A complexa relação entre o neoliberalismo e a dor

Por um lado, ela é cultuada, pois o sistema a vê como necessária para o “êxito”. Mas por outro, tenta suprimi-la, já que seria “para os fracos”. Em qualquer dos casos, tem-na como forma de submeter o outro – jamais de compreendê-lo

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Por Eduardo Guimarães

A dor, assim como o prazer, é um componente fundamental de qualquer doutrina moral. Quando Jesus enunciou a máxima “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, não somente definia o maior mandamento de sua doutrina, mas também estabelecia o amor como antídoto ou remédio à dor. Apesar de ser um mandamento universal e de não ser exclusivo a um povo ou a uma nação, a doutrina cristã de amor é mais especialmente uma resposta ao sofrimento experimentado pelos cansados e oprimidos, pelos perseguidos e pelos que têm fome e sede de justiça.

O valor da dor, entendida enquanto sinônimo de sofrimento, também pode ser identificado no budismo. De acordo com a primeira nobre verdade, a dor define a condição da existência de todos os seres humanos: “a vida é sofrimento”. Diferentemente do que propõe o cristianismo, além de a dor ser um componente de qualquer existência, não é exatamente o amor que a elimina, e sim a cessação do desejo por meio de orientações morais conhecidas como nobre caminho óctuplo. É verdade que o significado de sofrimento na doutrina budista precisaria ser aqui mais bem delimitado, mas serve ao nosso propósito entender que, assim como no cristianismo, o budismo lida diretamente com a dor ou sofrimento enquanto uma questão moral.

Ainda podemos recuperar o estoicismo, corrente filosófica da Grécia helenística fundada por Zenão de Cítio. O estoicismo dividia a filosofia em três áreas de investigação: lógica, física e, principalmente, ética. A ética estoica buscava, assim como o restante das correntes filosóficas helenísticas, um meio de alcançar a ataraxia, ou seja, a ausência de perturbação da alma. Para isso, era necessário viver de acordo com a razão universal, o que implicava em estabelecer diante da instabilidade e das dolorosas situações da existência uma postura de serenidade e imperturbabilidade.

Em todas essas correntes e doutrinas, a dor é reconhecida como objeto de reflexão moral que exige uma resposta não somente teórica, mas também prática. Espera-se entender a dor para então poder lidar com ela, ou seja, um saber que esteja envolvido em um saber-fazer.

Recentemente, a dor vem assumindo importância em discursos desvinculados, pelo menos aparentemente, de quaisquer doutrinas morais ou correntes filosóficas, mas que não deixam de ter efeitos ou de estar baseados em fundamentos morais. Estou me referindo diretamente àquele enunciado que vem circulando com muita frequência em ambientes de academia, CrossFit e corporativos: No pain, no gain (“Sem dor não há ganho” ou, em tradução literal, “Sem dor, sem ganho”). É verdade que a dor pode estar incluída na busca pela vitória em um torneio esportivo, na concorrência a uma vaga na universidade, na disputa por um cargo de gerência ou mesmo na superação de suas próprias marcas na corrida de rua ou no CrossFit, mas parece haver uma novidade quando nos referimos ao lugar adquirido pela dor no discurso sintetizado pela expressão No pain, no gain. Vejamos como isso acontece.

Há uma diferença entre possibilidade e necessidade. Reconhecer a possibilidade de que um desafio seja acompanhado de dores físicas ou psíquicas pode tornar o competidor mais atento à realidade do percurso que está prestes a seguir, levando-o a distribuir melhor sua dedicação a cada etapa do percurso. Avaliar em que momentos e de que maneira a contração muscular e o cansaço emocional costumam aparecer pode ser um recurso interessante para verificar como evitar ou pelo menos minimizar o desconforto desses momentos. No entanto, estabelecer a dor como uma exigência para uma conquista é algo muito diferente. Nesse segundo caso, a dor deixa de ser um efeito colateral de uma realização para se tornar sua condição necessária. Não se tenta mais lidar com a dor quando ela aparece, mas os meios que conduzem a ela tornam-se passagens obrigatórias para a realização ou aquisição de um objetivo.

Esse deslocamento do lugar da dor – de uma possibilidade para uma necessidade – é frequentemente acompanhado por um discurso moral que orienta o indivíduo a estabelecer com essa experiência desagradável uma relação de quase completa indiferença. Essa indiferença é a expressão de um esforço que visa impedir que a experiência da dor possa afetar a posição do indivíduo em sua busca por realização, ou seja, que a dor seja neutralizada a tal ponto que não provoque nenhuma diferença naquele que a experimenta.

A associação entre a valorização da dor para a realização de um objetivo e a indiferença em relação a ela parece paradoxal. Se a dor é condição necessária para uma conquista, então sua função e seu valor não podem ser simplesmente ignorados ou negligenciados. Por outro lado, uma postura de indiferença em relação à dor nos convida a concluir por sua falta de sentido e por sua irrelevância em um contexto moral. Como conciliar, portanto, uma visão de mundo que entende a dor como uma passagem obrigatória para a realização de um objetivo, ao mesmo tempo em que propõe uma postura de indiferença em relação a ela?

Ao que parece, estaríamos enganados se disséssemos que estamos diante de uma perspectiva moral de valorização da dor. As experiências desagradáveis não devem ser vivenciadas como um fim em si mesmas, pois a dor não é um valor em si mesmo, mas é aquilo que atribui valor a alguma coisa, um meio ou um instrumento que concede a importância de uma conquista ou de uma realização. A dor deve fazer parte de uma disputa ou de um projeto porque somente ela pode trazer um acréscimo de valor ao resultado conquistado, ainda que esse resultado seja a vitória, o triunfo ou o sucesso. Não podemos perder de vista que a dor é um meio ou um instrumento de atribuição de valor. A dor é uma passagem obrigatória, mas é em primeiro lugar uma passagem; é uma condição necessária, porém, uma condição – e não um fim. De acordo com essa perspectiva moral do neoliberalismo, portanto, não se deve se demorar muito na dor nem se debruçar refletidamente sobre ela, mas se deve se indiferença diante dela, mesmo sabendo de sua importância para a valorização da conquista almejada.

Em seu artigo Educação após Auschwitz (1967), Adorno já nos havia alertado para o perigo de uma educação voltada para a indiferença diante da dor. Segundo o filósofo, a indiferença diante da própria dor se generaliza como indiferença diante da dor em geral. A capacidade de suportar ou tolerar a dor, frequentemente associada a um ideal de masculinidade marcado pela severidade, conduz a uma intolerância diante das queixas endereçadas pelo outro a respeito de suas próprias dores. Nessa relação espelhada com o outro, o domínio sobre si mesmo é projetado como um domínio sobre o outro, e o domínio sobre o outro também é um domínio sobre si mesmo. Assim, a severidade e a indiferença à dor devem ser entendidas não somente a partir de uma perspectiva moral, mas também política.

No início da década de 1980, entretanto, quando surgiu a máxima moral “sem dor não há ganho”, não se tratava apenas de uma indiferença à dor. O discurso neoliberal foi capaz de situar a dor em um contexto de extração de ganho ou benefício, e não somente de estabelecimento de uma severidade consigo mesmo e com o outro. A dor não deve ser simplesmente suportada, mas deve ser buscada. Vejam que essa mudança de paradigma entre a época de Adorno e a nossa ainda conserva uma problemática: o que fazer com a dor. Vejam que não se trata de uma entrega infinita às queixas proporcionadas pela dor, e sim sobre o que fazer com ela, como falar dela.

Encontramo-nos, assim, diante de um discurso de instrumentalização da dor. A dor gera benefícios – por isso, não somente não deve ser evitada, mas deve ser almejada, pois sua vivência conduz a um acréscimo de valor na experiência profissional, amorosa e narcísica. Por outro lado, a queixa diante da dor perde importância e, no limite, torna-se um tabu, transforma-se no estigma daquele que violou um objeto sagrado. As queixas, as lamentações e as reclamações, ao contrário de serem ouvidas para mobilizar uma transformação conjuntural ou estrutural de um ambiente ou de uma prática individual ou coletiva, valem somente por indicarem aquele breve instante em que o sujeito levemente vacila, mas escolhe suportar e sustentar honradamente sua dor.

Os efeitos dessa perspectiva moral podem ser desastrosos. A dor e a angústia, experimentadas individual ou coletivamente, se não são submetidas a um cuidado e a um tratamento, podem conduzir ao pior. Seu retorno pode vir na forma não somente da indiferença, mas também da violência. Por fim, no enunciado No pain, no gain do discurso neoliberal, a dor é capitalizada enquanto instrumento de ganho e valorização do benefício. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um investimento, do mesmo modo como um capital é investido por acionistas na bolsa de valores.

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