Que tenhamos a coragem de enterrar a GLO

Lei, que permite enquadrar movimentos sociais como “força oponente” e autoriza munições letais, quase foi a base para um golpe de direita. Poucas vozes a contestaram em 2014, quando governo Dilma a propôs. É hora de revogá-la

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Governo Federal prepara alteração na legislação sobre o uso das Forças Armadas em crises de insegurança, ordem pública ou instabilidade institucional. Medida mais que necessária e que já vem tarde. A tentativa de Golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023 tinha por estratégia coagir o governo recém-empossado a decretar uma GLO. Imaginem se isso tivesse ocorrido? O presidente Lula teria passado ao Comando Militar plenos poderes para a repressão social e o reordenamento da ordem institucional. Seria um caso inédito de Golpe com consentimento legal do golpeado. Felizmente houve sabedoria em debelar o golpismo sem a intervenção militar. O ministro da Justiça, Flávio Dino, foi sagaz e corajoso na condução do processo, nomeando seu próprio secretário executivo, Ricardo Capelli, como Interventor Federal. O que adveio, conhecemos pelo processo em curso, o golpe de Estado foi debelado e a democracia foi preservada.

Porém, cabe compreender a natureza dessa “tal” de GLO, que muitos comentam, mas pouquíssimos leram, conhecem ou refletiram sobre seus perigos e artimanhas. Bem como sobre a autoria da GLO em vigor. A lei é de 31 de janeiro de 2014, quando tínhamos Dilma Rousseff como presidente.

Como historiador de profissão, entendo que é preciso não deixar a sociedade esquecer, nem que seja para o futuro, como aprendizado.

Em 2014, fui uma das únicas vozes no país, infelizmente, a escrever contra a portaria GLO, com força de decreto presidencial. Vou reproduzir o artigo, à época publicado em minha coluna na Revista Fórum. Por que fazer isso agora? Porque é preciso teimar em esperançar. E a esperança tem duas filhas lindas, como disse Santo Agostinho: a indignação e a coragem. 

Que dessa vez tenhamos coragem em acabar de uma vez por todas com a GLO, substituindo-a por uma lei de Defesa da Soberania Nacional, da Democracia, da Justiça e dos Direitos do Povo.

Segue o texto, publicado originalmente na Revista Fórum, em 02/08/2014. 

O Estado contra o povo

Por Célio Turino

“Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. 
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. 
Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. 
Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. 
Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse” 

Poema “E não sobrou ninguém”, adaptado de sermão realizado por Martin Niemôller, pastor luterano, que ousou contestar Hitler logo no início de seu governo. Ainda cabe nos tempos atuais. 

Passadas as “Jornadas de Junho” de 2013, o que estamos assistindo é uma sistemática reconstrução do aparato de um Estado de Exceção. Após a repressão desmedida da polícia, houve a ausência quase deliberada de ação preventiva por parte dos aparatos de segurança, em que a população, atônita, tinha que assistir cenas de violência e depredação em manifestações de rua, no que acabou afastando as pessoas destas mesmas manifestações. Agora, há um vil processo de manipulação policial/judicial/midiática, com inquéritos mal formados, prisões ilegais e informações falsas. 

Em São Paulo, segue a prisão ilegal de dois manifestantes em atos contra a Copa, Rafael Lusvarghi e Fábio Hideki, o primeiro tendo sofrido tortura e choques elétricos em dependências da polícia e o segundo, funcionário e estudante de jornalismo na USP, encarcerado no presídio de segurança máxima de Tremembé.  Apesar de algumas declarações e protestos contra esta degeneração dos direitos democráticos, a rede de solidariedade ainda se revela pequena. Em paralelo, em ação institucional até mais grave, ficamos sabendo que o Ministério da Defesa vai monitorar as manifestações e movimentos sociais com a reestruturação do Centro de Inteligência do Exército (CEI), o mesmo que levou tantos brasileiros à tortura e à morte durante e Ditadura Militar. A partir de agora, os movimentos sociais serão considerados a principal “força oponente” à ordem interna e seus participantes, igualados a criminosos. 

Tudo sob o amparo de uma portaria ministerial com força de decreto presidencial, a portaria da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), de 31 de janeiro de 2014. Esta é uma medida da maior gravidade e representa o maior retrocesso em liberdades democráticas desde o fim da Ditadura. 

Leiam, vejam com seus próprios olhos! 

São 66 páginas de pura volta aos tempos obscuros da Ditadura. O objetivo da Portaria é amparar a intervenção militar nos protestos sociais, classificando manifestantes como Agentes de Perturbação da Ordem Pública – APOP” e manifestações como “Ameaças” (p. 15). Nas Disposições Gerais, as operações de GLO são caracterizadas como operações de “Não Guerra”, “…embora empregando o Poder Militar, no âmbito interno, não envolvem o combate propriamente dito, mas podem, em circunstâncias especiais, envolver o uso de força de forma limitada” (p. 17). 

Até o momento reluto em crer que um governo comandado por um partido que se diz dos trabalhadores, em que a presidenta foi presa e torturada, tenha cometido tamanha desfaçatez, permitindo colocar as Forças Armadas contra o povo, praticamente reeditando a Lei de Segurança Nacional. Admite-se, inclusive (PASMEM!!!), o uso de munição letal. Leiam o artigo 4.2.3.2, que libera: “O uso da força nas Op. GLO, em princípio, será progressivo. Deverá ser priorizada a utilização de munição não-letal e/ou de equipamentos especiais de reduzido poder ofensivo” (p. 26). 

Está escrito, está publicado como documento oficial! 

Houvesse a aplicação desta Portaria nos tempos da campanha das Diretas Já!, com milhões de pessoas nas ruas, protestando contra o governo, assim como em junho de 2013, o Brasil teria vivido um massacre de inocentes. Para aqueles que não se lembram, pouco antes das eleições municipais de 1988 houve a greve dos metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), ainda estatal, o exército interveio e matou três grevistas, foi uma comoção nacional. Nos tempos atuais, sob o amparo da Portaria da Garantia da Lei e da Ordem, estes assassinatos estariam legalmente amparados. 

Precisamos fazer algo! 

Esta Portaria tem que ser anulada imediatamente. Porém, até o momento, somente os deputados do PSOL apresentaram um decreto legislativo pela inconstitucionalidade da Portaria, por ferir princípios democráticos estabelecidos na Constituição de 1988. Certamente há mais deputados e forças democráticas e progressistas a se juntarem neste processo, mas é necessário que as pessoas expressem seu repúdio com mais intensidade. Forças Armadas são constituídas para defender o povo de um país contra intervenções e ataques externos, jamais para se voltarem contra seu próprio povo. 

Antes que seja tarde, antes que não sobre ninguém, precisamos ir às ruas com coragem!  

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