Stedile na CPI: duas visões de mundo

Cercado de baixarias de parlamentares extremistas, o depoimento do dirigente histórico do MST trouxe para a comissão da Câmara um debate invisibilizado: o papel que o campo pode ter na preservação da natureza e para gerar justiça social

Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
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A presença do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stedile, na CPI do MST nesta terça-feira (15), foi didática em diversos sentidos, mas fundamental para mostrar duas visões de mundo que se relacionam com uma discussão urgente que o Brasil precisa fazer a respeito do seu futuro, além de trazer elementos sobre o futuro do próprio colegiado, criado para constranger o governo e o próprio movimento.

Do ponto de vista político, além das usuais baixarias promovidas por parlamentares extremistas, o relator Ricardo Salles insistiu diversas vezes, com a exibição de vídeos editados, em resgatar (poucas) denúncias contra assentamentos ligados ao movimento que foram alvo de diligências da comissão. “Temos 500 mil famílias assentadas, se vocês usassem uma amostra aleatória de 1%, já seriam 5 mil famílias que vocês teriam de ouvir. Nós não podemos atribuir alguns casos, que devam existir, ao MST todo”, contestou Stedile, gerando uma resposta, no mínimo, peculiar de Salles: “A discussão estatística só se presta a desqualificar o debate.”

Anunciando que os fatos repetidos iriam ser citados no relatório, Salles demonstrou que a principal aposta da oposição é tentar passar a imagem de que estes casos são generalizados no movimento, pouco importando se são ou não reais, dado que a bancada dos parlamentares da extrema direita têm como objetivo recortes, edições e distorções para divulgação em redes sociais. Mas até agora não há nada que ultrapasse a própria bolha de apoio destes deputados, e isso ficou evidente na sessão.

Também chamou a atenção o fato de o relator mencionar o que seriam condições desiguais entre uma liderança de um acampamento, que teria privilégios econômicos em relação ao restante da comunidade. Para o ex-ministro de um governo cujo presidente, em seus dois discursos de posse, não pronunciou a palavra “igualdade” sequer uma vez, seria um avanço, se não fosse apenas oportunismo. O mesmo vale para sua alegada preocupação com condições de trabalho de acampados, já que, como aponta matéria do De olho nos ruralistas, Salles não só apoia uma PEC que acaba com a Justiça do Trabalho, prejudicando a possibilidade de punição, por exemplo, de responsáveis pelo trabalho escravo no país.

É preciso ainda destacar o quanto o relator buscou monopolizar a discussão, valendo-se de uma prerrogativa enunciada pelo presidente do colegiado, Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS), de que o parlamentar teria o direito de pedir de forma praticamente ilimitada a palavra por ser responsável pela instrução processual, ainda que a maior parte de suas intervenções não tenha sido para inquirir, e sim para manifestar opiniões.

Modelos de agricultura no Brasil

Fora o embate propriamente político, posições a respeito da economia brasileira, o meio ambiente e a própria economia ficaram explícitas, em especial nas falas de Salles e Stedile. Quando perguntado sobre sua opinião a respeito do agronegócio, o líder do MST falou a respeito dos distintos modelos de produção agrícola brasileira.

“Nesses últimos 30 anos, a agricultura brasileira se confronta em três modelos de exploração da agricultura. O primeiro é o latifúndio, não como sinônimo de grande propriedade, mas como modelo”, pontuou, aproveitando para alfinetar elegantemente Salles ao afirmar que, como ministro, ele “deve ter conhecido bem lá na Amazônia”. “É um modelo em que o capital é predador da natureza, ele não se interessa em produzir, quer se apropriar dos bens da natureza pra acumular riqueza.”

Stedile seguiu. “O segundo modelo é o agronegócio: São grandes propriedades que usam técnicas mais avançadas de sementes transgênicas, mecanização e agrotóxico. Produzem o que? Produzem commodities para exportação, que não necessariamente representam distribuição de riqueza”, apontou. Este ponto foi contestado por Salles, que usou o repetido argumento de que o agronegócio é responsável por uma grande produção de riqueza.

Na prática, produz riqueza concentrada e gera pouco emprego. De acordo com o Censo Agropecuário do IBGE de 2017, como destaca reportagem da RBA, havia 15,1 milhões de trabalhadores em atividades agrícolas, sendo dois terços na produção familiar. Os demais, 3,9 milhões, eram assalariados e apenas 40% tinha carteira de trabalho assinada. No total, aproximadamente 10% tinha empregos formais. Comparando-se com os dados de 2006, a população ocupada no meio rural caiu de 16,5 milhões para 15,1 milhões.

O coordenador do MST destacou que uma parte do setor já busca alternativas que não as do uso de agrotóxicos e de destruição do meio ambiente. “Uma parcela do agronegócio eu acredito que ‘vai para o céu’, porque eles estão se dando conta de que podem ganhar dinheiro e aumentar a produtividade com outras práticas. Agora, o agronegócio que só pensa em lucro está com os dias contados”, disse.

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“O outro modelo é a agricultura familiar, que se dedica a produzir alimentos, que em geral não usa agrotóxicos, e é respeitoso ao meio ambiente, sabe que não pode derrubar árvores”, completou.

Visões de futuro

A fala de Stedile foi importante pelo didatismo e por fazer a conexão, negada pela extrema direita (e por parte da direita) dentro e fora do parlamento, da atividade agrícola realizada de forma predatória com prejuízos ao meio ambiente que, a médio e longo prazo, inviabilizam a própria produção.

Por outro lado, Salles foi explícito sobre o que pensa o segmento ao qual pertence ao negar que haja no Brasil a necessidade de reforma agrária. Voltou a citar a apresentação oral de Xico Graziano cujo conteúdo foi apontado como distorcido por autores que tiveram estudos citados, como eles mesmos indicaram neste artigo publicado no Brasil de Fato.

O relator ainda aludiu a outro dado recortado de forma equivocada, falando sobre o papel dos assentamentos do Incra no desmatamento da Amazônia Legal, sem considerar o contexto histórico e a presença de projetos de colonização fundiária implantados a partir de 1970, durante a ditadura militar, no Brasil. “Para Otávio Ianni, a migração espontânea para a Amazônia representava uma reforma agrária de fato, enquanto a colonização dirigida representou a contrarreforma agrária na Amazônia. Porém, esta estrutura fundiária não abriu grandes perspectivas de acesso à terra para a maioria dos trabalhadores do campo, por possibilitar, dentro da ótica capitalista, a liberação de uma fração de trabalhadores no campo, que perpetuaram o processo centenário da ‘marcha para o oeste'”, lembra neste artigo a doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia, Cinthya Martins Jardim.

Já perto de um fim melancólico, a CPI ao menos levanta uma discussão invisibilizada. E também desnuda a estratégia dos extremistas, que não se resume a criminalizar o MST, mas os princípios que ele defende, como a promoção da reforma agrária e o combate à pobreza no campo. É algo que diz respeito ao campo, mas também à cidade, já que o alimento consumido na zona urbana se relaciona com a distribuição das propriedades rurais e à forma como ele é produzido. A redução efetiva da desigualdade no país passa necessariamente por aí.

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