Pochmann: A Casa Grande dos farialimers

No Brasil, 10% dos mais ricos concentram 41,6% da renda nacional. A indústria é vista como “atraso”; e a precarização, nova chibata. Aos sobrantes deste mundo rentista, restam a sobrevivência cronometrada, os bicos e os trambiques

Imagem: Benedetto Cristofani/ The Economist
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No ano de 2020, se o Produto Interno Bruto (PIB), medida adotada pelo IBGE para medir a riqueza produzida anualmente, tivesse sido divido igualmente, cada um dos brasileiros faria jus a R$35,2 mil. Devido à realidade de o país já acumular sete anos de decrescimento econômico, o valor do PIB per capita de 2020 regrediu ao ano de 2010. Porém a queda não foi igual para todos, os Faria limers avançaram sobre a renda dos informal timers.

Não bastasse isso, constata-se que o valor recebido efetivamente por cada um dos brasileiros por domicílio foi bem menor que o imaginário PIB per capita. Em 2020, segundo o IBGE, o rendimento médio anual por membro domiciliar foi de apenas R$16,6 mil, o que correspondeu a somente 47,2% do valor anual do PIB per capita.

Este resultado decorre do fato de o país se tornar cada vez mais uma economia de baixos rendimentos esparramados por todo tipo de população sobrante aos requisitos do capital. No ano passado, por exemplo, 70% dos brasileiros receberam até R$22,4 mil por ano (dois salários-mínimos mensais), o que equivaleu a menos de 2/3 do PIB per capita nacional.

Se uma parte ampla e crescente da população fica com cada vez menos do que é produzido em termos do PIB per capita é porque uma parte minoritária da sociedade absorve mais de uma parcela da riqueza nacional. Os brasileiros que se encontram entre os 1% mais ricos começam o seu nível de renda anual a partir de R$336 mil, ou seja, quase 10 vezes o valor do PIB per capita de 2020.

Essa diferença expressa o quanto a distribuição da renda e riqueza segue profundamente desigual no Brasil. Enquanto somente os 10% mais ricos concentravam 41,6% de toda a massa de renda nacional do ano de 2020, o correspondente a R$118,4 bilhões apropriados por 21 milhões de pessoas do andar de cima da sociedade, os 10% mais pobres ficaram com R$2,56 bilhões repartidos por outros 21 milhões de brasileiros situados no andar de baixo.

Se já não fosse escandalosa a realidade constatada pelas pesquisas do IBGE, impressiona saber que a renda e riqueza dos ricos são, em geral, subestimadas. Apesar dos esforços dos pesquisadores, as informações contidas nas declarações de patrimônio e renda que os segmentos ricos fazem à Secretaria da Receita Federal sem mencionar os recursos depositados em paraísos fiscais, os títulos de propriedades da terra e de imóveis (registradas em cartórios), entre outras formas de contabilização da riqueza, fazem com que o real valor da riqueza termine ficando de fora das medidas tradicionais da desigualdade.

Se considerar a distribuição da renda e riqueza por grandes regiões geográficas, nota-se também o sentido da reprodução do mesmo perfil de iniquidades. Somente a região Sudeste, por exemplo, que corresponde a 11% do território nacional e a 42% do total dos brasileiros, concentra quase 56% do PIB e 51% da renda domiciliar do Brasil em 2020.

Tudo isso parece lembrar rapidamente o sistema de apartação socioeconômica descrito no livro Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, publicado em 1933. A herança colonial do trabalho forçado e da estrutura produtiva de plantation estava integrada à primeira cadeia global de valor de produtos primários conduzida pela grande empresa comercial estrangeira a conectar o tráfico de escravos africanos com a produção e exportação agropecuária da época para a Europa.

Guardada a devida proporção, o Brasil nos dias de hoje acumula resultados das decisões governamentais adotadas nos anos 1990, quando ingressou na globalização de forma passiva e subordinada. De um lado, o descarte da indústria, identificado por representantes da elite da época como “carroças”, para apostar, de outro lado, na financeirização e vocação agrícola, conforme defendida por Eugênio Gudin (1886-1986), considerado o personagem-farol do modelo primário exportador nas décadas de 1930 e 1950.

Dessa forma, a desnacionalização, a privatização, a austeridade fiscal, entre outras menções do léxico neoliberal, passaram a predominar no país, produzindo rapidamente o retorno à gravíssima polarização social. Não mais na forma passada da casa grande e senzala, mas na expressão de uma sociedade brasileira crescentemente dividida em faria limers e informal timers.

Faria limers, enquanto representação simbólica de um seletivo grupo social de pessoas com intensa conexão internacional multivariada, cujo modelo de vida de elevadíssimo padrão de renda e riqueza estaria cada vez mais distante e indisponível ao conjunto da população transformada em informal timers. Incrustados em organizações financeiras (bancos, gestoras da riqueza velha e do dinheiro disponível dos muitos ricos) e não financeiras (comércio externo, big tech, escritórios especializados e serviços segmentados aos ricos), florescem os empoderados demarcados pela dominante presença branca masculina e superioridade de seus ganhos, quando comparados aos das mulheres dos condados de faria limers.

Os sobrantes e inúteis ao mundo dos faria limers se encontram submetidos ao cronômetro on-line de contagem da sobrevivência, expostos à busca de algum rendimento no mundo da informalidade e ilegalidade a se generalizar. Este é o resultado concreto da dissolução da relação salarial, provocada pelo deslocamento do trabalho da antiga condição de emprego formal estabelecida e perseguida desde a Consolidação das Leis do Trabalho (1943).

Devido ao curso da destruição das tradicionais categorias profissionais, acompanhada da difusão do trabalho de natureza geral e precária, o mundo do labor se encharca com o temporizador da informalidade sem identidade e pertencimento. Desde a postura golpista pós 2016, passaram a ser efetivadas as reformas trabalhista e previdenciária, que tornam a informalidade do trabalho a referência nacional, não o contrário, como perseguido anteriormente em nome da CLT.

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