O ministro, os canibais e as línguas

Em que a contenção fonética de Ricardo Vélez – autêntica “prisão de boca” – combina com seu português amedrontado, sua fuga ao corpo-a-corpo, seu elitismo tosco e amor pelo que vai “de cima para baixo”

Arte por Mariza Dias Costa
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Por Adrián Pablo Fanjul

No final de janeiro, o recentemente empossado ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, deu uma entrevista para o semanário Veja. As repercussões, preocupadas ou indignadas, no meio educacional, não têm sido poucas: o longo depoimento do ministro reafirma perspectivas de perseguição ideológica em todos os níveis da educação nacional e, particularmente, de elitização, redução e/ou abandono do ensino superior. Sem minimizar essas preocupações, que compartilho plenamente e que considero de primeira importância, quero tratar aqui sobre um trecho da entrevista que solicitou particularmente minha atenção devido à minha trajetória como pesquisador nos estudos da linguagem e ao fato de ser hispano-americano naturalizado brasileiro. E a reflexão me levou, como se verá, a outra curiosidade que também indaguei: como soa a fala em português desse ministro que, como eu e muitos que conheço no Brasil, também teve o espanhol como língua primeira? Vamos por partes.

A dobra incerta de “(o) brasileiro”

O trecho foi o seguinte. Indagado acerca da disciplina sobre “educação moral e cívica”, que considera necessária no ensino básico, Vélez explicou: “Hoje, adolescente viaja. É necessário lembrar que existem contextos sociais diferentes e que as leis dos outros devem ser respeitadas. O brasileiro viajando é um canibal. Rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião; ele acha que sai de casa e pode carregar tudo. Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola.”

A generalização de uma suposta conduta para todo um coletivo nacional resulta especialmente chocante na palavra de alguém que não apenas tem a função de educador, mas que está dando uma entrevista na qualidade de principal responsável pela gestão educativa do país. E, se esse gesto estereotipador seria reprochável qualquer que fosse a nacionalidade aludida, no caso resulta particularmente surpreendente, porque direciona-se nada menos que aos brasileiros, isto é, aos do próprio país. E ainda dito por alguém que é de origem estrangeira. Uma origem que não perdemos (nem temos por que perder, diga-se de passagem) pelo ato jurídico que nos outorgou a nacionalidade, isso ao ponto de a mídia não deixar de referir-se ao ministro como “colombiano”, sobretudo quando não constrói dele uma imagem favorável.

No entanto, poucas (e tardias) parecem ser as expressões de orgulho nacional ferido despertadas pela asserção do ministro, inclusive entre seus detratores. Em 6/2, uma semana depois, a mídia informa que deputados da oposição incluem esse aspecto da sua fala na convocatória que tentam aprovar para que o ministro apresente explicações à Câmara. E, afora isso, vi algum raso e esquecível “volta pra Colômbia” solto por ali. Porém, essa fala preconceituosa de Vélez sobre “brasileiro” não tem nada de “importada”: ela sai das entranhas de regiões ideológicas da discursividade brasileira, principalmente quando se tenta significar hierarquias. Ela entra em série, pela sua sintaxe e pelo seu funcionamento argumentativo, com formulações extremadamente recorrentes que, nós, que viemos de outros países, aprendemos aqui, não trouxemos de fora.

Impossível não lembrar de algumas reflexões a respeito tecidas precisamente ao comparar marcas da enunciação nas línguas espanhola e portuguesa. Particularmente, de trabalhos das minhas colegas María Teresa Celada (2005) e Neide Maia González (2014) sobre a formulação “Brasileiro é assim mesmo”, e, a partir dela, sobre o funcionamento discursivo dos enunciados generalizadores sem artigo ou com artigo definido singular, como “mãe é tudo igual”, “bandido bom é bandido morto”, ou, como agora acrescenta Vélez Rodríguez, “adolescente viaja” ou “o brasileiro viajando é um canibal”. As autoras, cujo ponto de vista compartilho e levo com frequência aos meus cursos sobre comparação linguística, consideram que o tipo de construção se aproxima de um enunciado proverbial. Por isso, funciona no discurso estabelecendo um pressuposto de que isso é “sabido por todos”, que ninguém questiona..

Em especial, a expressão “Brasileiro é assim mesmo”, parafraseável como “brasileiro não tem jeito” e fórmulas semelhantes, carrega, como nos lembra Celada, uma historicidade que a determina negativamente, disforicamente, para a perspectiva de um sujeito do discurso que vê, nesse genérico “brasileiro”, um destino irremediável, ou, acrescentaríamos nós, uma falha incorrigível. E tanto Celada como González apontam uma peculiaridade nas marcas de pessoa dessa fórmula: resulta ambíguo, ou impossível de definir, se o “eu” que fala se localiza ou não, se ele se inclui ou não, na classe (“os brasileiros”) à qual remete o sintagma genérico. Daí a diferença com o funcionamento do espanhol, que, por diversas restrições sintáticas, não permitiria driblar, em uma construção análoga, o lugar do locutor, e levaria a produzir algo como “los argentinos / colombianos / panameños… somos así” ou então “los argentinos / colombianos / panameños son así”, deixando em evidência a tentativa de inclusão ou de não inclusão por parte do que fala. No português do Brasil, é possível dizer “brasileiro é tal ou qual coisa” mantendo um particular e impreciso distanciamento em relação a esse grupo imaginário ao que, pelo menos juridicamente, alguém pertence. Celada vê grande produtividade para esse tipo de construção em “processos de homogeneização ideológica”, coisa que confirma nosso próprio trabalho de pesquisa de casos quando tratamos o assunto nas aulas da universidade.

Não surpreende, então, que uma fala criticando “o brasileiro” por “falta” de educação ou de qualquer outra coisa (até pela bizarrice de levar o assento salva-vidas para vai saber qual inverossímil coleção) resulte empática ou até encante quem se vê ou gostaria de ver-se em um espaço diferenciado, digamos, de difusa aristocracia, ou simplesmente de uma condição – tão atual – de “pessoa de bem”. Espaço que não é o mesmo que o de “(o) brasileiro”, ser genérico que sempre precisará de uma autoridade para endireitá-lo.

Voltando ao ministro, uma indagação sobre outras das suas opiniões vertidas no espaço público mostra que sua valorização do Brasil está longe de ser negativa, menos ainda em comparação com o seu país de origem. Pelo contrário, ela é altamente positiva precisamente em relação ao acervo ideológico mais aristocratizante da história das ideias no Brasil: o imaginário que, na época imperial, representava o país como um espaço de “ordem” em contraposição ao “caos” das vizinhas repúblicas hispânicas (Prado, 2001). Com efeito, em um seminário organizado pelo Instituto Millenium em abril de 20171, Vélez recria essa representação em pleno século XXI:

Lendo Roberto Campos e lendo outros autores liberais do pensamento brasileiro, descobri uma tendência diferente da América Espanhola. Sou originário da Colômbia, e na Colômbia, entre 1810, data da Independência, e 1900, houve 65 guerras civis; essa é a tônica da América Hispânica. […] É uma instabilidade maluca. Ao passo que, na tradição luso-brasileira encontrei, nessas minhas leituras, uma tradição diferente, que é a revolução feita de cima para baixo, sem anarquismo. (grifo meu)

Não é casual, então, que sua fala conflua com as de brasileiros que almejam civilizar “de cima pra baixo” esse canibal que ainda não sabe se comportar em hotéis e em aviões, sem dúvida um problema prioritário para nossa educação básica pública. Assim, indagando mais sobre o ministro, entendi também por que sua afirmação sobre “brasileiro” entraria, para mim e para outros imigrantes que conheço, no terreno do não dizível. É que algum pudor nos impede enunciar a partir do Brasil que olha “de cima para baixo”, apesar de que, talvez, a reprovação pública não fosse tão estendida. E a partir daí voltou outra série de interrogações: como se marca a heterogeneidade linguística de um país tão desigual como o Brasil na fala, em português, daqueles que tivemos o espanhol como língua primeira? Que trilhas seguimos (ou canibalisticamente abrimos) como hispano-falantes na língua do Brasil? Como deslocamos para uma materialidade linguística diferente e próxima aquilo que trazemos de formações sociais com desigualdades tão análogas? Como é que essa contradição ganha forma singular no caso desse ministro?

Uma fala metalizada

Como muitos colegas estudiosos da linguagem, não acredito nas línguas como totalidades dadas. Cada língua histórica, e a percepção que temos dela, resulta do que Bagno (2011, p 359) denomina como processo de “hipostasiação”: a efetiva interação verbal, o que os falantes dizem e escrevem, é objetificada, e o modelo que resulta dessa objetificação é visto como se fosse o real da língua, como se nesse objeto se reunisse a diversidade dos hábitos dos falantes em sociedades desiguais. É um processo até certo ponto necessário para a afirmação de identidades idiomáticas, e não casualmente é concomitante com a consolidação dos estados nacionais como principal forma de organização política. Mas essa padronização não deve ser confundida com o real da língua, de contornos sempre fugidios. O português, inclusive especificado como português brasileiro, com sua grande heterogeneidade geográfica e social, não é exceção.

