Periferias: Nossa Gaza em câmera lenta?

Analogias apressadas são perigosas, mas talvez haja uma conexão entre o genocidio palestino e o de jovens periféricos: produzir ordem a partir do extermínio dos indesejáveis. Como apontou Fanon, o colonizado não é apenas explorado: é desfigurado em sua condição de ser

Imagem: Agência Brasil
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É desconexo comparar Gaza com as periferias brasileiras? Pode parecer. Mas talvez a pergunta esteja mal formulada. Não se trata da tentativa de nivelar tragédias, mas sim de perceber continuidades estruturais: quem pode ser morto sem escândalo? Quem não é considerado plenamente humano pelas engrenagens de poder, aqui e lá? A semelhança não está no cenário — uma faixa de terra sitiada por mísseis, um bairro patrulhado por viaturas — mas no status ontológico atribuído aos corpos que habitam esses espaços. Em ambos os casos, trata-se de populações convertidas em excedentes, sujeitas a um regime de violência legitimada, ora pelo discurso da guerra, ora pelo verniz da ordem pública. A questão, portanto, é outra: quantas formas pode assumir o mesmo gesto de apagar vidas?

Em Gaza, a devastação não é uma metáfora. É uma operação militar planejada, contínua, conduzida com respaldo ideológico, logístico e diplomático por um Estado com superioridade bélica. A destruição sistemática da infraestrutura, o cerco à população civil, o bloqueio a água, alimento, eletricidade — tudo isso configura uma forma contemporânea de limpeza étnica, de genocídio. Os corpos palestinos são tratados como descartáveis, obstáculos a serem eliminados. Não se trata de um colapso, mas de um projeto genocida.

Nas periferias das grandes cidades brasileiras, a lógica é menos ostensiva, mas não menos letal. A guerra às drogas serve como justificativa permanente para operações policiais que invadem casas, matam sem processo, constroem zonas de exceção dentro do Estado de Direito. Os alvos têm cor, endereço e condição social. O que se combate não é apenas o crime, mas a existência indesejada de um povo que não se quer ver, precisa ser eliminado.

É aqui que Loïc Wacquant ajuda a compreender: o Estado penal e o Estado neoliberal não são opostos, mas complementares. Em contextos de abandono econômico, a punição ocupa o lugar do amparo. A prisão, a polícia, o caveirão são as formas de “política social” oferecidas à juventude negra periférica. Em sua análise sobre os EUA, Wacquant mostra como o desmonte do Estado social é compensado pelo fortalecimento do aparato repressivo. A periferia brasileira, nesse sentido, é governada pela mesma racionalidade: punir para governar. O abandono do Estado de um lado, e sua mão pesada em constância.

Fanon, desde Os Condenados da Terra, já nos alertava que o colonialismo não se sustenta apenas com palavras, mas com balas, ocupação e hierarquia ontológica. O colonizado não é apenas explorado: ele é desfigurado em sua condição de ser. Sua morte não causa espanto porque sua vida não foi reconhecida como tal. O “não-ser” de Fanon paira sobre os corpos que tombam em Gaza sob escombros e sobre os que tombam no Capão Redondo ou na Maré. Ambos compartilham uma condição: a de populações convertidas em excedentes. Vivem sob constante ameaça, com a existência marcada pela antecipação da morte.

Clóvis Moura, por sua vez, nos lembra que a história brasileira se funda sobre a eliminação dos indesejáveis. Em Rebeliões da Senzala, ele afirma que os escravizados que fugiam ou se rebelavam não eram marginais ao sistema — eram sua negação interna, sua crítica viva. Os quilombos, como formas de recusa e construção de outro modo de vida, encarnavam o potencial de ruptura. Mas Moura também mostrava como o escravismo se atualizava sob novas formas: da senzala à favela, do pelourinho à prisão. A sociedade brasileira, longe de romper com o passado, reinventou suas tecnologias de opressão e morte.

Gaza está sendo destruída diante de nossos olhos. É um massacre transmitido em tempo real. Há ali uma violência declarada, legitimada por discursos de segurança, pela desumanização do inimigo, pelo silêncio dos aliados e pelas hesitações da comunidade internacional. No Brasil, a destruição se dá em câmera lenta — é menos visível, mas não menos programada. A cada operação policial com mortos não contabilizados, a cada despejo de famílias pobres, a cada ausência de políticas públicas efetivas, reafirma-se o pacto social que aceita, e até deseja, a morte de certos corpos.

O que une Gaza e as periferias brasileiras não é a semelhança dos meios, mas a afinidade das finalidades: produzir ordem a partir do extermínio dos indesejáveis. Em contextos onde a desigualdade é estrutural e naturalizada, o Estado abandona qualquer promessa de inclusão e se dedica a administrar corpos e territórios como resíduos. Essa administração se dá por meio de tecnologias distintas — mísseis ou metralhadoras, checkpoints ou blitzes, drones ou helicópteros — mas todas operam sob uma mesma lógica: transformar a exclusão social em questão de segurança pública. E assim, o pobre deixa de ser um problema a ser resolvido e passa a ser um inimigo a ser neutralizado.

É fundamental reconhecer as dissensões: Gaza é uma nação sem Estado, sob ocupação direta, alvo de bombardeios. As periferias brasileiras existem dentro de um regime democrático, ainda que seletivo e precário. Os métodos diferem, os contextos divergem. Mas a lógica de administração do indesejável, a reatualização da distinção entre vidas que importam e vidas que podem ser perdidas – essa é comum.

É verdade que há um risco em analogias apressadas: borrar as especificidades pode resultar em relativizações perigosas. Mas recusar toda comparação também é uma forma de negação. Quando o mundo se habitua à morte sistemática de certos povos — sejam palestinos sob ataque, sejam jovens negros sob patrulha —, talvez devamos justamente insistir nas conexões. Não para homogeneizar, mas para compreender o sistema que torna a morte de uns mais tolerável do que a de outros.

Há resistência. Em Gaza, ela se manifesta na permanência, na sobrevivência, na insistência em viver sob as ruínas. No Brasil, ela pulsa nos coletivos de base e denúncia, nos movimentos periféricos, na cultura que insiste em florescer entre o entulho e o sangramento. Mas também há fragilidade. A resistência é desarticulada, atravessada por disputas, cooptada ou esvaziada. Fanon já dizia: a luta pela libertação exige coragem, sim, mas também método, organização e projeto.

O que se mata em Gaza e na periferia brasileira não é apenas o corpo, mas a possibilidade de existência plena. Ambas são zonas de não-ser, de experimentação do descarte humano. São iguais em tratar a vítima como culpado e o assassino como cumpridor do dever. Como canta o Clash, em “Straight to Hell” (álbum Combat Rock, 1982), encarnando a voz do império que dispensa os seus excedentes das colônias e das periferias: “You ain’t got no need for ya / Go straight to hell, boys”. Não precisamos de vocês. Vão direto para o inferno.

Essa linha captura a essência da desumanização e do descarte de populações consideradas “excedentes” ou indesejadas — uma característica central da lógica colonial e pós-colonial e do grande patrocinador soturno e presente: o capitalismo. E sim, ela aproxima Gaza às nossas periferias entre fardas de cores diferentes e eliminações sumárias.

É um tema que nos fere, nos exaspera, sangra — mas tudo o que não podemos fazer é silenciar.


Referências:

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Civilização Brasileira, 1968.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Expressão Popular, 2014.

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

WACQUANT, Loïc. Punir para governar. New Left Review, n. 152, mar./abr. 2025.

THE CLASH. Straight to Hell. In: THE CLASH. Combat Rock. [S. l.]: Epic Records, 1982. 1 disco (50 min). Faixa 4.

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