Os 60 bebês do Amazonas: retrato de um futuro asfixiado

Frágeis e desamparados, eles são os filhos da pandemia. Falta oxigênio — e o ar político no país é irrespirável. Não poderão ser esquecidos, pois representam uma aposta na vida em meio ao caos político — e na reconstrução da democracia

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A primeira quinzena de 2021 nos dá a medida exata do que vem pela frente, caso nada seja feito para barrar o projeto mortífero do presidente Bolsonaro. Desde quinta-feira passada, 14/01/2021, as notícias que chegam do Amazonas nos assombram. A falta de oxigênio em Manaus, capital do Estado, é noticiada por uma mídia estupefata diante do que parece ser um absurdo. Falta o insumo principal do tratamento para os pacientes internados contaminados pelo coronavírus, falta-lhes oxigênio! Em verdade, foram os profissionais da saúde e os familiares dos pacientes que primeiramente gritaram por socorro. Foram os médicos e os enfermeiros com seus celulares, através de vídeos com apelos desesperados, que fizeram chegar ao resto do país que havia “falta de ar” no território que é simbolicamente reconhecido como “pulmão do mundo”.

Desde o início da pandemia, sabíamos (ou deveríamos saber) que a crise sanitária não suspende os demais problemas de saúde. Inclusive, a complexidade da gestão da pandemia reside justamente na capacidade dos governantes darem respostas rápidas, organizadas e planejadas de modo que os sistemas públicos de saúde não entrem em colapso, como ocorre hoje em Manaus. Portanto, a responsabilidade pelo que aconteceu lá está direta e integralmente vinculada às diretrizes políticas do Ministério da Saúde, assim como às ações do Governo do Estado. Sem comando centralizado, instalam-se o caos e a barbárie.

Até quinta feira passada o risco concreto de colapso do sistema de saúde, embora muito evocado pelos especialistas, parecia não figurar nas preocupações de parte da população. As imagens e os relatos manauaras dão conta de um verdadeiro cenário de guerra, inimaginável, insuportável, imperdoável a morte por falta de ar – asfixia, sufocamento e desespero. Uma ala inteira morre. Insisto no apelo simbólico: falta ar para a gente que vive na floresta representada como pulmão do mundo.

Neste impiedoso episódio o que não falta são elementos simbólicos. Nada parece mais absurdo que 60 bebês prematuros sem ar! Sim, 60 bebês prematuros poderiam ter morrido por falta de oxigênio nas UTI’s neonatais1. É urgente nominar os responsáveis, ainda que não reste dúvida de que o grande culpado por tudo isso seja o próprio presidente Bolsonaro, pois, seu discurso negacionista e sua política de morte lança à própria sorte um país inteiro.

De março até aqui tenho buscado manter içadas velas de esperança; tenho as sustentado infladas nas estruturas afetivas e simbólicas de que disponho: a política, a arte, a psicanálise, a filosofia e o amor. É uma luta cotidiana. Haja repertório simbólico para não se alienar e tampouco sucumbir ao real e desmedido fosso em que nos encontramos. Mas confesso que a notícia da falta de oxigênio para os 60 bebês prematuros provocou um rasgo irreparável no pano da vela de esperança e fé na humanidade, pois sob meu ponto de vista nada é mais violento e inominável. Bebês prematuros são criaturas absolutamente indefesas; são vidas que dependem fundamentalmente do cuidado do outro. Nada, absolutamente nada havia me feito chorar tanto desde o início da pandemia. Foi um “jogar a toalha”, resultado de um profundo esgotamento físico e mental. Não é a simples e costumeira desesperança com a qual tenho aprendido a conviver, desta vez é mais denso, mais complexo.

Pensar na vida destes bebês me fez refletir sobre o futuro, deles e do país em que eles nasceram. Construo na minha cabeça que esses bebês prefiguram nossa situação neste momento histórico. Sobreviveremos? Estamos tão frágeis, estamos tão desamparados, tão dependentes uns dos outros. E esse outro falta, falha e apavora… Esse outro parece zombar de nós. O ar está pesado, irrespirável mesmo para aqueles que ainda não tiveram seus pulmões comprometidos pelo vírus. Tenho a impressão de que, de alguma maneira, falta oxigênio em todo lugar.

Refletir sobre a vida destes bebês me faz constatar que foram concebidos já no contexto pandêmico. Há sete meses sabíamos bem menos sobre o vírus, mas já havia certeza de que a falta de política séria e robusta de enfrentamento da pandemia poderia nos trazer gravíssimos prejuízos. Sabíamos da importância do isolamento e distanciamento sociais. Penso imediatamente nos pais e mães destes bebês; imagino e me solidarizo ao desespero que isso pode ter provocado neles. Me comove conjecturar sobre a angústia dessas mães. Como terá sido e será a assistência para essas mulheres? Qual a condição social delas? Que distâncias percorrerão? Tento pensar no translado até outros Estados e desisto, não tenho acervo imaginativo para isso, é desesperador.

O bebê humano talvez seja o mais frágil dos mamíferos. Ele é totalmente dependente de cuidados. Esse fato é objeto de estudo das mais diversas áreas. Se do ponto de vista concreto e objetivo é difícil conjecturar o impacto dessa tragédia na vida destes bebês e de suas mães, ainda mais complicado é imaginar a repercussão subjetiva desse trauma para ambos.

Os 60 bebês dizem mais sobre o Brasil do que podemos imaginar. Ainda sabemos muito pouco sobre a condição de saúde destes bebês, sendo importante manter sigilo e proteção dessas famílias nesse momento. Mas essa situação nos convoca ou deveria nos convocar. Parcela significativa da sociedade brasileira parece assistir a tudo isso de maneira aparvalhada, acomodada no discurso negacionista. Intrigada, penso que se uma situação dessas não comove e não convoca a uma reação, o que mais precisará acontecer para que haja uma reação proporcional ao agravo?

A memória é um recurso poderoso do cérebro humano. No filme “Tempos de Paz” há um diálogo antológico travado entre as personagens Segismundo (Toni Ramos) e Clausewitz (Dan Stulbach). Segismundo, um tiranete borra-botas que ainda tem o poder da caneta, condiciona a emissão do termo de salvo-conduto do artista-agricultor-polonês Clausewitz à execução de uma performance que o faça chorar. Clausewitz tem na memória o horror da guerra. As cenas e vivências avassaladoras estão impregnadas em seus sentidos: cheiro e medo da morte. Ele diz não saber colocar em palavras o que viu e o que sentiu. Por outro lado, o tiranete brasileiro “empresta” lembranças do pior que fez. Nesse jogo tragicômico de lembranças e memórias, a beleza onírica do teatro nos faz lembrar que a humanidade é um projeto em construção.

Por aqui, está difícil colocar em palavras o que vimos na semana passada em Manaus, mas acredito que não devemos esquecer. Recuperar, assim como na performance de Clausewitz. Lembrar… não esquecer, não naturalizar, não se acostumar com o horror. Manter essas memórias tem uma importância fundamental na reconstrução da arena política e democrática no país. Torço pela saúde desses bebês. Desejo ver que cresçam fortes e resistentes. Para mim, esses bebês representam um quantum de energia vital e necessária. Uma aposta na vida. Espero que os brasileiros entendam que o quê está em jogo ao “desprezarmos” a vida desses bebês é o descompromisso coletivo com o nosso próprio futuro. Mais que lhes oferecer oxigênio, devemos a esses 60 brasileirinhos um projeto de mundo melhor.

1 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55684285

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2 comentários para "Os 60 bebês do Amazonas: retrato de um futuro asfixiado"

  1. José Mário Ferraz disse:

    Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri certeza absoluta (Einstein). Realmente, doutor Einstein, não há limite para a estupidez humana a exemplo de pais frequentadores de igreja para os quais o aborto é assassinato de um feto enquanto assassinam crianças trazendo-as à vida sem condições de mantê-las vivas, ou levando-as para igrejas onde são explodidas por terroristas, ou matando-as em acidentes em viagens desnecessárias. São criminosos e devem pagar por seus crimes. A única preocupação destes pais imbecis é comprar berço e enxoval para o futura criança infeliz. Não ocorre a estas bestas humanas as condições ambientais adversas a serem enfrentadas pela frágil criaturinha. Quando estas antas humanas manifestam pavor ao filósofo Max expõem uma ignorância tão monumental que os impede de alcançar a sentença daquele sábio de que o mundo carece de modificação.

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