O jogo só acaba quando termina

Em situação de forte desvantagem, com artilheiro fora de campo e arbitragem desleal, é preciso tática, calma e perseverança. Na política como no futebol. Construiremos um contra-ataque?

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Por José Roberto Cabrera

O domingo é de guerra, o campo é de terra,
O boteco é do lado.
Na hora marcada, a meia rasgada,
O joelho ralado.
É debaixo de chuva, é debaixo de sol,
É no meio da lama.
A vontade é de graça, a vitória é a taça
Do fim de semana.

(Camisa Molhada, de Carlinhos Vergueiro)

O futebol pode nos ensinar muitas coisas. Sua história é repleta de personagens improváveis, reviravoltas históricas, dramas, comédias e vitórias épicas. O título vem de um desses atores, Vicente Matheus, cuja obviedade nas falas revelavam sempre um sentido oculto ou uma divertida segunda intenção.

O esporte mais popular do planeta estrutura relações de amizade, de solidariedade, de afeto que convivem com a malandragem, a competição, o rancor, às vezes a violência. Diversão, sofrimento, cansaço, euforia, êxtase, frustração, alegria e sensação de dever cumprido são sensações sempre presentes no esporte e na vida. A emoção na hora do gol, que faz com que pessoas que nunca se viram se abracem ou chorem juntos, ainda que inexplicável, é profundamente humano.

No interior dessa humanidade gostaria de propor uma reflexão sobre nossos tempos e o futebol, embora tenha provas e convicções de que isso esteja longe de ser original.

Proponho um exercício sobre futebol para pensarmos os desafios postos ao Brasil, em especial por aqueles teimosos que insistem em sonhar com um futuro melhor.

O jogo: fase semifinal de um torneio nacional com repercussão internacional. Sistema mata-mata, digo, eliminatório. Vamos evitar usar o primeiro nome por motivos óbvios. Assim o sistema de ida-volta, duas partidas com o gol marcado na casa do adversário como o critério primário de desempate.

O primeiro jogo era na casa do rival e nós sabíamos que um resultado adverso, com placar dilatado, poderia definir praticamente a disputa.

O time adversário não escondia a euforia. A torcida estava inflamada, afinal ninguém esperava chegar naquela fase do campeonato, em especial considerando o retrospecto dos outros times. O momento deles era especial e muitas vitórias haviam sido conquistadas nos momentos finais das partidas decisivas.

Seus dirigentes extravasavam de todas as formas e ninguém se preocupava com absolutamente nada. Os líderes das torcidas organizadas disparavam todo o tipo de impropérios e a crônica esportiva e os noticiários destacavam a campanha e os heróis improváveis. Durante o torneio a cobertura da imprensa dava a impressão de que só a torcida do time da casa era capaz de se mobilizar, enquanto as outras pareciam estar ausentes, só que não.

Era como se houvesse um acordo tácito, o silêncio ensurdecedor, para esquecer o lance do último jogo, aquele que garantiu a classificação para a semifinal, onde num mesmo lance a falta no lateral, a mão ou o impedimento escandaloso não foram assinalados.

Sorte deles o VAR (o árbitro de vídeo) só valer para o próximo campeonato.

As escalações ainda não haviam sido divulgadas e o relógio indicava a chegada do momento da decisão de 180 minutos.

Todos os ingressos haviam sido vendidos e a noite fria e úmida contrastava com a perspectiva de festa quente e barulhenta por parte da torcida dos donos da casa.

O desempenho de nosso time era uma incógnita. Havíamos ganhado vários jogos e campeonatos, mas o ataque não demonstrava o mesmo desempenho de antes e na reta final o Departamento Médico ficou lotado. O time era experiente e tinha um bom meio de campo. Ainda que algumas jogadas já fossem conhecidas, elas ainda continuavam produzindo efeitos.

O clima era tenso e o ônibus que trazia o nosso time para o estádio sofrera vários ataques. Como era de praxe nesses confrontos a polícia local fazia vistas grossas. Nossa torcida chegaria atrasada, mais uma vez, devido ao comboio organizado pela PM.

Depois da execução do hino nacional, dos sorrisos protocolares para as fotos e as rápidas entrevistas, que não acrescentam nada, o jogo começou.

Nesse tipo de disputa exige-se que o time saiba se comportar com frieza e perspicácia. Se fosse um texto do José Saramago talvez ele explicasse por aqui que, embora ausente dos ambientes e crônicas esportivas devido às imposições mercadológicas e de estilo as quais exigem fluidez e poucos toques, o termo perspicácia teria uma relevância e capacidade explicativa única diante de uma partida com tais características.

A partida se desenvolvia sem espaços e delicadezas. O árbitro já havia avisado aos capitães, mas o clima era de guerra. Ainda no primeiro tempo, o principal jogador do nosso time, esperança de gols e referência no futebol nacional, toma um cartão amarelo por retardar a reposição de bola. O jogo avançava num equilíbrio irritante e já nos acréscimos da primeira etapa os donos da casa conseguem o primeiro gol, num bate rebate estranho onde nosso goleiro sofrera uma carga. Inconformados com a falta, nossos jogadores reclamam acintosamente e fazem o sinal simulando um aparelho de TV, o VAR, e o juiz distribuiu diversos cartões e acaba expulsando nosso artilheiro.

No intervalo, com a vitória nas mãos, a torcida da casa fazia a maior festa, espezinhava nosso time, utilizava todo arsenal de obscenidades e impropérios existentes. Por enquanto as grades de segurança mantinham as agressões nas vibrações do vento.

Mas, como se comportar numa situação dessas? Com um jogador a menos e perdendo é possível jogar bem o jogo? Quais alternativas estão disponíveis?

Creio que é nesse intervalo que nos encontramos.

Como enfrentar o time que está vencendo o jogo, jogando em casa, com a imprensa coagida, o juiz, ao qual daremos em nosso exemplo o benefício da dúvida, pressionado e a nossa torcida espremida entre os adversários e a polícia?

Num jogo desse tipo as alternativas são reduzidas, mas elas existem. Jogar com um a menos exige um sistema de meio de campo e defesa capaz de fechar todos os espaços e, para isso, além de inteligência deve se ter um bom preparo físico. Não basta apenas ocupar os espaços e fazer uma marcação capaz de limitar os passes e a circulação das jogadas pelo meio, é necessário jogar.

Eventualmente é preciso jogar a bola para longe, mas deve-se evitar fazer faltas bobas, sabe aquelas na lateral que podem resultar em cruzamentos perigosos?

Nessas circunstâncias, na medida em que o tempo passa e o segundo gol não sai as coisas tendem a complicar e isso pode ser bom. Explico, é que a torcida da casa tende a ficar irritada com a situação e isso se reflete no time. A torcida de aliada pode jogar contra. O que era bom para eles pode tornar-se o inverso. Exemplos desse tipo existem aos montes. Por fim, se houver no banco um atacante jovem, daqueles que ninguém conhece muito bem seu estilo de jogo e capaz de improvisações e jogadas inusitadas, as condições para a disputa continuarem em aberto estão dadas.

Bolsonaro se elegeu e Lula está fora de combate. Nós devemos nos recompor para o resto da partida. O estilo de jogo é conhecido e truculento. O juiz está comprometido, mas o campeonato é transmitido para todo o planeta.

Não podemos deixar de jogar o nosso jogo que é mostrar que há alternativas ao fascismo e ao neoliberalismo, essa combinação trágica a qual nosso futuro pode estar submetido. Isso significa reafirmar princípios e não fugir do debate. Temos que fazer o contraponto, mas com inteligência. Defender a democracia e os direitos, denunciar todos os cortes e seus significados, construir um campo de oposição que possa agir com perspicácia capaz de explorar as contradições. Não adiantará nada ficarmos falando não às medidas do novo governo, temos é que mostrar que existem saídas reais e concretas para a crise. Que somos a favor de outras alternativas e que vamos construí-las jogando. Como afirma a Naomi Klein, o não nos leva às ruas, mas é o sim que nos mantém na luta.

Nesse nosso jogo, a nossa heterogeneidade é um patrimônio e ela deve ser a ligação para manter o grupo atuando com organização e coesão. O futebol não se joga sozinho. A base é fundamental e não pode ser substituída por nada. É bom lembrar a frase lapidar do craque argentino Di Stéfano: “Nenhum jogador é tão bom quanto todos juntos”.

Não podemos cair nas provocações. Querer combater a desinformação e as mentiras espalhadas por aí é aceitar a agenda deles. A ironia, o escracho, a organização do povo, a conexão entre as diversas lutas e a proteção de cada um podem ser a melhor forma de lidar com essa fase da disputa. É sempre bom lembrar que o jogo só acaba quando termina.

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Um comentario para "O jogo só acaba quando termina"

  1. Thiago disse:

    Ótima reflexão!!! Show de bola literalmente trágico. E já estou compartilhando!

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