Quando nós, imigrantes, começamos a enunciar no português brasileiro, nosso percurso é afetado por essa heterogeneidade. Nosso processo árduo e instável de ganhar voz nessa língua não se dá sempre no mesmo “registro”, “variedade” ou qualquer outra denominação com que se entenda a cisão política e social do linguístico. Primeiramente porque, como acontece com os falantes “nativos”, nosso dizer é tomado alternativamente pelo que já está nos gêneros do discurso e pelo que determinam os lugares sociais de fala pelos que transitamos. E também porque passamos, não sem retornos, por modalidades sempre marcadas pela especificidade da língua primeira e, sobretudo, pelas formas como se deu o percurso entre uma e outra. Nessa complexidade existem fatores individuais, mas também regularidades que as pesquisas podem tipificar. Há, sem dúvida, modos recorrentes de ser hispano-americano no português do Brasil.

Embora eu não tenha indagado sistematicamente esses modos, com mais de vinte anos de trabalho na pesquisa e ensino sobre espanhol e português brasileiro, em convívio e discussão permanente com tantos colegas de cá e de lá, posso identificar algumas saliências. A do exagero coloquial, talvez efeito da cisão entre oralidade e escrita que caracteriza o Brasil, que nos traz o hispano-falante que precisa dizer “cara” ou “sabe?” a cada seis palavras de uma conversa. A da superestimação da diferença, tão visível, por exemplo, na escrita em português do Manuel Puig quando faz falar seu narrador brasileiro em Sangue de amor correspondido2. E muitas outras, como a impostação da fala, a modalização que marca a diferença (“como dizem aqui…”), a passagem lúdica por um portunhol que é parte da vida (com amigos argentinos que moram no Brasil temos um grupo de WhatsApp chamado “pierto”). E, é claro, não são lugares fixos, cada indivíduo passa por diversos deles, porque indicam posições a serem ocupadas, não decididas pelo indivíduo, mas pelo complexo jogo do imaginário. Isto é, da ideologia, já que, gostemos ou não, sinalizam processos de identificação na desigualdade social brasileira.

Depois de ler a entrevista com o ministro Vélez, decidi escutar sua fala em português. Ouvi seu discurso de posse, e partes de algumas entrevistas anteriores. O que mais me chamou a atenção foi o contraste entre diversas dimensões da linguagem verbal. Um cuidadíssimo manejo da sintaxe nas construções mais complexas, e uma notável riqueza léxica, combinadas com uma sonoridade fossilizada, na qual praticamente não aparecem os principais traços fonológicos que diferenciam o português brasileiro do espanhol. Sua fala evidentemente não foi preparada por nenhum assessor, já que o agora ministro mostra a mesma desenvoltura quando improvisa respostas no diálogo. Mas é uma fala que soa como como um português “lido” em espanhol.

Estão praticamente ausentes os sons que, em português, representamos graficamente com “v”, “z” ou “j” (ou com “g” antes de “e” ou de “i”). Assim, escutamos muita “ideoloxia de xênero”, “brassileiro”, e até enfeites como “benfacexa”. Pouquíssimas nasalizações, inclusive dos ditongos, resultando inclusive pronúncias de 3ª pessoa plural como “receberan” para o perfeito simples. Raras aberturas de “e” ou de “o”. Nada que não aconteça alguma ou várias vezes com a maioria dos hispano-falantes, mas que chama a atenção pela sua constância quase infalível, inclusive em um discurso lido, no qual podiam ter sido feitas tentativas de articulação vocal. Como se a dimensão sonora fosse um elemento dispensável, que não precisa ser exercitado para paliar pelo menos algumas ocorrências. Semelhantemente ao “brasileiro em hotel”, a voz ministerial “sai de casa e pode carregar tudo”. Inclusive diferenças completamente perceptíveis para o ouvido de um falante de espanhol inexistem nessa voz. Por exemplo, a realização semivogal de “l” em final de sílaba (assemelhando-se a “u”), ou a neutralização de “o” / “u” e de “e”/ “i” em final átono de palavra. Passa a impressão de um distanciamento contido, freado. E o que evita é algo que, pelo geral, nós, de origem estrangeira, costumamos tentar, com maior ou menor sucesso: a aproximação do mais corporal da língua, os sons que mobilizam a boca e entram pelo ouvido.

