Incúria e sonhos

Negligência criminosa do governo espezinha a população e banaliza o mórbido. As notícias nos tiram o sono – e espantam os sonhos de outro mundo possível. Mas é hora de recuperá-los: com a luta pelo impeachment e a potência “dos de baixo”

Imagem: Silvio Avila, AFP/Getty Images
.

Ao comentar a inércia, a inação, o total desprezo pelo cuidado da nossa gente ao tratar do Plano Nacional de Vacinação – que lentamente começa a ser colocado em prática – o Dr. Gonzalo Vecina, primeiro presidente da Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária – referiu-se à conduta do governo federal como criminosa, como incúria. Fui atrás da palavra e descobri que ela expressa, segundo o Aurélio, falta de cuidado, desleixo, negligência. No limite, irresponsabilidade criminosa.

Penso que a palavra nos ajuda a afirmar que este governo é incurável; não tem mais jeito a não ser lutar pelo seu impedimento, e se demorar, por sua interdição por provocar a morte de milhares de pessoas ao longo dos últimos meses e – neste momento – pela tragédia da falta de oxigênio em Manaus. Notícias de hoje dão conta que dez dias antes o Ministério da Saúde foi informado da falta do oxigênio e outras providências. Mas ficou inerte, pecou por incúria, portanto.

Tal situação gera em todas as pessoas de bom senso uma indignação que sobe aos céus. Não há como aguentar mais. Perco o sono ao pensar no que sofrem as pessoas em Manaus, onde moram pessoas amigas e das quais não tenho recebido notícias. Mas o sono intermitente traz algo esperançoso. São os sonhos de revelação, os sonhos de outro mundo possível.

E então me lembro dos sonhos dos profetas do pequeno resto do povo de Israel exilado na Babilônia, sonhos de paz e justiça, um tempo em que “o efeito de justiça será a paz, e o fruto da justiça repouso e segurança para sempre” (Isaías 32.17). Estes sonhos, porém, são universais e me fizeram lembrar da luta de Gandhi pela libertação da Índia do colonialismo inglês, dos sonhos libertários dos africanos contra a França, a Bélgica, a Alemanha, a Holanda, o Reino Unido. E mais perto de nós, os sonhos da Terra sem Males dos Guarani da América do Sul, os sonhos do Suma Kawsay (Bem viver)dos povos Andinos, os sonhos dos quilombolas de Palmares e o grande Zumbi, os sonhos do Conselheiro no interior da Bahia, e hoje, os sonhos cantados por Emicida e seu AmarElo.

No inconsciente coletivo de nossa gente, dividida, espezinhada, violada e violenta, há um manancial de sonhos que precisamos resgatar com urgência. Eles foram soterrados pela incúria, pelo ódio feito política de Estado, pela insensatez e desprezo pelo sofrimento alheio. É hora de retomarmos nossos sonhos mais dignos e libertários. Libertar-nos do ser demente para fazermos ressurgir o ser sapiente, amoroso, que coopera e constrói junto, como escreve Leonardo Boff. E reconstruir o país desde baixo, desde as periferias, favelas, assentamentos da Reforma Agrária da agricultura orgânica, comunidades indígenas e povos tradicionais dos confins da Amazônia. Só assim haverá chance de sairmos desse atoleiro que nos conduz celeremente ao abismo como nação e como povo. Não há mais tempo para esperar. É preciso agir, clamar, protestar, instaurar o processo de retomada da democracia participativa, revolucionária. Uma democracia que extravase o conceito e as amarras da institucionalidade, e revele seu potencial escondido, surrupiado por instâncias de poder omissas e arrogantes.

Leia Também:

Um comentario para "Incúria e sonhos"

  1. Maria K. disse:

    Belo texto , claro, esclarecedor.Todavia, mas,desde quando deveríamos “aguentar “esse , aguentar esse pecado por incúria? É necessário dizer que um outro pecado por incúria existiu aí atrás , a indignacao que nao sobe aos céus .

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *