de forma muito parecida com nossos parentes mais próximos, os chimpanzés. Guerras tribais, guerras nacionais, guerras mundiais, alguma delas faz algum sentido?  1

Em outro belo texto, The Righteous Mind , Jonathan Haidt analisa nossas motivações e, em particular, como conseguimos embelezá-las. A Ku-Klux Klan massacrou para proteger as virgens brancas e queimou casas para civilizar os negros, os nazis limparam a raça, as guerras de religiões mataram e torturaram por todo o lado segundo as ordens expressas dos seus respectivos deuses, a Inquisição torturou mulheres, de preferência nuas, para extirpar o demônio que se apoderou de suas almas. No Vietnã, mataram dois milhões; na Argélia, um milhão; na Segunda Guerra Mundial, 60 milhões, o Oriente Médio aumenta a conta todos os dias. Tudo em nome dos ideais mais elevados. O que Haidt deixa claro é como é prazeroso e profundamente satisfatório dar rédea solta ao que há de mais podre dentro de nós, em nome dos ideais mais elevados. É o orgasmo final. O ódio justificado gera gozo irreprimível. É ignorância? Sem dúvida, mas não faltam diplomas: metade dos médicos alemães aderiram ao partido nazista.  2

Barbara Tuchman não tem muita confiança na lógica do poder ou na inteligência dos grupos que o exercem.

A ausência de pensamento inteligente no exercício do poder é outro fato universal, que levanta a questão de até que ponto, nos Estados modernos, há algo na vida política e burocrática que reduz o funcionamento do intelecto em favor do “manuseio das alavancas” sem levar em conta as expectativas racionais. Essa parece ser uma perspectiva válida. 3 (pág. 398)

A filosofia que permeia os escritos de Barbara Tuchman é sem dúvida o resultado dos seus próprios estudos de história, mas o seu ceticismo relativamente ao exercício do poder tem raízes mais antigas. O autor lembra Platão:

Ele também teve que aceitar que seus semelhantes estavam ancorados na vida dos sentimentos, agitados como marionetes pelos fios dos desejos e medos que os fazem dançar. Quando o desejo não está de acordo com o julgamento da razão, disse ele, há uma doença na alma. E quando a alma se opõe ao conhecimento, ou à opinião, ou à razão, que são as suas leis naturais, isso eu chamo de loucura. 3 (pág. 404)

Provavelmente o maior interesse do livro de Haidt é que ele nos permite compreender um pouco melhor esse poço obscuro dentro de nós, uma mistura de empatia, ódio e identificações políticas, ao detalhar, com base em pesquisas, a diversidade de motivações. Ele trabalha com uma “matriz moral” de seis motivações: o cuidado, que nos faz evitar causar danos aos outros, querendo diminuir o sofrimento; liberdade, com o seu correspondente repúdio à opressão; justiça, que nos faz buscar tratamento igualitário e evitar trapaças; a lealdade, que nos faz buscar adotar os valores do nosso grupo, considerando como traidores aqueles que não os adotam; a autoridade, que nos faz considerar ético o que os líderes decidem e chamar de subversivos aqueles que se rebelam; santidade, ligada a valores sagrados como tradições ou razões religiosas, o que pelo lado negativo nos faz condenar ao fogo do inferno aqueles que acreditam em outras cosmovisões.  2  (pág. 297)

Enquanto os três primeiros grupos de motivações, cuidado, liberdade e justiça, nos levam a um mundo colaborativo, os três últimos, lealdade, autoridade e santidade, facilmente nos transformam em monstros. Na verdade, não apenas monstros, como nos mostrou Hannah Arendt, mas monstros burocráticos. Christopher Hitchens nos mostra como Henry Kissinger abriu o caminho com habilidade e paciência e justificou mais massacres no Vietnã, no Chile com Pinochet, na Argentina com Videla, na Grécia e Chipre com Papadopoulos, na Indonésia com Suharto, para mencionar alguns.  4  O fato de ele ser essencialmente um realista nos torna conscientes de quão vergonhoso é o que construímos. Os mais de seis milhões de mortos na República do Congo mal chegam aos nossos manuais de história.  5

Max Fisher, no seu recente estudo sobre conflitos gerados por algoritmos de redes sociais,  The Chaos Machine, torna a questão muito mais transparente.  6  Fisher dedica capítulos a Mianmar, onde o ódio entre comunidades de diferentes religiões levou a massacres de minorias, mas também ao Sri Lanka, apresentando o caso dos Estados Unidos, do Brasil, da Índia, da Alemanha e de outras regiões europeias com a ascensão do fascismo ou movimentos neonazistas. De repente, os fanáticos ideológicos encontram não apenas formas de falar com o mundo, mas os algoritmos das plataformas aumentam de forma desproporcional o alcance os seus discursos. Em dezembro de 2022, o Facebook reportava ter 2,96 bilhões de utilizadores mensais: uma deformação global.

Estimular as divisões sociais, o ódio e o fanatismo não era uma opção dos criadores do universo da comunicação social. Para a Meta, 98% da receita vem de publicidade, e a publicidade é precificada de acordo com o número de pessoas que atinge, os chamados m-DAUs (monetizable Daily Average Users, unidade de conta utilizada nas negociações de compra do Twitter por Elon Musk). Assim, todo o sistema busca mensagens que maximizem a atenção: para vender mais espaço publicitário, o objetivo é maximizar o compartilhamento, e os algoritmos são instruídos a canalizar, estimular ou abafar as mensagens de bilhões de usuários de acordo com esse critério, com a IA ajudando a encontrar as reorientações necessárias. Dado que as polarizações emocionais, em particular os sentimentos de identidade de grupo e de ódio tribal, são motivadores poderosos, acabam dominando as redes sociais.

Em outras palavras, a deformação é incorporada e construída de forma inteligente pelo próprio critério de maximização, guiado por sua vez pelo interesse geral de maximizar o retorno financeiro. Em termos gerais, é inconsciente, quase animalesco e, portanto, facilmente manipulado por líderes oportunistas ou algoritmos em busca de lucro. Provavelmente ambos.  6  (pág. 243)

Mesmo que Trump, Bolsonaro e outros líderes tenham utilizado companhias como a Cambridge Analytica e outras empresas de divulgação direcionadas por algoritmos, a realidade é que, no quadro da política de maximização da atenção das próprias plataformas, as pessoas foram levadas à polarização e a reações fanáticas à medida que viram seus preconceitos tão reproduzidos e compartilhados. As plataformas geraram, de fato, um sistema de seleção negativa. Uma pesquisa com 300 milhões de comentários descobriu como tratar pessoas e fatos em termos morais e emotivos exacerbados traz à tona os instintos de ódio e violência no público – que é, afinal, exatamente o que as plataformas sociais fazem, em uma escala de bilhões, a cada minuto de todos os dias… Sociedades inteiras estimuladas ao conflito, à polarização e à fuga da realidade – para algo como o trumpismo.  6  (pág. 211)

Projetar a IA certamente mostra o quão inteligentes podemos ser, mas os resultados, ao revelarem o que nos estimula de forma mais poderosa, também mostram os idiotas políticos e os selvagens morais que podemos ser. Os algoritmos simplesmente navegaram com base em nossos motivos mais poderosos. E as plataformas programadas para maximizar a atenção e os lucros simplesmente seguiram em frente. Quem investiu nas plataformas, hoje os gigantes (Amazon, Apple, Alphabet, Microsoft, Meta, Nvidia) olha apenas para os dividendos resultantes. A indústria de gestão de ativos (BlackRock, State Street, Vanguard e similares) baseia-se em algoritmos que direcionam os fluxos de dinheiro para a maximização de dividendos. E os políticos tendem a navegar nas ondas mais poderosas.

Onde vou, preocupado com minha pensão, colocar meu dinheiro? Pois bem, o lucro líquido da Microsoft no último ano fiscal foi de 34,1%, pago por todos nós. Eu brinco com o sistema. Sim, é um sistema.

Assim, Frans de Waal, que passou a vida investigando os chimpanzés e como seu comportamento poderia ser “humano”, mais recentemente inverteu a perspectiva e ficou surpreso com o quão simiescos os humanos podem ser. Não se tratava de bons ou maus, mas de pessoas. As muitas investigações sobre o papel dos algoritmos nas redes sociais levaram Max Fisher a concluir que investir no animal que existe em nós é de fato um bom negócio, porque estas são as motivações mais poderosas, e esta compreensão define as prioridades de grande parte do mundo corporativo. Barbara Tuchman, analisando as decisões políticas de quatro presidentes americanos, todos eles pessoalmente convencidos de que a guerra no Vietnã não poderia ser vencida, nos mostra quão sistêmica se tornou toda a deformação política. Jonathan Haidt faz o seu trabalho como psicólogo social, exibindo um conjunto de motivações, tanto negativas como positivas, mas não é otimista. E muitos políticos modernos, em tantos países, compreenderam que a utilização dos meios de comunicação social, das notícias falsas e, acima de tudo, do discurso de ódio – os imigrantes podem ser muito úteis – é uma estrada real para o poder. Se juntarmos as nossas motivações individuais, o poder corporativo e o oportunismo político, a combinação é mais do que preocupante. As peças são misturadas.

É este o pessimista em mim falando? Pois bem, olhando para Trump, Milei, Bolsonaro, Orbán, Netanyahu, Meloni e tantos outros em ascensão, mesmo na Holanda e na Suécia, temos motivos para ser pessimistas. Mas a chave para levar a sociedade a um caminho mais democrático começa precisamente com a compreensão de como os nós estão amarrados. Acabamos de terminar a COP28, vinte e oito anos sugerindo que temos um problema. Não é um problema, é uma catástrofe.


Notas

1  Frans de Waal,  Nosso macaco interior . Riverhead Books, 2006.
2  Jonathan Haidt,  The Righteous Mind: por que as pessoas boas são divididas pela política e pela religião . Vintage, 2013.
3  Barbara W. Tuchman,  A Marcha da Loucura: de Tróia ao Vietnã , Random House, Nova York, 2014, p.470.
4  Christopher Hitchens, O Julgamento de Henry Kissinger, Twelve, Nova York, 2002.
5  Adam Hochschild,  O Fantasma do Rei Leopoldo: uma história de ganância, terror e heroísmo na África colonial , Houghton Mifflin, Nova York, 1999.
6  Max Fisher,  The Chaos Machine: a história interna de como a mídia social reconectou nossas mentes e nosso mundo , Back Bay Books, 2023.

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