Essa não-entrega ao “acaso dos sons” me lembrou um texto de Christine Revuz (1998) que todo professor deveria ler, e que trata do investimento psíquico e das resistências subjetivas envolvidas na aquisição de uma língua estrangeira. A autora explica que essa “apropriação pela boca” das línguas segundas suscita bloqueios precisamente pela estranheza de movimentos e sensações no aparelho fonador e articulador. Um banho de sons “brando ao sentido” em que o indivíduo se escuta estranho no mesmo momento em que exibe o que lhe estranha, com uma sensação de não controle que, para alguns, aparece quase como uma ameaça de “afogamento”. Ela diminui com a passagem à escrita (no caso, diríamos, a uma pronúncia que imita a leitura em outra língua sem “riscos”), amenizando o “corpo-a-corpo com a dimensão fonética”. Para Revuz, “tais pessoas constroem para si mesmos um sistema fonético pessoal, híbrido, mas fortemente ancorado no da língua materna”. Eu não penso que se trate de algo que caracteriza pessoas, mas como explicava antes, posições a serem ocupadas no discurso, ainda mais quando o que observamos não é a evolução de um processo de aprendizagem formal, mas a fala de (ex) imigrantes plenamente inseridos, há décadas, na formação social e política em que vivem, e nas desigualdades que se marcam, na língua, nessa sociedade. Isto é, não se trata aqui do indivíduo Vélez Rodríguez, mas do que indica politicamente, sociolinguisticamente, no lugar institucional ocupado, essa duplicidade no seu dizer em segunda língua, essa contradição entre a coerência e a fluidez vocabular e sintática e a forte limitação, quase indiferente, no plano sonoro. O que é que significa essa fala em que o som atua como revestimento metálico (ou fumê), que preserva de fricções ameaçadoras?

E, no estudo do discurso, indagar “o que é que significa” algo é pensar principalmente “com que é que se relaciona”. Vejo congruência entre essa contenção fonética – verdadeira prisão de boca – e declarar abertamente, de um lugar de poder, uma visão toscamente elitista. É coerente esse evitamento do corpo-a-corpo com a admiração pelo que vai “de cima para baixo”. Ser hispano-falante em português driblando o inquietante roçar dos sons pode ser, sim, um modo de fazer parte daquela porção da sociedade brasileira que se vê aristocrata e distante de “brasileiro”, que, como se sabe, “não tem jeito”. A proximidade linguística – e histórica, e ideológica – com as formações sociais dos países vizinhos favorece essas reentrâncias. Não em vão, junto dos “possíbel” e da “coraxossa xornada de Xaír” escutamos, na fala do ministro, alguns cultíssimos “objectivos” que nem o espanhol suporta hoje. Como narrou Borges em um conto3, “el hombre era parecido a la voz”.


Notas

1A palestra pode ver-se em You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=p7cjZ4rD3f0

2A pesquisa de Menezes (2006) identificou essa escrita como um caso paradigmático de efeitos de proximidade.

3“Hombre de la esquina rosada”, publicado na sua versão definitiva em Historia universal de la infamia, 1935.

Referências

Bagno, Marcos (2011). “O que é uma língua? Imaginário, ciência e hipóstase”. Em: Lagares, Xoán, e Bagno, Marcos. Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola, p 355-387.

Celada, María Teresa (2005). “Estructura y cristalización. Acerca de la productividad de ciertas formas lingüísticas del portugués brasileño en los procesos de homogeneización ideológica.” Actas del XIV Congreso de ALFAL. Monterrey, México, 17 a 20 de outubro de 2005. Disponível em http://www.mundoalfal.org/cdcongreso/cd/pragmatica_analisis_discurso/celadam.html

González, Neide (2014). “Ausência de determinante: referência genérica x referência específica.” Em: Fanjul, Adrián e González, Neide (orgs.) Espanhol e português brasileiro: estudos comparados. São Paulo: Parábola, p. 113-129.

Menezes, Andréia (2006). Sangue de amor correspondido X Sangre de amor correspondido. Análise de um caso emblemático de contato entre o PB e o E. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. Disponível em www.teses.usp.br

Prado, Maria Ligia Coelho (2001). “O Brasil e a distante América do Sul”. Revista de História, n 145, p 127-149.

Revuz, Christine (1998). “A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio”. Em: Signorini, Inês (org.). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras, p 213-230.

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