Da clínica à rua: psicanálise e política

O debate público também é arena do psicanalista. Seu foco não pode se restringir aos processos psíquicos do indivíduo; deve reconhecê-los também na sociedade. Sua ética, quando subversiva, é em si um posicionamento político

Imagem: Holly Warburton
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Há alguns anos, venho acompanhando o modo como meus colegas psicanalistas se posicionam a respeito de questões políticas e sociais fora de sua prática clínica. Parece-me haver dois grandes grupos: psicanalistas que não se envolvem e psicanalistas que se envolvem com essas questões. Os integrantes do primeiro grupo argumentam que a intervenção da psicanálise é essencialmente clínica e, por esse motivo, não cabe aos psicanalistas se comprometerem com os grandes debates políticos. Declaram também – e esse argumento aparentemente é mais convincente – que o posicionamento político do psicanalista, mesmo que realizado fora da clínica, pode comprometer a transferência do paciente.

É verdade que a participação do psicanalista no debate público pode afetar a transferência. Ao conhecer a opinião de um psicanalista a respeito dos novos arranjos familiares, como a monoparentalidade ou a adoção de um filho por um casal homoafetivo, por exemplo, um paciente fortemente fixado em seus valores conservadores pode rejeitar a possibilidade de iniciar uma análise com aquele psicanalista. Por outro lado, pode ser justamente aquela opinião que motive um paciente a iniciar sua análise, pois acredita que finalmente suas queixas serão ouvidas.

Da mesma maneira, a transferência também pode ser afetada por conta da isenção de um psicanalista diante do debate público ou por sua posição de neutralidade. Por um lado, esse psicanalista pode sequer ser considerado como uma opção para um paciente fortemente engajado com questões sociais. Por outro lado, no entanto, um paciente que estabeleça uma distinção muito forte entre a esfera pública e a esfera privada e que entenda a política mais como um processo de gestão e administração da esfera pública do que como um espaço de conflito e divergências pode se sentir mais à vontade para iniciar um atendimento com aquele psicanalista.

A transferência, portanto, pode ser afetada não somente pela intervenção declarada do psicanalista no espaço público, mas também por sua neutralidade. No entanto, seja num caso, seja no outro, o psicanalista não está na clínica para reforçar as crenças do paciente ou para revigorar suas convicções (pois não está ali como um semelhante), muito menos para transmitir um ensinamento ou uma sabedoria (visto que não se encontra ali na posição de mestre). A imagem que o paciente faz de si mesmo é um tópico incontornável da clínica, mas as intervenções estão dirigidas menos para alguma espécie de fortalecimento do eu e mais para uma decifração do desejo. Assim, parece-me que, apesar de a neutralidade diante de questões políticas e sociais ser uma posição válida para o psicanalista, a transferência não vai deixar de ser afetada por isso.

Com essas considerações, resta investigarmos o segundo grande grupo: psicanalistas que se envolvem com questões políticas e sociais. Alguns psicanalistas decidiriam posicionar-se politicamente, não como psicanalistas, e sim como cidadãos. Se como psicanalistas é necessário resguardar suas orientações a respeito da sociedade, já como cidadãos em um contexto extraclínico podem tornar públicos seus posicionamentos políticos. Aqui pode-se perceber um raciocínio inspirado na distinção estabelecida pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804) entre uso privado e uso público da razão.

O uso privado da razão ocorre no contexto do exercício de um cargo ou de uma função: um colaborador vinculado a uma corporação, um operário da indústria, um profissional liberal, um servidor público ou um empresário. Em todas essas situações, espera-se que o uso da razão esteja estritamente associado à função exercida, ou seja, o exercício de uma função (nesses casos, uma função profissional) estabelece limites ao uso da razão, incluindo a obediência às orientações de um superior hierárquico ou aos princípios de sua prática profissional.

Já o uso público da razão, diferentemente do uso privado, deve ocorrer livremente. Enquanto cidadão, não somente pode-se, mas deve-se emitir um juízo crítico sobre a sociedade, inclusive sobre o uso privado da razão. Assim, desvinculado de suas responsabilidades profissionais, o cidadão exerce o direito de liberdade de expressão sem quaisquer restrições ou constrangimentos.

A distinção entre o uso público e o uso privado da razão possui o mérito de poder ser estendida a todos indistintamente, ou seja, não é aplicada exclusivamente aos psicanalistas, mas vale para todo e qualquer cidadão, independentemente de sua função pública ou profissional. Idealmente, não somente o psicanalista, mas também o engenheiro, o advogado, o operário, o professor, o publicitário, o faxineiro etc. podem, enquanto cidadãos, fazerem uso público da razão. Vejamos um exemplo que nos forneça a possibilidade de investigar a aplicabilidade da distinção do uso da razão.

Átila Iamarino tem exercido um importante papel social com a divulgação de informações científicas relevantes para o entendimento da pandemia de covid-19. Essas informações não foram divulgadas em uma revista científica, em um simpósio ou em uma sala de pós-graduação, e sim no Youtube, e seu acesso era irrestrito. Trata-se, portanto, do uso público da razão: Átila não colocou seus conhecimentos sobre a pandemia à prova não somente diante de especialistas, e sim diante de todo e qualquer cidadão, ou seja, seus conhecimentos foram compartilhados e debatidos no espaço público.

Ao se discursar no espaço público enquanto cidadão (uso público da razão), cada argumento vale por sua fundamentação racional, e não pelo nome ou pelo título daquele que sustenta o argumento. O valor de um argumento não está na autoridade de quem diz, e sim na razão daquilo que é dito. Fosse o biólogo Átila, fosse um cidadão qualquer, o valor do argumento seria o mesmo. Entretanto, Átila não apresentou seus conhecimentos como cidadão, e sim como biólogo, o que nos parece contraditório com aquilo que ficou definido como uso público da razão. Se levarmos a distinção kantiana às últimas consequências, então Átila deveria vir ao espaço público como cidadão – da mesma maneira como tem feito alguns psicanalistas a respeito de questões políticas.

Considero, contudo, que esse espaço público em que cada argumento vale somente por sua fundamentação racional nunca existiu – pelo menos não no capitalismo. O conhecimento não está desvinculado das relações sociais e de poder. No espaço público, argumentos adquirem maior credibilidade quando são pronunciados por especialistas em geral (cientistas, filósofos, intelectuais, artistas). Ou seja: os conhecimentos transmitidos por Átila Iamarino foram importantes não somente por sua fundamentação racional, mas também pelos títulos daquele que os transmitia.

Reconhecemos a importância dos conhecimentos transmitidos por Átila porque é um biólogo transmitindo conhecimentos de biologia. Contudo, se Átila se aventurasse a falar daquilo que não é de seu domínio, como o processo de constituição da língua coreana, a credibilidade de sua transmissão não seria a mesma. Da mesma maneira, quando um psicanalista aborda publicamente temas como saúde mental, sofrimento, mal-estar, sintoma, sexualidade, arranjos familiares, atribuímos credibilidade àquilo que é dito porque supomos que esses temas são constantemente investigados e discutidos em seu ofício profissional. Mas e quando um psicanalista decide falar de política ou mais exatamente se posicionar politicamente? O psicanalista possui condições de tratar de questões políticas e sociais na esfera pública?

Sim, e por diferentes motivos – mas vou me concentrar em dois. Em primeiro lugar, Freud deixou clara a associação entre a psicologia individual e a psicologia da massa. Não se trata apenas de afirmar que não há indivíduo fora da sociedade, mas também de dizer que somos capazes de reconhecer na massa os mesmos processos psíquicos em funcionamento no indivíduo: identificação, idealização, estabelecimento de laços libidinais, discurso, inibição intelectual, intensificação afetiva. De posse desses instrumentos de análise, Freud realizou importantes investigações interdisciplinares, incluindo campos como a antropologia e a mitologia. Não creio que exista uma identificação absoluta entre a intervenção do psicanalista na clínica e sua intervenção na sociedade, mas o psicanalista é capaz de oferecer importantes esclarecimentos a respeito da dinâmica dos afetos, das formações sociais e das configurações de poder.

Em segundo lugar – e isso para mim é o mais importante –, a clínica psicanalítica é uma clínica do desejo. A dimensão do desejo na clínica atravessa praticamente toda a obra freudiana. Por sua vez, o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), em uma de suas definições da psicanálise, a entendia como uma ética, e não uma ética universalista ou dos direitos humanos, e sim uma ética do desejo. A psicanálise, portanto, é um dispositivo clínico que, por sua orientação ética para o desejo, não está comprometida com o ajustamento moral ou o adestramento político do paciente.

Toda análise é potencialmente subversiva. Essa subversão é radical, pois não oferece nenhuma garantia para esse partido político ou para aquele movimento social. Não se torna petista, feminista, comunista, militante do movimento negro ou do movimento LGBTQIA+ por conta de uma análise, pois uma análise aponta para a máxima diferença, aponta para a singularidade. E uma clínica do desejo ou um dispositivo clínico orientado por uma ética do desejo não se sustenta em um cenário político autoritário ou de traços fascistas. A orientação para o desejo e a singularidade extraída na clínica psicanalítica estão na contramão de qualquer autoritarismo e uniformização, seja de um governo, seja de um movimento de massa. A psicanálise sempre estará ameaçada diante de todo esforço de ajustamento, padronização e submissão ao Um (seja um líder, seja uma ideia). Por esse motivo, fico inclinado a sustentar que a psicanálise já é um posicionamento político. Dito de outro modo: sem democracia não há psicanálise.

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