O que Lula disse e o que ainda falta falar

Na reunião ministerial, presidente avisa que está pronto para a disputa de projetos, também mirando as eleições de outubro. Parece ótimo, em princípio. Mas que ideia de país e de mundo a esquerda sustentará para esta batalha?

Lula durante a primeira reunião ministerial de 2024 (Ricardo Stuckert/Presidência)
.

Em sua primeira reunião ministerial de 2024, o presidente Lula fez uma fala de abertura, pública, de pouco mais de 17 minutos, na qual tratou de diversos temas que buscam dar sentido ao que foi o governo até agora e àquilo que está por vir. Embora a imprensa comercial tenha dado destaque a um ou outro trecho mais chamativo, é importante verificar o todo até para medir como o Palácio do Planalto avalia a atual temperatura política.

Primeiro, Lula fez um balanço do início do governo destacando o legado que recebeu. Enfatizou que a gestão anterior promovia, na prática, um desmonte do Estado ao afirmar, por exemplo, que ainda não havia conseguido abrir concursos para preencher as vagas de pessoas que se aposentaram e que estão para se aposentar no serviço público federal.

Ao qualificar o primeiro ano como sendo de “recuperação”, passou por questões que evidenciariam uma situação de abandono, como obras paralisadas na área de saúde, salários e bolsas atrasadas no setor de ciência e tecnologia, além de programas sociais operando com dificuldades. O presidente listou aspectos do legado de seu antecessor para contrastar o que poderia ser lido como diferença de competência na gestão pública, mas principalmente para realçar o que entende ser a essência de seu adversário político.

“Ele nunca se preocupou com a economia. Ele nunca se preocupou com políticas de inclusão social. Ele se preocupava em estimular o ódio entre as pessoas, estimular a mentira nesse país, e continua fazendo do mesmo jeito”, disse.

A partir daí, falou a respeito do 8 de janeiro, pontuando que “se há três meses atrás, quando a gente falava em golpe, parecia apenas insinuação, hoje nós temos certeza que esse país correu sério risco de ter um golpe em função das eleições de 2022”. “E não teve golpe, não só porque algumas pessoas que estavam no comando das Forças Armadas não quiseram fazer, não aceitaram a ideia do presidente, mas também porque o presidente é um covardão. Ele não teve coragem de executar aquilo que planejou, ele ficou dentro de casa aqui no palácio chorando quase que um mês, e preferiu fugir para os Estados Unidos do que fazer o que ele tinha prometido, na expectativa de que, fora do país, o golpe poderia acontecer, porque eles financiaram as pessoas na porta dos quartéis para tentar estimular a sequência do golpe”, completou.

Este trecho, em que o presidente foi mais enfático ao adjetivar Bolsonaro como “covarde”, recebeu críticas por muitos terem entendido que o teor de sua fala estaria “polarizando” politicamente o tema, de forma desnecessária. Outros defenderam que Lula deveria esquecer seu antecessor, priorizando falar mais do seu governo em vez de mirar a gestão passada, até porque o ex-presidente, inelegível, seria quase uma carta fora do baralho em função das contas que terá que prestar à Justiça.

O duelo contra uma máquina atuante

Muitas das críticas à fala de Lula tratam a questão da polarização entre extrema direita e seus inimigos imaginários (que incluem sempre a esquerda e o campo progressista, podendo alcançar mesmo quem não está nesse espectro) como se fosse uma briga em que se um não quer, dois não brigam. Nada mais distante da realidade. Mesmo fora do governo, a máquina de comunicação extremista continua a todo vapor, nas redes sociais, em veículos de comunicação simpatizantes e por meio do histrionismo de seus parlamentares. Fingir que eles não existem não vai fazer com que, por mágica, deixem mesmo de existir.

Quando o presidente faz a associação direta de Bolsonaro com a tentativa de golpe de Estado, remete ao andamento de um plano de ruptura hoje escancarado pelas investigações e também às preocupações com os reconhecidos ataques às instituições e ao regime democrático feitos pelo entorno bolsonarista bem antes das eleições de 2022. É uma referência ao ethos que motivou a frente ampla em torno da candidatura do petista.

“O povo foi mais sábio, o povo foi mais corajoso, e nós estamos aqui com a incumbência de fazer uma coisa muito importante, que não é só a da gente resolver o problema da economia, o problema da saúde, o problema do transporte, o problema da agricultura, nós temos que resolver uma coisa muito mais séria, que é a consolidação do processo democrático deste país”, ressaltou, com uma lembrança do perigo que ainda existe no país encarnado em um movimento político autoritário atuante.

Subestimar a extrema direita é um erro que não se pode mais cometer. Nos Estados Unidos, Donald Trump, a despeito de ter quatro processos criminais contra si e acusações de cometimento de mais de 90 crimes, segue firme na disputa pela presidência, muito por conta de sua mentira a respeito da fraude das eleições de 2020 ter se tornado verdade para uma expressiva parcela do eleitorado. Aqui, à semelhança de lá, o bolsonarismo mimetiza a vitimização por uma suposta perseguição jurídica, uma história repisada todos os dias nas bolhas comunicacionais de sua base.

