Uma caminhada na cidade dos não-confinados

“Sei que o sensato e correto é ficar em casa em quarentena. Mas fico preocupado que só os fascistas e trabalhadores vêm à rua. Não se engane: para quem está aqui é muito claro que o protesto anti-bozo vem da segurança do confinamento”

Tarântula 01

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Tarântula confia nas medidas de quarentena e as recomenda, mas, frente ao colapso do precariado, arrisca buscar pontos de faiscamento – “lutar na internet é limitado”.

18 de março – panelaço na Bela Vista

“Encontrei A e fomos até a FIESP, onde decidimos descer a rua Pamplona para sentir a temperatura do barulho ao redor – ao mesmo tempo que batíamos a nossa panela. Na hora marcada do panelaço, 20h, muita gente veio fazer ruído às janelas. Os estabelecimentos comerciais abertos, essencialmente botecos e bares, tinham poucos clientes mas muitos funcionários, que nos olhavam surpresos. Alguns sorriam, outros não. Gritamos muito “Marielle Vive!” e “Fora Bolsonaro”, mais uma seleção de epípetos: miliciano, assassino etc.

A regra nesse bairro é que as calçadas fiquem desertas e as famílias detrás das guaritas, mas alguns coxinhas estavam às mesas na calçada e reagiram, mas foi fácil confrontá-los: o fantasma de Queiroz, o espírito de Marielle e o tamanho do pibinho facilmente desarmaram qualquer beligerância playboy. Vi mais cabeça baixa do que reprovação por parte dos tiozões e mauricinhos de bermuda e mocassim que caminhavam pelas calçadas.

Numa rua de alto padrão, muitos gritos Bolsonaro e até um carro parou para gritar “mito, mito”. Mas a juventude falou mais alto e chegamos à avenida Brigadeiro Luis Antônio sob o som das panelas.

“Há mil questões nessa nova conversão da classe média para a democracia, mas alguma coisa virou”, analisou a tarântula.

19 de março – quinta-feira

Tarântula foi ao centro pelo meio dia na quinta-feira:

“Fui até o Terminal Parque D. Pedro sentir a temperatura. A cidade algo esvaziada, mas ainda não deserta. O Terminal ainda bombando, com transporte normal e a feira na frente normal, com suas frutas e legumes. Camelôs, ambulantes e biscateiros todos na rua.

O dia estava muito quente e fiquei um pouco junto às barracas da feira que tem naquele espaço embaixo da passarela. Um camelô de cd e pendrive tocava músicas pop internacionais dos anos 80, aquele eletrônico safado. Fiquei de pé um pouco e ouvi umas três canções, incluindo uma do Duran Duran.

Eram 12h40.

Na rua 25 de Março, bom movimento, e os locutores de porta de loja faziam suas pregonárias. Um deles irradiava: “a melhor prevenção é uma boa refeição, especialmente uma boa salada, bem temperada. Venha pra nosso restaurante no primeiro andar”.

Caminhei até a Cracolândia e senti forte presença policial. Esse local é uma espécie de laboratório de quarentena e controle policial no modo sanitário.

Vi nas telas dos botecos e padarias o noticiário sobre a pandemia, mas ainda como um fenômeno mundial e não nacional. Vi, sem som, a matéria sobre a primeira morte em São Paulo”.

20 de março – sexta-feira de manhã: rua 25 de março sitiada

“Saí de manhã às 10h30 e fui ao centro da cidade.

Muita gente na praça da Sé, mas fiquei pouco e fui ao Terminal D. Pedro. Lá vi muita viatura da GCM e da prefeitura, incluindo uma de ‘Apoio à Remoção’.

Segui para a rua 25 de Março e a encontrei sob sítio. Grades fechavam tanto a 25 ela mesma quanto os acessos, tais como a rua Porto Geral, a rua da Constituição e outras. Muita polícia guardando os acessos e percorrendo a vizinhaça em viaturas. Algumas pessoas zanzando, incluindo uma repórter da Band com seu câmera, além um maluco que trazia nas mão um frame que parecia um guidão de bicicleta onde sua câmera ia acomodada.

Todas as lojas fechadas.

Cheguei à avenida Senador Queiroz e desci em direção ao Mercado Municipal. Vi muitos grupos de pessoas sentados nas calçadas: seguranças uniformizados, imigrantes, sacoleiros, funcionários de escritório.

Dobrei à direita na Barão de Duprat e vi intenso movimento. Muita gente parada, cinco viaturas da GCM, incluindo a força especial IOPE, uns 25 policiais. Achei a situação tensa e observei um pouco no meio das 100 pessoas lá. Entendi que estavam fechando a Galeria Pagé e que isso antagonizava os comerciantes. As negociações eram intensas, mas depreendi que o fechamento era geral no centro e que a determinação da prefeitura era para valer.

Um senhorzinho vendedor gritava “máscara, máscara, olhaí a proteção contra o corona, máscara”.

Retornei à 25 de Março e subi a rua da Constituição. Um jovem negro de uns 25 anos ao telefone, sentado na calçada, de camisa vermelha da empresa. Falava ‘Essas pragas sempre teve no mundo, vai morrer mesmo’ e outras frases de cunho evangélico.

Passei o Largo São Bento e entrei na rua São Bento, onde, num boteco, a tela trazia um noticioso da Globo. Depois de noticiário sombrio, o sorriso falso do apresentador apresentou ‘Mas também tem coisa boa, né?’ e passou a mostrar imagens de cantorias de quarentena na Europa.

Caminhei até minha casa”.

20 de março – sexta-feira de noite: panelaço

Desci a avenida Liberdade e no caminho vi que as pizzarias não apenas estavam abertas, mas um total de 11 funcionários estavam lá de prontidão. Vi um cabeleireiro com 3 funcionários, botecos com clientes.

Escrevi muito ‘Fora Bozo’ nas paredes e postes, que aliás estavam recém-caiados, o que deu excelente resultado gráfico.

Eram 20h30 quando cheguei ao meio da rua Condessa de São Joaquim. Parei lá para ouvir o panelaço. Os altos prédios eram de classe média-média, média baixa. Ao nível do chão, predominavam os cortiços populares. Tinha ouvido conversas de rua onde se falava criticamente do presidente, mas no geral os cortiços ignoraram os panelaços, que vibraram a partir das janelas dos prédios. Foi significativo.

Parei num boteco da avenida Brigadeiro. Na tela da TV, a agora famosa pantomima das máscaras: uma coletiva de imprensa do presidente com ministros. A Globo, depois, fez edição maliciosa do evento, realçando o teatralmente incompetente uso das máscaras.

Ouvi a conversa de caminhoneiros que estavam ali. O sotaque era baiano. Diziam que as estradas para o Rio de Janeiro estavam bloqueadas. Reclamavam do ‘voucher’ de R$ 200 oferecidos pelo ministro Paulo Guedes.

Desci até o Largo da Liberdade e no caminho vi mais de uma equipe de terceirizados trabalhando nas calçadas: provavelmente eram da telefonia ou da internet. Vi muitos entregadores com suas bicicletas e grandes mochilas cúbicas.

No Largo, tinha um luminoso publicitário onde uma privada aberta ilustrava um anúncio de fraldas geriátricas. Escrevi ‘Fora Bozo’. A mulher que aguardava sua condução no ponto viu mas não disse nada.

Caminhei de volta para casa.

21 de março – sábado

Eram 14h45 quando cheguei a pé no Largo da Liberdade, que estava totalmente vazio de comércio: nenhuma barraca e quase todas as lojas fechadas. Tinha descido a avenida e encontrado poucas pessoas – e muitos entregadores em suas bicicletas e motos.

Já na praça da Sé, encontrei a catedral fechada e forte presença policial. Umas 300 pessoas, alguns com pertences na mão, outros com mochilas.

Ouvi gente dizer “Eu não tenho dinheiro, tamo tudo contaminado, vamos é morrer”.

Não vi os pregadores evangélicos de costume, e temi que fosse o prenúncio de ação violenta da polícia. Os religiosos nunca arredam pé, exceto antes de manifestações de esquerda onde vai haver agressão policial. Acho que a polícia avisa-os.

De fato, pouco depois saíram quase todas as viaturas e soldados. Também eu deixei o largo e saí pelo centro buscando saber onde iam.

Notei muita gente espalhada pela cidade. Sem os fluxos de consumo, os sem-teto e miseráveis vieram ocupar as ruas e calçadas do centro. Muita barraca, cobertor e fogos improvisados. Muito homem zanzando de mochila nas costas.

No Teatro Municipal, umas 50 pessoas nas escadarias.

As viaturas policiais percorrendo as ruas e calçadões, meio ameaçadores.

No Largo do Paissandu, notei a faixa numa loja: ‘Aguarde estamos chegando’.

Notei que, além dos entregadores, os terceirizados do Estado e da iniciativa privada estavam trabalhando: os lixeiros, pedreiros, homens da telefonia e esgotos.

Andei até a Luz e tinha gente ao redor da estação. Eram 15h20.

A cracolândia estava cercada, mas me parece que este é o cordão policial usual. O Fluxo estava em plena atividade, mais de mil pessoas todas juntas no meio da rua.

Mas perto da rua Timbiras eu vi cinco viaturas ocuparem uma rua onde estavam carroceiros e agredirem moradores da rua.

Às 16h estava de novo na Sé, e o povo reocupava o meio da praça, já que a polícia tinha ido embora.

Eles provavelmente vão ser os primeiros a morrer num cenário mais distópico.

Caminhei para casa.”

22 de março domingo

Tarântula relata mais uma saída.

“Cruzei toda a avenida Paulista desde o Paraíso. Eram 15h45. O trânsito leve mas presente. Gente na calçada, principalmente seguranças, faxineiras, entregadores, joggers – e vários sem-teto. O Center 3 estava fechado, mas o Conjunto Nacional não. Farmácias, mercados e alguns botecos abertos, mas o resto fechado.

Desci pela rua Augusta até o Teatro Municipal e sentei na escadaria. Tinha umas 15 pessoas comigo lá, mais três famílias acampadas na frente das Casa Bahia, fechadas. Eram 16h20.

Logo ao lado, um pregador de uns 50-60 anos estava acompanhado de sua esposa e duas filhas pequenas. Ele tinha um violão e amplificador e cantou várias canções religiosas. Também pregou e recorreu a imagens de peste, castigo e pecado.

Tarântula 02

23 de março – segunda-feira

Tarântula leu no noticiário que trabalhadores do telemarketing protestaram contra as condições sanitárias de seu trabalho.

“Saí de manhã para checar endereços onde eu sabia ter empresas de telemarketing para ver se havia alguma movimentação.

Uma questão que arde no momento está sendo formulada como o equilíbrio dos custos das duas crises: a sanitária e a econômica. A quarentena e isolamento não devem incluir ‘serviços essenciais’, mas… o que é um serviço essencial? O telemarketing de alguma forma conseguiu essa atribuição, assim como a construção civil. E pelo jeito a faxina, pois ainda vejo na rua e nos prédios muitas faxineiras, e garis nas ruas. O sindicato dos metalúrgicos vai entrar em greve para proteger a categoria de trabalho agora insalubre. Na estação Brigadeiro do metrô, vi um moço que entregava panfletos com máscara sanitária.

Percorri a totalidade da avenida Paulista, onde vi escrito à mão no portão de vidro de um banco: ‘tapa na cara do patrão hoje’.

Desci a Bela Cintra e depois a Consolação. Cheguei no prédio da empresa Almaviva, que figurara no noticiário. Nada de anormal, só uns 10 jovens que fumavam na calçada. Mas na parede vi um cartaz A4 impresso: ‘Morte na PA’, que se referia às condições de trabalho do local.

Passei anda por mais duas empresas, na avenida São Luís e na Praça da República.

Segui a praça do Patriarca e lá vi a fila da vacinação na frente de uma UBS nova que tem lá. Dois sem-teto faziam muita algazarra, creio que queriam ser atendidos e não conseguiram. Chegou uma viatura da PM, depois mais três. Eles foram intimidados e acabaram por se aquietar. Achei que o centro da cidade está com um esquema policial de contenção e eliminação de conflitos em plena atividade.

A Praça de Sé cheia de gente mas sem polícia. Subi a avenida Liberdade.”

28 de março — Ato bolsonarista contra a Quarentena

A companheira GM deu o toque e passou uma chamada para um ato contra a quarentena, em consonância com a campanha bolsonarista do “O Brasil não pode parar”. Seria na Paulista, em frente a FIESP.

Tarântula se interessou e foi checar o ato. Relatou:

“Depois das carreatas por todo o Brasil na sexta dia 27, quis avaliar a força das bases nesse momento. As carreatas foram numerosas mas pequenas.

O que mais me preocupa é o impacto da narrativa da proteção dos empregos. Tenho saído na rua e visto que se o comércio fechou, muitos trabalhadores ainda saem às ruas e estão imersos no fluxo urbano. Saio às ruas e vejo muito sem-teto, pobres, descamisados e a baixa-renda que se sente muito abandonada por ter que se expor ao perigo.

Os entregadores estão em alta e trabalhando muito, e eles são bem um bolsão bolsonarista: jovens, conectados, formação escolar desfocada, hiperprecários, empreendedores do desespero, superconectados digitalmente. Eles estão simultaneamente expostos ao perigo e às redes bolsonaristas.

Está claro hoje que a classe média alta e média média está abandonando o Bozo, mas, como saber se eles não detém um contingente popular-digital

Saí a pé pela praça Oswaldo Cruz e lá vi uns 5 entregadores de bicicleta aguardando suas ordens de pedalada. Eram 19h30.

O tráfego na avenida mais ou menos intenso, comparável a um domingo de noite. Como em outras noites que saí para checar a temperatura da cidade, vi o comércio decididamente fechado, mas os corpos – e carros – mais ou menos circulam.

Vi cinco garis de uniforme laranja dentro do bancos operando os caixas eletrônicos, e também uma moça jovem que posava para um fotógrafo também jovem que a fotografava no canteiro central. A avenida Paulista tem muito disso, e achei curioso que tal registro acontecesse em período de quarentena.

Além disso, alguns passantes de classe média, casais jovens e muitos sem-teto.

Mas me chamou a atenção um homem de uns 40 anos, óculos, jeans e camisa social. Ele veio me falar ‘estou sem renda, sou professor e todas as minhas aulas foram canceladas. Me ajuda por favor’. Eu virei e disse ‘cara, estou na mesma. Estou sem renda e tirei todo o meu dinheiro do banco. Não vou mais pagar boleto e vou começar a quebrar vidraça de banco. Semana que vem sou eu na rua como você’.

Ele meneou a cabeça, entendeu e saiu fora.

As redes digitais são cruciais, mas não dá para não estar nas ruas. Dou fé nos imunizados. Testar massivamente para saber quem já está imunizado precisa ser pauta da luta, pois estes e estas são quem vão ao encontro os desesperados e necessitados. Percorrer os campos da morte não pode ser exclusivo do fascismo, os trabalhadores, falidos e devedores têm que saber que há quem contemple sua disposição para a luta sem prisioneiros. O assalariamento sujeita e adia.

Passei pela Gazeta e achei que ouvia ao longe uma panela solitária. Os panelaços têm me dado enorme conforto, mas aí eu percebi que era o alarme da academia Triathlon que gemia na noite paulistana.

Ao todo vi uns 60 entregadores na avenida, uns 30 deles em frente ao Center 3 (que estava fechado ao público), que é quase na esquina com a rua Augusta. Já o Conjunto Nacional estava aberto, mas só o mercado e farmácia funcionavam. Um casal jovem namorava e tirava fotos, e mais uns 4 sem-teto tentavam dormir sentados nos bancos do lugar.

Retornei caminhando à FIESP, que era o local da chamada para a vigília bolsonarista. Escrevi muito na publicidade iluminada dos pontos e nos postes recém-caiados ‘Fora Bozo’ e ‘Não pague nenhum boleto’.

Tem publicidade do documentário sobre Marielle, que traz seu rosto, grandão. Escrevi “Bozo me matou” em cima.

Chequei a FIESP de novo, mas nada de ato, nada de vigília. Eram 20h50 quando caminhei e fui para casa.

Depois fiquei sabendo que houve carreata bozonarista no centro, e que ela foi hostilizada pela galera. Aí sim.”

30 de março

Primeiros saques na Itália. Carreatas bolsonaristas ocorreram em todo o Brasil. Foram pequenas mas aguerridas: em São Paulo, pararam na frente da Globo e tentaram invadir. Houve violência. Parece que todos os atores políticos aceitaram que vai haver caos e violência. A questão é saber quem vai canalizá-la. A esquerda está confinada, os precários e fascistas estão nas ruas…

Tarântula saiu mais uma vez hoje:

“Saí no sol quente do meio dia e logo alcancei a Liberdade. Notei um pôster daqueles giratórios, que se desenrolam dentro de uma caixa de vidro, em um ponto de ônibus. Era sobre o feminicídio e trazia um alvo grande. Era da ‘Coalizão Negra por Direitos’. Ocupava o lugar onde antes estava o retrato grande de Marielle, por conta do documentário no Netflix.

Cheguei na praça da Sé e a multidão de sem-tetos estava mais ou menos igual, umas 500 pessoas. Vi pouca polícia hoje, mas notei que os pregadores evangélicos tinham voltado. Tinha dois deles, bíblia na mão e tudo. ‘Vocês não devem ser só ouvintes da palavra, vocês têm que ser escritores da palavra’.

Notei também dois homens-sanduíche. Hoje em dia, eles carregam os anúncios impressos em jalecos amarelos, não mais nos dois placares que sugeriam o lanche que lhes dá nome. Os dizeres eram: ‘Compro ouro, prata, platina, brilhantes. Euro, dólar. Temos advogado’.

Fiquei um pouco e desci ao Terminal Parque D. Pedro. Vi nas calçadas, sentados e de pé, gente que comia a marmita do restaurante popular Bom Preço, da prefeitura. Agora eles só servem a dita ‘quentinha’ em mãos e não mais abrem o salão.

O mercadinho embaixo da passarela que leva ao terminal estava hoje cheio de camelôs, uns 10, todos vendendo as mesmas caixas do mesmo cigarro.

Segui até a rua 25 de Março, que continua gradeada e às moscas. Nenhuma loja aberta. Subi a rua da Constituição e dobrei à esquerda para chegar no Largo São Bento.

Segui pela rua São Bento e alcancei a Praça do Patriarca. Na esquina, um pregador. Ele falava de Sodoma e Gomorra, de pecado e castigo divino. Mas gritou também ‘o Lula roubou o Brasil agora eles estão tudo de boa, e ele ainda quer meter a língua’. Disse que ‘ele fez estádio que ninguém usa e que agora não tem onde colocar paciente’. Ordenou que ‘não é para roubar, nem fazer carnaval, viadagem e mostrar a bunda’. Engatou num discurso quase ecologista, afirmando que a ‘terra está desfalecida, a terra não aguenta mais. A terra é pra plantar feijão, e ela foi feita por Deus’. Continuou dizendo que ‘no oriente não tem mais terra, na China e no Japão, e eles vêm aqui explorar o Brasil. Ele não tem mais água potável, as fontes secaram, os rios secaram’.

Estava de pé ouvindo, quando chegou um homem da rua. Ele veio conversar e criticou o pregador, reclamando de sua intolerância. Disse ‘Ele fica na praça da Sé, mas hoje veio até aqui. Eu já bati nele uma vez, faz uns anos, eu e uma outra travesti. Ele falou mal de nós e a gente não aceitou’. Disse que estudou geografia no passado.

Segui para a Praça da República e depois para a avenida Brigadeiro. No caminho, todo o comércio resolutamente fechado, exceto as lanchonetes que serviam nas fachadas as pessoas que faziam filas espaçadas.

Claramente quem estava nas ruas hoje eram, além dos desesperados, o baixo-clero das empresas, mais entregadores e precários.”

Tarântula 03

31 de março

Tarântula: “Hoje o panelaço era especial: contra o aniversário do golpe de 1964. Esperava muito do ato hoje e resolvi não ficar em casa, sem dar uma força sonora neste bairro de classe média que no geral apoiou Bolsonaro. Em outros pontos da cidade, os panelaços são diários, mas aqui é mais intermitente. Sei que minha rua tem bolsonaristas de raiz, e devolver o pavor dos anos Dilma é algo que me está na garganta há 4 anos.

Resolvi ir ao bairro da Bela Vista para o panelaço histórico de hoje. Na casa de R, já tinha testemunhado uma bateção de panela e achei lindo. Também estava decidido a testar bater panela na rua e perambular fazendo barulho.

Saí de casa às 19h30 e desci até a rua Condessa de São Joaquim. Esta rua tem muitos cortiços, e sempre é interessante, nestes tempos de quarentena, ver como essa gente se vira. Ao fundo, prédios de classe média.

Os cortiços e moradias de baixa renda tipicamente têm alta densidade. Muita gente por cômodo gera um excesso de corpos que acabam buscando a rua. Assim era Santa Cecília nos anos 2000. O excesso gera vibrante cultura de rua, com botecos, rodas de samba, grupos de prosa, namoros, cadeira na calçada, passeio de cachorros e encontros em geral depois que o sol se põe.

Também assim é o centro com suas ocupações. Na época que atuei na ocupação Prestes Maia, percebemos que as atividades de domingo de manhã atraíam muitas crianças, mas não os moradores adultos que desejávamos. Depois de algumas semanas, um morador revelou que o domingo de manhã é o dia preferido do encontro sexual dos moradores adultos, trabalhadores que eram, e que infalivelmente faziam todos os outros membros da família saírem para a rua e deixá-los em paz no leito conjugal dominical.

Assim, a rua Condessa de São Joaquim estava vibrante com corpos, a despeito da quarentena estadual que de fato logrou fechar todo o comércio da cidade. Ainda na rua Barão de Ijuí, vi 5 jovens que curtiam um churrasco na calçada. Vi alguns mercados abertos e cheios de gente, além de minúsculos bares que improvisavam balcão na porta que dava na calçada. No portão de uma vila de cortiços, vi três viaturas policiais piscando suas luzes. Na calçada oposta, dois travestis de shortinho.

Avancei e desci a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, descendo a rua Francisca até a rua Dona Maria Paula, que é a avenida da Câmara Municipal.

Tinha trazido uma panela e escumadeira na mochila, esperava fazer um auê.

Era cedo ainda (umas 20h), e o pronunciamento do presidente era só às 20h30. Avancei até a rua da Abolição, que tomei à esquerda em busca de algum lugar onde fosse possível tomar uma cachaça e esperar a hora.

Não achei nada e fui até a esquina da rua Major Quedinho com a Santo Antônio. Achei um boteco que servia bebidas em copos de plástico para beber na calçada, ‘só delivery’. Dentro, uma tela de televisão que mostrava o Jornal da Band. Peguei uma Seleta e observei o entorno.

Apesar de bem mais vazio do que o normal, umas 15 pessoas socializavam naquela esquina. Todos pareciam ser locais, e notei nas conversas um certo erotismo louco que reconheço no centro em geral. Os muitos sotaques sugeriam população precária e imigrante, e o local era um misto de aventura metropolitana anônima com cidade do interior. Um ou dois pedintes, moças muito maquiadas, velhões de bermuda e chinelão, jovens de cabelo hipster.

Saí fora perto das 20h30 e fui subir a rua Genebra. A explosão de panelas e gritos me fez tirar da mochila a frigideira e bater muito. Aquele bairro era de grande energia, muitos jovens.

Mas já tinha notado, do alto do apartamento de R., que os muitos entregadores ao nível da rua não reagiam ao panelaço. Vários condutores de cães e passantes em geral também.

Então bater panela da rua deu outra sonoridade ao protesto, e pegou toda essa galera do asfalto de surpresa. Vi que muita gente veio à janela, não em protesto, mas para ver o que se passava na rua. Caminhei até a rua Francisca fazendo barulho, e fiquei muito feliz com as carrancas que me encaravam das calçadas. É muito potente estar nas ruas, é um espaço de disputa hoje.

O ar estava cheio de gritos e batidas estridentes, é lindo e de lavar a alma: espero um momento assim desde 2016.

Sei que o sensato e correto é ficar em casa, isolar o contágio e observar a quarentena. Mas fico preocupado que só os fascistas e trabalhadores vêm à rua. Não se engane: seu entregador é um jovem bolsonarista e, para quem está na rua – faxineiras, seguranças, camelôs, moradores de cortiço, sem-teto, entregadores, motoristas, trabalhadores do telemarketing, garis, terceirizados – é muito claro que o protesto anti-bozo vem da segurança do confinamento. A esquerda precisa evitar esse lugar da segurança ao custo do perigo alheio.

As recentes carreatas são pequenas e ridículas quando o coxinha não deixa seu carro, mas é um perigo perigosíssimo que só eles estejam nas ruas. O discurso de proteção ao trabalhador precário de Bolsonaro é hipócrita e falso, mas ele é o único que (no cenário construído pela extrema-direita) sai às ruas com seu povo, sem medo da morte. No momento, as narrativas destituintes estão com as direitas extremas. A Esquerda assalariada está fora da luta e, da rua, é alvo fácil da violência difusa e louca que será um levante popular.

Breve, em questão de semana ou duas, milhões de precários e autônomos vão sangrar com seus boletos, e se saírem às ruas só vão encontrar os fascistas que estarão na rua com eles, de braços abertos.

O desespero dos precários, descamisados, microempresários, camelôs, intermitentes e sans-cullotes em geral precisa encontrar a insurgência de esquerda em algum lugar. Não podemos esperar que a PM de Dória, que tanto reprimiu Black-Blocs, restitua a ordem. Talvez seja um dilema sem solução, mas um levante popular potencialmente maior que 2013 pode não encontrar eco de corpos na esquerda. Não adianta só autorar artigos e análises de conjuntura. É fofo mas é pouco.

A potência do protesto na rua precisa ser abraçada por quem puder dentro do campo popular. O precariado já sacou quem vai lutar e quem vai esperar passar a crise.

‘É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte’ pode não ser apenas uma citação na tese de doutorado ou um item da playlist da quarentena.

A rua sabe. Está posto o dilema”.

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