R$ 600: a próxima crise do governo Bolsonaro

Maia contraria Planalto e defende prorrogar Auxílio Emergencial. Guedes barganha: “Renda Brasil” em troca da privatização dos serviços públicos. Mas é possível criar Renda Básica emitindo dinheiro – como se faz para salvar os bancos…

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Em Renda Básica, novo boletim informativo de Outras Palavras | Imagem: Aroeira

Esta é uma edição experimental do boletim Renda Básica, que Outras Palavras está criando, em colaboração com movimentos que lutam em favor da proposta. Conheça aqui nossa página sobre o tema. E receba as próximas edições, por e-mail, inscrevendo-se aqui.

Veja, nesta edição:
> Rodrigo Maia contraria Bolsonaro-Guedes e fala em prorrogar os R$ 600
> Por que manter o Auxílio Emergencial quebra o “ajuste fiscal” dos neoliberais
> Guedes cozinha um Plano B: quer Renda Básica para mercantilizar os serviços públicos
> Como defender uma RB que não tire um só centavo dos gastos sociais
> O papa Francisco propõe desvincular o direito a uma vida digna do trabalho assalariado

BATALHA PARA PRORROGAR OS R$ 600 ENTRA EM FASE DECISIVA:

Um tuíte do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, despachado ontem, esquentou o debate sobre a extensão do Auxílio Emergencial de R$ 600. Ao contrário de reduzir o benefício, como quer o governo Bolsonaro, Maia defendeu estendê-lo nos valores atuais, por “dois ou três meses”. E pediu pressa: “Tenho certeza que a minha posição é acompanhada pela maioria dos deputados. Manter esta ajuda é premente. O governo não pode esperar mais para prorrogar o auxílio. A ajuda é urgente e é agora”, escreveu ele, segundo o Spunik Brasil e O Globo.

A posição de Maia é crucial. Conforme explicou José Antonio Moroni, há dias, os presidentes da Câmara e do Senado são, em meio à pandemia e a um Congresso com sessões virtuais e pauta ultra-centralizada, os donos da agenda do Legislativo. E, em ano eleitoral, se o assunto vier à tona, é bem provável que mesmo os parlamentares mais conservadores não o rejeitem.

A Folha mapeia o tamanho do problema (para o governo…):

Na edição de ontem do jornal, o colunista econômico Vinícius Torres Freire traçou, aliás, um competente panorama do debate, nas instituições e entre a sociedade civil. O governo Bolsonaro está entre dois fogos. Mais pressionado do que nunca, após os desdobramentos do caso Queiroz, o presidente sabe que cortar o benefício, em meio à pior fase da pandemia, pode devastar sua popularidade. Mas a turma de Paulo Guedes prefere “as águas gélidas do cálculo econômico”.

Nos números desta equipe, o Auxílio Emergencial, que socorre 63,5 milhões de brasileiros, já “custou” R$ 154 bilhões (51 bi ao mês). A proposta de Rodrigo Maia custaria mais R$ 102 bi e levaria a conta a 3,7% do PIB. As 165 organizações que compõem o movimento Renda Básica que queremos defendem que os R$ 600 sejam pagos até o fim do ano, o que custaria 6,6% do PIB. Como lembra Torres Freire, 50% a mais que os salários do funcionalismo federal a cada doze meses.

O colunista mostra que o governo está preocupado com o velho conceito de “resultado primário” das contas do Tesouro. Essencial para as políticas neoliberais, a meta de “gastar apenas o que se arrecada” está totalmente comprometida: o chamado “déficit primário” deverá girar entre 10,5% do PIB (se os R$ 600 terminarem na terceira parcela) e 15% (se vingar a proposta Renda Básica que queremos). Ou seja, o dogma está morto.

Adeus à agenda neoliberal

Em tom de desalento, outro colunista da velha mídia (Fernando Dantas, no Estadão) mostrava na sexta-feira que a pandemia explodiu o “Plano A” dos neoliberais. “O tema das reformas, como a administrativa, a tributária e a PEC emergencial, sumiu do mapa”. No caso, claro, o que ele lamenta é o naufrágio das contrarreformas – para as quais simplesmente não há clima, no Congresso, em meio à pandemia e ao colapso da economia e do emprego. É aqui que entra a hipótese do Plano B.

PAULO GUEDES MONTA SEU CAVALO-DE-TRÓIA:

O ministro da Economia já havia anunciado, na última reunião ministerial, que trabalha num projeto de “Renda Brasil”. É uma deformação da Renda Básica, uma espécie de cavalo-de-Tróia. Implica perenizar o Auxílio Emergencial – porém, num valor muito baixo, para evitar que só salários sejam pressionados para cima… Envolve, também, mercantilizar os serviços públicos. Ou seja, a Renda Básica deixa de ser um direito novo (totalmente em sintonia com o avanço tecnológico e o risco de desemprego estrutural) e se reduz a um estímulo à privatização da Saúde, Educação, Previdência, etc. O primeiro passo, indicou o ministro, seria vincular a criação da “Renda Brasil” à aprovação da “Carteira de Trabalho Verde e Amarela” – aquela que reduz direitos sociais e esfaqueia o orçamento da Seguridade.

Na última edição do Valor Econômico, a colunista Claudia Safatle conta que Guedes está trabalhando a todo vapor na proposta. Uma força-tarefa de técnicos dos ministérios da Economia e da Cidadania está debruçada nela. Para o governo e a oligarquia financeira haveria duas vantagens adicionais: do ponto de vista simbólico o “novo programa” substituiria o Bolsa-Família, marca dos governos do PT, abrangendo um número maior de beneficiários e uma prestação mensal superior. Muito mais importante: se o valor for de fato baixo, e se houver privatização dos serviços públicos, a bancarização dos mais pobres (que receberão a “Renda Brasil” em contas bancárias) criará, quase automaticamente, a base para venda de Previdência, Saúde e Educação privadas, via sistema financeiro.

Como se vê, dias intensos nos aguardam…

QUE TAL EMITIR DINHEIRO PARA AS MAIORIAS?

A base da proposta de Guedes é algo ultrapassado. O cálculo do ministro sugere: se transferirmos x para a sociedade, na forma de renda direta, então este mesmo x terá de ser subtraído do gasto social, para que o equilíbrio se restabeleça a conta se feche. É preciso cortar na Saúde, na Educação, no Saneamento etc.

Porém, observe: numa única penada, em 23 de março, o Banco Central transferiu à banca privada R$ 1,2 trilhão, em benefícios financeiros e fiscais. Nos países do centro do capitalismo, o movimento é ainda mais intenso. O Fed (BC norte-americano) anunciou que poderá emitir quantidades ilimitadas de dinheiro para evitar que grandes corporações e bancos em apuros quebrem. Nem um único centavo destas transferências trilionárias sai dos Orçamentos públicos. Não é preciso debater nos legislativos. O dinheiro é simplesmente impresso (eletronicamente, quase sempre) e distribuído ao topo da pirâmide social.

Há alguns anos, a Teoria Monetária Moderna tem argumentado que, sendo assim, também é possível emitir dinheiro em favor das sociedades. Para uma Renda Básica, por exemplo. Mas também para que os Estados possam ampliar vastamente o gasto social (Educação e Saúde públicas de excelência), para os serviços de infraestrutura (redes de metrô nas metrópoles, revolução urbanística nas periferias, por exemplo) e para a conversão a uma economia pós-carbono.

Vale examinar melhor esta teoria. Ela sugere que uma Renda Básica (inclusive bem superior aos R$ 600) pode ser adotada ampliando, ao mesmo tempo, os serviços públicos e sem esperar por uma – necessária, porém provavelmente demorada – Reforma Tributária. O requisito básico é ter, no comando do Estado, forças políticas dispostas à mudança.

A PROPOSTA DE FRANCISCO PARA A RENDA BÁSICA

O destaque mais recente da página sobre Renda Básica do site Outras Palavras é um artigo do economista francês Gaël Giraud. Ex-chefe da Agência Francesa de Desenvolvimento (2015-2019) ele é também assessor do papa católico. É nesta condição que procura interpretar os acenos cada vez mais insistentes de Francisco em favor da Renda Básica Universal.

Erudito, o artigo resgata o debate econômico recente sobre o tema. Mas sua característica principal é a radicalidade. Segundo Gaël, a proposta de Francisco subverte a própria ideia segundo a qual o trabalho deve ser a fonte da sustentação humana. “Para quem, portanto, a proposta do Papa é endereçada? Para todos os ‘trabalhadores’. Uma dona de casa, por exemplo, cujos serviços, por não estarem no mercado, nunca são levados em consideração no cálculo do PIB, fornece uma prestação “de trabalho”? Quem são esses ‘trabalhadores’ se não são reconhecidos por um status que os qualifica como tal? É precisamente nessa sua invisibilidade que reside o problema que Francisco quer resolver. Acreditamos que a resposta esteja nos próprios ‘invisíveis’”, diz o autor.


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