A fala de Lula, neste sentido, chama o seu campo de apoio e o resto da sociedade para a disputa contra esta versão distorcida do 8 de janeiro e os ataques recorrentes não ao governo, e sim ao regime democrático e às instituições. Uma ofensiva deste segmento que vai sendo aos poucos normalizada como parte do jogo político. Como achar, por exemplo, que a instrumentalização explícita da religião para fins políticos, como se viu no ato da Avenida Paulista de 25 de fevereiro, possa ser entendido como algo aceitável?

Diferentemente de Trump, Bolsonaro está inelegível e com possibilidades reais de ir à prisão caso se torne réu em processos como os resultantes do inquérito que investiga a tentativa de golpe. Contudo, é ilusório achar que um fato ou outro iria ferir de morte o extremismo, que pode prescindir de Bolsonaro nas urnas, mas vai se valer de sua figura como aglutinador de valores caros ao seu eleitorado.

Horizonte político

Mesmo saindo para o jogo, a atuação do presidente tem limitações. Muito se cobra da comunicação institucional do governo. No entanto, quando se compara este setor com o que se fazia na gestão de Bolsonaro, é possível ver que não havia nada melhor do ponto de vista técnico ou que chamasse de fato a atenção pelo seu brilhantismo. Não era ali que a comunicação bolsonarista fazia a diferença, mas sim na sua estrutura consolidada fora do espaço governamental (muitas vezes alimentada por iniciativas do próprio governo, obviamente).

As lives do então presidente eram um exemplo dessa comunicação. Serviam-se da estrutura de governo, sem serem vistas desta forma. Lula não pode fazer o mesmo, não só porque sua postura atende a princípios republicanos que as transmissões ao vivo do antecessor ignoravam como ainda pelo fato de não poder falar “à vontade” como o ex-presidente, pelo grau de responsabilidade distinto e de seus compromissos políticos com setores diversos.

Assim, o chamamento de Lula para que seus ministros vão a campo e viajem pelo país tem o objetivo de atuar nesta área, já que visitas de autoridades, em especial nas cidades médias e pequenas, têm a prerrogativa de pautar a mídia local. E este poder de agenda que o governo federal em tese deveria ter em geral só é exercido pelo próprio Lula.

Mobilizar os ministros é muito importante. Mas há um problema mais profundo.

Enquanto os extremistas conseguem convocar muitas pessoas em torno de valores difusos mas sólidos no imaginário da população, a esquerda e o campo progressista de forma geral ainda carecem de bandeiras mais efetivas. No primeiro mandato de Lula, a política de valorização do salário mínimo tornou-se possível por meio da mobilização de centrais sindicais, entidades e movimentos populares que lutaram por esta bandeira. Agora, às vésperas de um Primeiro de Maio, não há lemas ou questões que aglutinem e possam servir para unir trabalhadores em torno de uma causa, como foi naquela ocasião.

Por outro lado, a extrema direita tem não só bandeiras perenes como também seus desdobramentos práticos em torno de projetos legislativos — relacionados, por exemplo, ao populismo penal. Só resta à esquerda reagir, quando consegue fazê-lo. Extremistas têm aspirações imediatas e a médio e longo prazo. E o campo que poderia se definir como democrático, nem em suas inúmeras vertentes e nem naquilo que os une, conseguiu esboçar um horizonte político mobilizador.

Lula usou a palavra “democracia” nove vezes em sua fala e em uma delas disse algo que diz respeito a essa ausência significativa. “A democracia não é importante para quem está na presidência ou para quem está no parlamento. A democracia é importante para as pessoas mais simples, para as pessoas mais humildes, para as famílias, para as mães, para os pais que saem de manhã para trabalhar e votam, porque a democracia significa que essas pessoas não querem apenas falar da liberdade elas querem falar de trabalho, eles querem falar de salário, eles querem falar de lazer, eles querem falar de cultura, eles querem falar das coisas que dizem respeito ao dia a dia deles.”

Ao esvaziar o conceito de democracia e dar um sentido distinto do usual, o extremismo conseguiu abalar o regime democrático formal no Brasil, explorando suas próprias falhas e insuficiências, que ainda estão aí. Esta espécie de proximidade da democracia da qual Lula fala nunca chegou em boa parte do país, como nas terras indígenas invadidas ou nas periferias das grandes cidades, por exemplo. E estes segmentos, como tantos outros, ainda não estão contemplados pelo ideário político atual do campo mais representativo da esquerda nacional. Bandeiras e projetos políticos, para agora e também para amanhã, são urgentes para evitar o extremismo, além de salvar e aperfeiçoar o que ainda chamamos de democracia.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *