Democracia radical para as grandes decisões da ciência?

Para grandes dilemas como edição genética e uso de inteligência artificial, artigo da Science sugere a Deliberação Cidadã Global: grupos de cidadãos — escolhidos por sorteio — que se qualifiquem coletivamente para deliberar

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Por Ricardo Abramovay*

Você seria favorável à aplicação prática de tecnologias de edição genética, que permitissem aos pais escolher a cor dos olhos de seus filhos? E se o objetivo fosse prevenir ou curar doenças graves, aí você aprovaria? E para modificar o DNA de transmissores de doenças infecciosas, aí tudo bem?

Mas, mais importante ainda: você se acha qualificado para opinar sobre estes assuntos, tanto sob o ponto de vista da ciência, como da ética, a disciplina que deveria nos orientar sobre como devemos agir? Por mais que tenhamos intuições e opiniões, é claro que a esmagadora maioria de nossos pontos de vista não ultrapassa o “eu-achismo” rudimentar. Apoiar nessa precariedade as decisões políticas com respeito à maneira como ciência e tecnologia determinam nossas vidas parece não só imprudente, mas perigoso.

Um dos componentes decisivos da crise em que se encontram as instituições democráticas contemporâneas tinha sido anunciado, já no século 19, por dois dos mais importantes expoentes do pensamento liberal, John Stuart Mill (1806-1873) e Alexis de Tocqueville (1805-1859). Por mais importante que seja respeitar o resultado das eleições, o sistema representativo envolve um risco imenso, que ambos sintetizaram numa expressão hoje mais atual que nunca: a tirania da maioria.

Para Mill, por exemplo, respeitar exclusivamente a opinião majoritária é o caminho para impedir a expressão das vozes discordantes, o que acaba por esterilizar as possibilidades de inovação, na política, nos costumes e até na economia. Para Tocqueville, a democracia traz o risco dos linchamentos e do ódio contra as minorias e os estrangeiros, além de conformismo e desconfiança com relação ao que escape do convencional.

Tomar decisões com base na opinião imediata das pessoas é um gigantesco risco para a própria estabilidade das relações políticas em qualquer sociedade. Esta é uma das razões que explica a existência não só da Constituição, mas de outros órgãos do Estado que não dependem do humor instantâneo da opinião pública.

Ao mesmo tempo, limitar a escuta social ao que dizem as urnas a cada dois anos tampouco ajuda no enfrentamento de nossos maiores desafios, e faz com que só elites especializadas participem das decisões, Ainda mais quando esses desafios envolvem ciência e tecnologia.

Energia nuclear, organismos geneticamente modificados, inteligência artificial, combustíveis fósseis: o destino das realizações científicas e tecnológicas deve se submeter a veredito popular? Ou as decisões sobre seu uso e seu desenvolvimento serão melhores, caso se restrinjam a quem entende mesmo do assunto e aos representantes eleitos?

Existe felizmente uma alternativa a essa polaridade distópica. Ela é ousada, como mostra artigo publicado na Science, a mais respeitada revista científica do mundo: “Deliberação cidadã global sobre a edição de genoma” é assinado por um poderoso time de pesquisadores, do qual faz parte Yurij Castelfranchi, professor e pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), especialista em percepção social da ciência.

O argumento central do artigo é que um tema de tamanha importância (o mesmo poderia ser dito da inteligência artificial, por exemplo) exige governança global. E o ponto de partida da governança devem ser pessoas comuns.

Mas será que isso não significaria justamente submeter-se ao que Mill e Tocqueville chamaram de “tirania da maioria”? Será que consultar o público sobre temas que exigiram décadas de estudo especializado não coloca a ciência no mesmo patamar da ignorância?

Não, respondem os cientistas. Seu artigo mostra que já existe uma vasta experiência com as técnicas de deliberação cidadã em debates científicos locais, regionais e nacionais. Entre 1986 e outubro de 2019, já houve, ao redor do mundo, 289 casos de escuta cidadã qualificada, segundo trabalho recente da OCDE. A França concluiu recentemente a “Convenção Cidadã para o Clima” que resultou em 149 propostas práticas de políticas públicas. A Grã-Bretanha acaba de concluir e publicar o relatório de um processo semelhante. Nos Estados Unidos formou-se, em 2010, uma rede de Avaliação por Especialistas e Cidadãos sobre Ciência e Tecnologia (Ecast, na sigla em inglês).

O estudo da OCDE mostra nove técnicas para esta escuta qualificada. Todas elas são chamadas de “recomendações cidadãs informadas” sobre questões políticas. As mais interessantes modalidades são as que sorteiam de forma aleatória um conjunto de 100 a 150 pessoas que vão, durante um período de algumas semanas ou alguns meses, convocar especialistas no tema em questão.

Os especialistas respondem às perguntas dos leigos que, por aí, vão adquirindo uma informação qualificada. Ao mesmo tempo, os leigos debatem os temas entre si e, por sua convivência, obrigam-se a ouvir os que têm opiniões diferentes das suas. É um dos mais férteis exercícios contrários à polarização irracional e desinformada.

O caráter aleatório da escolha a torna mais expressiva da diversidade social que, por exemplo, os parlamentos, compostos inevitavelmente por profissionais da política. Mas isso não significa que a assembleia de cidadãos sorteados almeje representação política.

A seleção por sorteio aumenta as chances de que aí estejam presentes os mais diferentes pontos de vista. Fóruns de cidadãos comprometidos com discussão bem informada, a partir de técnicas em que aprendam a escutar o que dizem seus pares e os especialistas, é um caminho para julgar os diferentes lados de que se compõe uma questão complexa.

O artigo da Science propõe algo ainda mais ousado e aí está seu ineditismo: o sorteio deve incluir pessoas escolhidas, não num país, mas no mundo todo. A razão é que regras sobre o uso de técnicas de manipulação genética não podem ter alcance estritamente nacional, já que com o avanço e o barateamento dos dispositivos digitais em que elas se apoiam, não há como conter seu uso nos limites das fronteiras políticas entre países.

O tema pode parecer distante de nossas preocupações imediatas, mas ele é incontornável: ciência e tecnologia estão hoje na raiz dos mais importantes riscos existenciais que ameaçam a espécie humana.

Que se trate da ameaça nuclear, da edição de genomas, das mudanças climáticas ou da inteligência artificial, não é aceitável que a sociedade se comporte como pura espectadora em decisões que afetam de forma tão decisiva o destino de cada um de nós.


* Texto publicado originalmente na Uol Tab

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4 comentários para "Democracia radical para as grandes decisões da ciência?"

  1. Rubens disse:

    Nelson Rodrigues já dizia:
    “TODA UNANIMIDADE É BURRA”
    Imagine se tivéssemos feito “democracia radical” para decidir a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança?
    Certamente a unanimidade teria decidido contra e contaríamos com milhões de mortes e sequelas graves e desnecessárias.
    Essa “democracia radical” nem é democrática e muito menos radical.
    Melhor discutir outras palavras…….

  2. Ana Márcia Vainsencher disse:

    P.S. um abraço para Ricardo Abramovay com quem, na sua meteórica passagem pelo jornalismo, trabalhei.

  3. Ana Márcia Vainsencher disse:

    A alfabetização política sem dúvida é algo positivo, mas transformações verdadeiras são uma conquista árdua, que precisa ser preservada no dia a dia. Conquista essa que se atinge na ação.

  4. José Mário Ferraz disse:

    De duas coisas podemos ter certeza: estar sendo o mundo conduzido de modo errado, e de não poder ser de outro jeito na cultura capitalista cujo objetivo é trocar a natureza por dinheiro. Como não se pode desistir, as várias correntes que digladiam pelos louros de uma mudança salutar devem buscar um sistema educacional que em vez de deus e dinheiro ensine sociabilidade às crianças. Com uma juventude politicamente alfabetizada, capaz de esquivar-se dos malefícios do pão e circo, quem sabe, surja um horizonte menos tenebroso?

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