Universidades Públicas: os próximos passos

Mobilização obteve conquistas importantes para o ensino superior. É vitoriosa. Agora, há condições para suspender a greve, evitar desgastes, acumular forças e buscar alianças com outros setores dispostos a lutar pela reconstrução do país

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Por Luis Eugenio de Souza e Naomar de Almeida Filho

Título original:
A defesa da Universidade Pública na atual conjuntura

Servidores técnico-administrativos e docentes de Universidades e institutos públicos federais se encontram em greve há cerca de 90 e 60 dias, respectivamente. Nesse período, ocorreram negociações com o governo federal que, apesar da decepção na obtenção de reajuste salarial este ano, resultaram em algumas vitórias para as categorias profissionais, assim como em pequeno incremento no orçamento das instituições de ensino.

Independentemente dos resultados alcançados no que tange à pauta de reivindicações, há que se celebrar o retorno do diálogo respeitoso e, sobretudo, do espaço para discussão e mobilização em prol do fortalecimento da Universidade pública. (Vale destacar que, em passado muito recente, a comunidade universitária teve que resistir a ataques que visavam seu aniquilamento. Nesse movimento, foi vitoriosa ao constituir um amplo arco de alianças na sociedade, capaz de rechaçar a distopia do Future-se, um projeto do governo protofascista que buscava transformar as atividades de ensino e pesquisa em commodities a serem negociadas nos mercados financeiros e que também reforçava as amarras burocráticas limitadoras da autonomia universitária.)

Se a presente mobilização não conseguiu reverter as perdas salariais dos últimos oito anos, nem conseguiu fazer o orçamento das universidades retomar os patamares de dez anos atrás, os pequenos ganhos não são desprezíveis, considerando a conjuntura política. Como se sabe, o governo Lula representa uma coalizão ampla e diversificada que conquistou a presidência da República, mas perdeu as eleições para o Legislativo. O Executivo federal, então, enfrenta um Congresso nacional empoderado, extremamente hostil e, muitas vezes, truculento. Entre outras estratégias, lideranças congressistas têm recorrido à suposta defesa de valores morais conservadores, que ganharam força em grandes segmentos da população, para obter maior controle sobre o orçamento da União e tentar emparedar politicamente o governo. Ao mesmo tempo, no plano econômico, poderosos setores rentistas, que dominam os outros setores de uma economia financeirizada, intensificam a pressão, inclusive manipulando o mercado de capitais, para continuar expandindo a renda que auferem das receitas públicas e reduzir sua contribuição ao financiamento do Estado.

O presidente Lula, com a habilidade que lhe é notória, tenta se equilibrar, buscando cumprir o programa apresentado durante a campanha eleitoral, sem abrir espaço para a repetição do golpe de 2016. Nesse sentido, parece equivocado afirmar-se que Lula deu as costas para sua base social ou que sucumbiu à agenda neoliberal. Ainda que insuficientes, são importantes os avanços na pauta econômica que beneficiam a população como um todo e, especialmente, os mais pobres: redução da inflação e do desemprego, crescimento do PIB, aumento da massa salarial, retomada dos programas sociais (congelados ou suspensos nos dois governos anteriores). Os servidores públicos também se beneficiam desse novo ambiente, seja com a volta da mesa permanente de negociações e o respeito ao direito de greve, seja com aumentos salariais (mesmo ainda insuficientes, mas em contraste com sete anos sem qualquer reajuste nos dois governos anteriores), reestruturação de carreiras e revogação de normas arbitrárias.

Saliente-se que os avanços em políticas públicas, mesmo timidos, não estão garantidos. De fato, nesse cenário de forte instabilidade, a mera preservação da atual coalizão governamental até 2026 passa a ser uma incógnita. Se qualquer candidato liberal-conservador, sem arroubos fascistas ou aparência estúpida, mostrar-se eleitoralmente viável, é muito provável que a ala centro-direita da coalizão abandone o governo Lula. Assim, mesmo com melhorias na situação econômica do povo, não será fácil a reeleição de Lula.

Diante dessa correlação de forças, como posicionar o movimento popular, em geral, e o movimento dos trabalhadores universitários, em particular?

De modo geral, é fundamental continuar atento às ameaças à democracia: lembrar que a extrema direita continua forte, tem significativo respaldo popular, e é capaz de aglutinar toda a direita e retomar o governo federal em 2026. Portanto, há que se disputar os rumos do governo Lula sim, mas não de maneira a facilitar uma oposição capaz de unificar direita e extrema-direita. Ademais, não é prudente apostar todas as fichas na s disputas eleitorais. Antes, é preciso construir um programa político articulador de todos os segmentos populares em suas lutas diversificadas: assalariados/as em luta por melhores condições de trabalho, trabalhadores/as precarizados/as na busca por direitos, sem-teto em luta pela moradia, sem-terra em prol da reforma agrária e da agricultura ecológica, povos originários e seu direito ao território e a uma existência digna, negros/as e o combate ao racismo, mulheres em busca da igualdade,população LGBTQIA+ em sua luta pelo direito a ser o que é, juventude em prol da autonomia, da educação pública e do trabalho decente. Um programa político assim formulado e realizado com efetividade pode desencadear mobilizações com capacidade de pressionar qualquer governo.

De modo particular, os servidores e as servidoras docentes e técnico-administrativos poderão intensificar as discussões com os/as estudantes e construir uma aliança estratégica com as classes populares. Como forjar essa aliança? Essencialmente, discutindo e amadurecendo no seu cotidiano um projeto de Universidade democrática e popular, mediante mobilizações permanentes e apenas não episódicas.

Acrescente-se que o novo ambiente político é propício à retomada dos debates sobre a Universidade pública. Em outro texto (Almeida -Filho e Souza, 2020), apresentamos algumas linhas do que seria uma Universidade popular, comprometida com a excelência acadêmica e a justiça social. Para respeitar esse compromisso, as Instituições de Ensino Superior (IES) precisam ter sua autonomia (capacidade de auto normação e autogestão) conquistada e fortalecida, com a liberdade e a autoridade de gerir a totalidade de seus recursos, dentro de um novo marco regulatório que supere o engessamento da gestão das IES federais, definindo-as como entidades portadoras de estatuto jurídico especial. Essa autonomia, por sua vez, estaria assentada em um contrato social de direitos, deveres e obrigações, a ser discutido e avaliado anualmente em conselhos sociais comunitários com participação majoritária de representantes de entidades da sociedade civil: sindicatos, movimentos sociais, associações de classe e órgãos de fomento cientifico e tecnológico. Esses conselhos estratégicos sociais opinariam sobre o desempenho da universidade, mediante relatórios periódicos, a serem considerados nos processos de avaliação da instituição.

Na dimensão acadêmica, as IES organizariam suas atividades de modo a favorecer a coprodução e a disseminação de um saber emancipador que reflita as realidades de educandos/as e educadores/as, identificando as necessárias transformações. O regime de ciclos – em que se articulam a formação geral, humanística e interdisciplinar e a formação profissional em campos específicos do saber – é, nesse sentido, uma estratégia pertinente e promissora que pode ser retomada, revisada e ampliada.

Conforme o texto acima citado, um aspecto central da Universidade popular é a inclusão social, étnico-racial e territorial. Além da ampliação da reserva de vagas para estudantes oriundos/as do ensino médio público e, dentro desta quota, para estudantes negros/as e indígenas, a Universidade popular promoverá a diversidade cultural e a identidade, ação e memória dos diferentes segmentos étnicos nacionais, valorizando os seus saberes, modos de vida e formas de expressão. Nesse ponto, é fundamental viabilizar a permanência de estudantes financeiramente vulnerabilizados/as, adotando alternativas como estágios remunerados, atividades práticas com bolsas, contratos de trabalho para atividades de pesquisa, extensão e ensino, como monitores ou instrutores. Esses programas podem ser financiados com a captação de recursos extraorçamentários, sobretudo em atividades de colaboração e apoio a políticas públicas de largo alcance, criando dotações próprias consignadas anualmente.

Essas são as características principais de um projeto de Universidade a ser defendido, urgentemente, na sociedade, no parlamento e no governo. Trata-se de uma proposta que se opõe radicalmente não apenas ao projeto autoritário de aniquilamento da Universidade, mas também a um projeto de educação acrítica, tecnicista e adestradora . A educação tecnicista se caracteriza por enfatizar a eficiência, a padronização e a preparação dos estudantes para o mercado de trabalho. Esta abordagem se baseia em teorias administrativas e psicológicas que priorizam o comportamento observável e a aplicação de técnicas específicas para alcançar objetivos específicos, em geral, limitados à produtividade laboral e ajustados à conformidade social. Não por acaso, o projeto tecnicista de ensino é defendido por fundações privadas, ligadas a poderosos grupos econômicos que consideram a educação como um capital humano, vetor fundamental para a modernização do capitalismo. Acrescente-se que, há muito tempo, essas organizações têm influenciado a formulação de políticas educacionais no Brasil, o que tem se repetido no atual governo.

