Lula, a esquerda e a Frente Ampla

Alguns dos liberais que apoiaram o presidente na reta final querem, agora, limitar seu governo. Não foi errado atraí-los mas só a mobilização popular garantirá os direitos das maiorias, responsáveis pela vitória sobre o fascismo

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A vitória contra o neofascismo na recente batalha eleitoral é a vitória de Lula, da esquerda e das demais forças democráticas, rigorosamente nessa ordem. É fundamental compreender isso para projetar o que tenderá a ser (não o que necessariamente será) o futuro Governo Lula, para não se cair na subestimação e nem na superestimação de cada um desses sujeitos políticos. Em especial, para se indagar sobre como deverá ser o relacionamento da esquerda e das demais forças democráticas com o futuro governo.

Começando com Lula, e considerando-se toda a sua trajetória de vida, não há a menor dúvida de que se trata do maior personagem da história política brasileira, sob quaisquer pontos de vista que se queira julgá-lo. E isso não se refere apenas às últimas cinco décadas, nas quais se tornou personagem central nos principais acontecimentos do país. Sem dúvida, Lula é um caso paradigmático para o debate sobre o que se convencionou designar como “o papel do indivíduo na história”, da relação entre sujeito e estrutura, entre virtude do sujeito (subjetividade) e fortuna (circunstâncias objetivas que o indivíduo não escolhe).

De origem econômico-social miserável, imigrante nordestino e com baixa instrução formal, Lula, na condição de operário metalúrgico, tornou-se o maior líder sindical brasileiro, formado ainda no período da ditadura militar, e foi o principal criador do único partido de massa (de esquerda) existente na história política do Brasil (o Partido dos Trabalhadores); chegando, agora, a presidente do país pela terceira vez, ao longo de vinte anos. E, dessa vez, após amargar uma derrota política e pessoal colossal, derivada da aliança neoliberal-fascista responsável por uma onda que varreu o país a partir de 2013, que desacreditou o seu partido na sociedade (com o surgimento de um poderoso sentimento de antipetismo), levou ao golpe de 2016 (o impeachment da presidenta Dilma Rousseff), culminou em sua prisão política e desembocou na eleição de Bolsonaro em 2018 – viciada desde o início, porque assentada em uma fraude jurídico-eleitoral. A prisão de Lula – capitaneada pela operação Lava-Jato, e arquitetada por todas as forças conservadoras e reacionárias, que expressam politicamente as distintas frações das classes dominantes e seus prepostos nas instituições do Estado e na grande mídia corporativa – foi decisiva para a vitória eleitoral de Bolsonaro e o crescimento e enraizamento do neofascismo no país.

E então, em uma situação na qual parecia, para as classes dominantes e o fascismo, se encontrar no ocaso de sua vida política, ressurgiu das cinzas, tal como a fênix da mitologia. Inicialmente, com as ações competentes de seus advogados e a contribuição fundamental do jornal on-line Intercept Brasil, que escancarou o conluio político ilegal entre procuradores do Ministério Público Federal e o juiz que na prática os dirigia, enfrentou e derrotou o seu inimigo imediato, a operação Lava-Jato e o seu medíocre comandante-mor, provando a sua inocência e o caráter político de todos os seus processos e, por consequência, a ação corruptora sofrida pelo sistema judicial brasileiro.

Convicto de sua inocência e confiante na força e na luta do povo brasileiro – que não o abandonou, estando presente em todos os dias de sua prisão, através do acampamento “Lula Livre” instalado nas imediações da Polícia Federal em Curitiba e em dezenas de comitês “Lula Livre” espalhados pelo país -, teve um comportamento na prisão irrepreensível, saindo dela maior do que quando nela ingressou. Convicto também de que as conquistas do povo pobre e das diversas “minorias”, durante os seus mandatos, não haviam sido esquecidas, como ficou evidenciado posteriormente nas pesquisas eleitorais – nas quais obteve uma larga vantagem entre os que ganham até dois salários-mínimos, os negros, as mulheres e os nordestinos.

A partir da vitória político-jurídica que lhe proporcionou a liberdade, com o desmascaramento do caráter político persecutório da Lava-Jato, voltou a liderar o seu partido e todas as demais forças de esquerda do país no enfrentamento ao fascismo, em uma situação claramente desfavorável – quando este último, favorecido pela sua aliança com a direita neoliberal tradicional, já havia se instalado no Estado desde 2019, colocando em prática a sua obra de destruição desse mesmo Estado e espalhando o seu ódio na sociedade contra os trabalhadores, os pobres, os negros, os nordestinos, as mulheres e a comunidade LGBT.

Nessas circunstâncias, Lula teve a virtude de entender a roda da fortuna e construiu, inicialmente, uma frente de esquerda, para além de seu partido, para, posteriormente, e com muita paciência, estendê-la para outras forças democráticas – abrangendo inclusive forças políticas de direita que haviam estado à frente do golpe de 2016. Essa compreensão, da natureza do inimigo que se está enfrentando, de sua força e de seus enormes recursos políticos e econômicos, se expressou na escolha do candidato à vice-presidência, dando uma clara sinalização da necessidade incontornável de constituição de uma frente ampla democrática para derrotar o fascismo.

Percorrendo o país de ponta a ponta, com mobilizações memoráveis, Lula foi o personagem central de todo o processo; mas não apenas porque era o candidato a presidente, para qual todos os holofotes necessariamente se voltam, mas, sobretudo, porque ele foi o dirigente principal, o líder de todo o processo, que enxergou na frente de todos os demais. É óbvio que a vitória das forças democráticas nessa batalha (ainda não da guerra) contra o fascismo foi uma obra coletiva: de partidos, organizações e movimentos sociais, sindicatos e associações, coletivos dos mais variados tipos e pessoas individuais – sem os quais Lula não poderia vencer! No entanto, à frente dessa obra coletiva estava Lula; a sua presença foi crucial para a derrota do fascismo, por isso essa vitória é, sem dúvida, uma vitória sua: pessoal (de resgate de sua biografia) e política (de liderança e expressão do povo brasileiro) incontestável.

Desse modo, a vitória de Lula é também, inseparavelmente, a vitória memorável de todas as forças de esquerda e, em particular, de sua tendência principal: o Partido dos Trabalhadores. Também atingida pelo mesmo golpe que levou ao impeachment de Dilma e, depois, à prisão de Lula, a esquerda amargou uma profunda derrota, entrando em um duro período, de pelo menos quatro anos (2016-2019), no qual atuou fundamentalmente na defensiva. Essa situação atingiu o seu clímax com a eleição de Bolsonaro em 2018, com o neofascismo se apoderando do Estado brasileiro e iniciando a sua obra de destruição das instituições democráticas, apontando claramente para o objetivo de derrubada do Estado Democrático de Direito.

Aos poucos, contudo, principalmente com a difusão da pandemia no país a partir do início de 2020, com a operação Lava-Jato desmascarada e já com Lula livre desde novembro do ano anterior (depois de 580 dias presos), a esquerda começou a sair da situação política desfavorável, passando aos poucos a confrontar o governo Bolsonaro – que apesar de ainda muito no início, já evidenciava o desastre a que seria levado o país, em todas as áreas: na economia (com desemprego enorme, queda da renda e aumento da pobreza e da fome), nas relações internacionais (com agressões aos principais parceiros comerciais e crescente isolamento diplomático), na saúde (com o negacionismo da pandemia e uma não-política de combate ao vírus que levaram a quase 700 mil mortes pela COVID), no meio ambiente (com queimadas e desmatamento recorde da floresta amazônica e ataques aos povos originários), na educação (com sucessivos cortes no orçamento das universidades), na cultura (buscando criminalizá-la) etc.

Para além do Partido dos Trabalhadores, as demais forças de esquerda relevantes compreenderam a gravidade do problema e se unificaram na luta pelo impeachment (frustrado) de Bolsonaro e, posteriormente, se uniram na candidatura de Lula logo no primeiro turno da eleição. Nesse processo, a esquerda reconstruiu e ampliou sua força política na sociedade, em boa medida reatando os seus laços com os setores populares, e se constituiu na força principal e fundamental da vitória de Lula, vanguarda evidente de sua campanha – organizando grandes manifestações e comícios por todo o Brasil, e levando diuturnamente as principais bandeiras da candidatura a todos os segmentos da população. Embora com uma (justa) desconfiança na formação da frente ampla democrática, ao longo do processo acabou, majoritariamente, por aceitá-la – compreendendo a grande força do inimigo a ser batido e a importância histórica de derrotá-lo.

Por fim, as demais forças democráticas, que se associaram à luta contra o fascismo sob a liderança de Lula, também foram cruciais para a derrota eleitoral do fascismo. Mas se deve ter a absoluta clareza que elas só vieram se somar ao processo muito perto do final do primeiro turno e, principalmente, no segundo turno da eleição. Até então, apostaram na chamada 3ª via, só abandonando-a quando os sinais de sua inviabilidade se tornaram irreversíveis ou quando foi derrotada definitivamente no final do primeiro turno. Apesar disso, a vitória de Lula é também a vitória de todas as forças democráticas que se bateram, de forma resoluta ou vacilante, contra o fascismo.

Mas a importância da constituição da frente ampla democrática vai além das eleições. A esquerda, e mesmo a centro-esquerda, apesar de terem sido o sujeito principal da vitória de Lula, são forças políticas minoritárias no sistema político institucional-formal, estão sub-representadas quando se tem por referência a sua força na sociedade, a sua presença nos movimentos sociais e a sua capacidade de organização e mobilização. De outro lado, a extrema-direita, desde 2018, e principalmente agora em 2022, tem se mostrado capaz de transformar o seu poder de mobilização social em forte representação no Congresso Nacional. Entre esses dois oponentes, tem-se uma sobre-representação institucional da direita tradicional neoliberal-fisiológica, constituindo-se, muitas vezes, em definidora dos rumos do Parlamento.

Nesse contexto, a questão da governabilidade, mais uma vez, passa a ser central para o futuro Governo Lula – essa constatação não traz nenhuma novidade em relação a governos anteriores (o chamado “presidencialismo de coalizão”), inclusive os do próprio Lula. No entanto, a atual conjuntura apresenta circunstâncias contraditórias.

De um lado, há circunstâncias que, de fato, dificultam a constituição de um governo “progressista” (mais à esquerda) – a desconstrução-aparelhamento de órgãos fundamentais do Estado feita pelo Governo Bolsonaro, a desorganização das finanças públicas, a sempre presente pressão do “mercado” para execução de um ajuste fiscal permanente, a atuação do movimento neofascista que tentará tumultuar o tempo todo e a própria sub-representação da esquerda, já mencionada, no Congresso Nacional.

Os neofascistas e o neoliberais fustigarão o governo o tempo todo. Os primeiros perderam a eleição mesmo utilizando e instrumentalizando o Estado de forma ilegal e escancarada (econômica, política e militarmente), fazendo uso criminoso das redes sociais com a divulgação de mentiras e a criação de um mundo paralelo à realidade objetiva, e apoiando-se nas principais (e maiores) igrejas evangélicas que transformaram os seus espaços e cultos em um ambiente político bolsonarista – cumprindo a função de um partido político. Por isso é que a vitória de Lula foi gigante, com um significado que vai muito além da diferença de 1,8 ponto percentual registrado ao final da eleição. Apesar disso, não se pode subestimar o significado e a força do bolsonarismo: é um movimento de massa fascista, cujo partido são as redes sociais, as igrejas evangélicas e as forças de segurança, e que se expressa para muito além do meio digital, estando incrustrado na sociedade – como demonstrado, mais uma vez, pelas manifestações golpistas pós-eleitorais (muitas de caráter nazistas) e que ainda estão em curso. As forças democráticas terão que enfrentá-lo em todos esses campos: o nazifascismo bolsonarista não se extinguirá espontaneamente.

Os neoliberais bolsonaristas, por sua vez, tentarão impor a sua agenda argumentando com o seu mantra principal: “sem ajuste fiscal permanente não há como estabilizar a economia e retomar o crescimento”. Para isso mobilizará todos seus recursos na mídia corporativa, no Parlamento e no Judiciário: mais uma vez, será uma disputa renhida pelo controle e apropriação do fundo público (gastos sociais X juros do capital financeiro), objeto fundamental no processo de concentração/distribuição de renda em qualquer país. A disputa orçamentária é, talvez, a principal expressão da luta de classes em sua dimensão econômica; a escolha das prioridades define a orientação, o sentido e o caráter do governo (de esquerda ou de direita).

A direita neoliberal, que adentrou à frente democrática na prorrogação do 2º tempo do jogo, como seria de se esperar, já está defendendo abertamente os interesses do capital financeiro, vocalizando e justificando as reações do “mercado” (inconformado com a fala de Lula no dia 10 de novembro, sobre a prioridade dos gastos sociais acima do ajuste fiscal), que se expressaram naquele dia em forte desvalorização do real (subida do dólar) e queda da bolsa. Especificamente, estão inconformados com a PEC da transição que será levada à votação no Congresso, na qual se propõe a retirada permanente dos recursos do novo Bolsa-Família do “Teto de Gasto” ou durante os próximos quatros anos ou, pelo menos, no primeiro ano do Governo Lula (como já acontece com a única despesa do governo que desde sempre está fora do Teto de Gastos, qual seja, as despesas financeiras que garantem o pagamento dos juros da dívida pública) – e que, adicionalmente, abrirá espaço no orçamento para outros gastos sociais prioritários e os investimentos públicos.

A tática discursiva dos porta-vozes do “mercado” é de que o futuro governo Lula deverá ser um governo da frente ampla que o elegeu. Mas na verdade, maliciosamente, identificam um eventual governo de frente ampla como sendo um governo neoliberal: reconhecem a desigualdade, a pobreza e a fome existentes no país, mas não estão dispostos a enfrentá-las, pois para eles o orçamento tem que continuar subordinado ao capital financeiro, priorizando o pagamento dos juros da dívida pública. Em suma, o ajuste fiscal permanente deve ser a prioridade do “governo de frente ampla”.

De outro lado, Lula deve a sua vitória, principalmente, à população mais pobre do país (que ganha até dois salários-mínimos), e que se expressou em outros segmentos sociais (mulheres, negros e LGBT) e regionalmente (Nordeste). A sua campanha foi dirigida, fundamentalmente, para responder às necessidades e reivindicações desses segmentos: o combate à fome (com destaque para um novo Bolsa-Família muito mais robusto), o aumento real do salário-mínimo, a recuperação do financiamento da merenda escolar e da farmácia popular, a retomada da política habitacional voltada para as famílias de baixa-renda, a volta dos investimentos públicos e a defesa de políticas favoráveis às “minorias”. Em nenhum momento, embora sistematicamente cobrado pelos representantes e prepostos do “mercado” e da 3ª via, se comprometeu com os principais pontos do programa básico do neoliberalismo: uma política econômica ortodoxa, um ajuste fiscal permanente, a manutenção do famigerado “Teto de gastos” e da atual forma de gestão da Petrobrás e de sua política de preços, privatizações dos bancos públicos e da Petrobrás etc.

Dessa vez, não houve uma “Carta ao Povo Brasileiro” para “acalmar os mercados”. Aliás, como expressou a economista Mônica de Bolle, “o mercado passou quatro anos conivente com a pior gestão econômica que o País já teve. Teceu louvores a Guedes, aceitou o orçamento secreto, e nada disse das quatro modificações do Teto — a última populista e eleitoreira.”. E, de forma mais explícita, como definiu factualmente o jornalista Otávio Guedes (da Globo News), o “mercado” é bolsonarista e antidemocrático, ou seja, esteve o tempo todo, inclusive nas eleições, do lado oposto ao da Frente Ampla Democrática. Não tem credenciais nem legitimidade para exigir qualquer coisa e criticar quem quer que seja, principalmente o presidente recém-eleito com 60 milhões de votos.

Mais do que nos seus governos anteriores, Lula está se colocando como representante dos trabalhadores e da parcela mais pobre da sociedade. A prioridade imediata é viabilizar os recursos necessários para permitir o cumprimento das “promessas” de campanha mais urgentes, feitas ao país e, principalmente, ao povo pobre. Consenso admitido, até certo ponto, mesmo pelos prepostos e representantes da direita neoliberal – ainda que a contragosto e, na verdade, apenas retoricamente. Mal iniciado o chamado Governo de Transição, já atuam, com forte apoio da mídia corporativa, para desidratar a PEC da Transição e exigir de Lula que assuma desde já uma regra fiscal para ser implementada a partir de 2024, do tipo Teto de Gastos, que priorize os interesses do capital financeiro; e também que indique logo quem será o ministro da Fazenda.

Em síntese, está-se diante de uma conjuntura bem complexa: Lula e o seu governo caminharão no fio da navalha. Do ponto de vista econômico, a conjuntura internacional apresenta sinais contraditórios; de um lado, a elevação da inflação nos países centrais vem empurrando as suas taxas de juros para cima, mas, de outro lado, os preços das commodities voltaram a subir, beneficiando as exportações brasileiras. Além disso, diferentemente do início do primeiro governo Lula, o país tem um elevado montante de reservas internacionais (US$ 326 bilhões), antídoto importante contra a ameaça de crises cambiais. Internamente, a inflação também está alta, apesar de sua contenção artificial pela redução dos preços dos combustíveis – decorrente da retirada eleitoreira de tributos estaduais. Contudo, a economia brasileira, depois de um longo período de estagnação, e em que pese a elevada taxa de juros atual, dá sinais de recuperação – a lenta retomada do crescimento, empurrado pelo fim da pandemia e pela gastança eleitoreira do governo Bolsonaro, deverá se acelerar em 2023, reforçada pelos gastos sociais do governo Lula e pela reativação dos investimentos públicos: principalmente em obras paralisadas e na construção habitacional.

Em suma, os sinais apontam para uma reversão cíclica da economia brasileira. Caso isso ocorra, no curto prazo essa será a melhor resposta à histeria fiscal dos neoliberais e também uma das iniciativas mais importantes para enfrentar as previsíveis ações do movimento neofascista: é com crescimento econômico que se controla e se reduz o peso da dívida pública, exorcizando o déficit fiscal sem comprometer as prioridades sociais, fato já demonstrado nos governos anteriores de Lula. E é com crescimento econômico, com o aumento do emprego e da renda, que se pode acabar com a pobreza absoluta e colocar em questão a desigualdade do país. E também é com crescimento econômico que se desfaz a má vontade dos segmentos mais baixos da classe média, inclusive aqueles que votaram em Bolsonaro, mas que não são bolsonaristas. A permanente tensão entre democracia e desigualdade econômico-social, principalmente nos países da periferia do capitalismo, é decisiva para o futuro da primeira; o enfrentamento à desigualdade econômico-social é crucial, do ponto de vista estrutural, para a defesa, ampliação e legitimação da democracia.

Do ponto de vista político, a conjuntura internacional é muito favorável: 1- À derrota de Trump na eleição presidencial de 2020, somou-se a recente frustração de uma ampla vitória do Partido Republicano para a Câmara e o Senado. 2- As sucessivas vitórias de governos “progressistas” nos últimos anos na América Latina, com a derrota da direita em vários países, possibilitará a retomada do esforço de integração da região. 3- A vitória de Lula foi festejada e entendida nos principais países do mundo (do centro e da periferia), inclusive antecedida por manifestações de apoio a sua candidatura por vários líderes políticos e representantes de Estado, como uma vitória da democracia sobre o fascismo. 4- A expectativa que o Brasil, a partir do Governo Lula, reassuma o seu protagonismo mundial, na vanguarda do enfrentamento à destruição do meio ambiente e à deterioração do clima, apontando para a transição de um novo tipo de economia (de baixo carbono), possibilitará a retomada do financiamento do Fundo Amazônia, além de estimular o aporte de novos recursos.

Internamente, o governo Lula, constituído por uma ampla frente, será o tempo todo tenso e objeto de disputa, em todas as áreas, entre as diferentes forças políticas que o comporão. Para além do embate orçamentário, do ponto de vista setorial — destacadamente saúde, educação e meio ambiente –, o enfrentamento entre os interesses públicos e privados (de classes) se explicitará a cada momento tendo por objeto, especialmente, as políticas a serem adotadas para o SUS, o Ensino Superior e o desenvolvimento da Amazônia. As medidas anunciadas na PEC de transição, além de desvendarem a disputa de classes pelo fundo público e sinalizarem um confronto com o fundamentalismo neoliberal que prevaleceu durante o governo Bolsonaro, é um começo que pode contribuir para a luta da esquerda expressa em campanhas já em curso como a “Revoga Já” (referente à reforma trabalhista).

Por isso, mais do que nunca, será imprescindível a pressão popular para empurrar o futuro governo mais para esquerda e garantir avanços estruturais efetivos na redução da desigualdade; o que implica ir muito além das primeiras ações previstas na PEC da Transição. O prolongamento da atual conjuntura favorável, pós-eleitoral, com a gigante vitória de Lula, dependerá da capacidade política da esquerda em mobilizar os setores populares: condição fundamental para, de forma independente, jamais perdendo de vista os seus objetivos de longo prazo, defender os seus interesses inadiáveis e impedir a captura do futuro governo pela direita neoliberal; e, no plano institucional, possibilitar a formação de maiorias necessárias à aprovação de propostas que beneficiem a classe trabalhadora.

Deve-se ter a clareza de que a correlação de forças prevalecente em cada momento não é algo dado e imutável, como se fosse uma fotografia; a esquerda é parte importante do jogo que está em permanente movimento, se alterando o tempo todo. Uma correlação de forças favorável não deve ser motivo para acomodação e relaxamento, assim como uma eventual correlação de forças desfavorável deve ser entendida sempre como uma necessidade de atuar para mudá-la, a favor dos trabalhadores e do povo pobre, e não uma situação à qual se deva adaptar. A história demonstra que, na política, atuar (e governar) dentro dos estreitos limites do possível significa a capitulação ao projeto do adversário e que, ao contrário, buscar o impossível é o caminho para alargar o horizonte do possível.

Por fim, não se deve perder de vista que a luta (e a vitória) contra o fascismo e o neoliberalismo no Brasil é parte fundamental dessa mesma luta no plano internacional; daí a importância e a enorme responsabilidade da esquerda brasileira e das demais forças democráticas antineoliberais. O futuro governo Lula, e o seu sucesso, carregarão esperanças que vão muito além do Brasil, e mesmo da América Latina.

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