Assim, se durante o governo anterior a luta em defesa da Universidade teve que se concentrar na resistência ao aniquilamento imediato, o eixo central agora se situa na disputa entre o projeto de uma Universidade pública com excelência acadêmica e compromisso social e um projeto de ensino superior utilitarista. O anúncio, no início de 2024, da construção de 100 novos institutos federais de educação, ciência e tecnologia, num momento em que o orçamento das universidades federais era reduzido em 5% em relação ao ano anterior (mesmo tendo o MEC recebido um aumento de mais de 14% em seu orçamento ), é revelador da persistência desse projeto de educação.

Note-se que o projeto tecnicista, embora contido no ataque ostensivo à Universidade pública, claramente a menospreza. Os membros da alta burguesia que vivem no Brasil já resolveram o problema de uma formação universitária de qualidade para seus herdeiros e herdeiras. Há boas universidades privadas, que oferecem educação integral e são capazes de formar lideranças empresariais, além de opções no exterior cada vez mais publicizadas.

A Universidade pública, solidária, popular e inclusiva, hoje interessa, sobretudo, às classes trabalhadoras e às populações excluídas que, depois das políticas de ações afirmativas, passaram a ter maior acesso aos cursos superiores. A Universidade pública, com excelência acadêmica e comprometida com a sociedade, é vital para fortalecimento das políticas públicas de grande impacto social que o governo federal tem se empenhado em retomar e consolidar, nos campos da proteção social, do meio ambiente, da saúde e, principalmente, da educação. Além disso, uma Universidade pública, com competência cientifica e tecnológica, é imprescindível para uma política internacional soberana, comprometida com a sustentabilidade planetária e com a paz mundial, liderada por uma nação economicamente pujante, com independência tecnocientífica em setores estratégicos. O pronunciamento do Presidente Lula na recente reunião com os reitores (Brasil, 2024) demonstra plena consciência da importância dessa tripla pauta para o país, ao demandar das IFES ajuda para avançar no tema conjuntural (mas não menos relevante) da soberania nacional no campo da Inteligência Artificial, para se integrar à luta contra o analfabetismo e a favor da educação básica pública e para continuar apoiando o esforço de recuperação das políticas públicas de seu governo.

Enfim, a defesa da Universidade pública na atual conjuntura será vitoriosa se tiver como eixo central a aliança de docentes, servidores/as técnico-administrativos e estudantes com as classes trabalhadoras e com os movimentos sociais. As pautas salariais pleiteadas são legítimas e urgentes e devem ser objeto de reivindicações e mobilizações. Contudo, a luta pela recuperação do poder aquisitivo deve assumir formas que não prejudiquem ou dificultem a aliança fundamental em defesa da própria Universidade.

Infelizmente, é isso o que poderia provocar uma greve de desgaste que se prolongasse: enfraquecesse os laços dos movimentos sindicais dos trabalhadores universitários com os estudantes, suas famílias e suas comunidades, ainda que reconheçam a justeza das reivindicações. Se foi inevitável deflagrar a greve, respondendo à justificada insatisfação com as condições de trabalho e aos compreensíveis sentimentos de decepção com um governo no qual tantas esperanças se depositaram, agora podemos retomar a análise estratégica e racional da correlação de forças, concluir o ciclo da greve, reorientar a mobilização e, reunidos, construir a luta política mais ampla e decisiva que nos desafia.

Referências:

1. ALMEIDA-FILHO, Naomar; SOUZA, Luiz Eugenio de. “Uma protopia para a Universidade Brasileira. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas”, 28 (105). 2020. Disponível em: <htps://doi.org/10.14507/epaa.28.5525>

2. BRASIL. Pronunciamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante reunião com reitores das universidades e institutos federais. Brasília, 10 de junho de 2024.
htps://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2024/pronunciamento-do-presidente-lula-durante-reuniao-com-reitores-das-universidades-e-institutos-federais

Luis Eugenio de Souza

Professor Associado do Instituto de Saúde Coletiva/UFBA

Naomar de Almeida Filho

Professor Aposentado do ISC/UFBA. Ex-Reitor da UFBA

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