Foro de Teresina e as falsas respostas ao bolsonarismo

Razão, Ciência e Mercado: esses elementos, representados em cada um dos apresentadores do podcast de Piauí, estão enfraquecidos e não apontarão saída contra a ultradireita. Enfrentá-la exige encontrar outros caminhos

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Por Moysés Pinto Neto

Não, este texto não vai ser um manifesto contra o Foro de Teresina. Na verdade, desde que o podcast começou venho o acompanhando com uma frequência intensa. Provavelmente deva ser inclusive o podcast que mais escuto, embora não seja exatamente o meu preferido — como é o caso do Viracasacas e do Benzina — , mas por causa do formato mais jornalístico e leve, do profissionalismo da edição e da capacidade sagaz dos participantes de criar marcas registradas (o kinder ovo, os javaporcos, o cabeção etc.), acaba se tornando fácil e gostoso de escutar.

Além disso, não tenho muitas dúvidas que se encontrasse Malu, Fernando e Toledo (e os participantes eventuais) em um barzinho, muito provavelmente seria bem agradável tomar umas cervejas com eles.

Um critério que, a meu ver, separa o Bem e o Mal.

Mas o problema do Foro é exatamente esse: eu me identifico demais com o tom da conversa, com a indignação, o deboche e o ultraje que percorre a análise realizada do Bolsonaristão. O Foro é um podcast que espelha muito bem a bolha progressista em todas as suas variantes — e por isso mesmo se mostra um caminho impotente como rota de fuga do momento em que estamos vivendo.

Desde que Bolsonaro foi eleito, tenho dividido analistas (que podem ser qualquer coisa: cientistas políticos, artistas, influencers, tuiteiros, intelectuais públicos, economistas, antropólogos, comediantes etc.) em dois grupos: os que importam e os que não importam. O critério é simples: se a ascensão de Bolsonaro não alterou em nada suas convicções, se essa pessoa não leva em consideração o gigantesco movimento de baixo para cima e de cima para baixo que o bolsonarismo desencadeou, não importa. Considerar o bolsonarismo como simples resultado de fraude, manipulação ou golpismo é, para mim, uma análise de conjuntura simplesmente ruim. Entender o que aconteceu significa, em primeiro lugar, partir da realidade de que as pessoas não estão iludidas ou enfeitiçadas: elas encontraram alguma coisa ali que fez sentido.

Se nós não entendermos o que é, não vamos entender nada.

E uma segunda camada vem a seguir: entender o bolsonarismo simplesmente como uma face do horror e da perversão pode ser inevitável — até necessário — , mas sem abstrair o fato de que quem apoia Bolsonaro em geral são pessoas comuns.

Sim, todo tipo de seita virtual — dos terraplanistas aos gamers/trolls — teve alguma escala de adesão a Bolsonaro. E também todas as células nazifascistas organizadas ou semi-organizadas da sociedade civil encontraram um filão de oportunidade na sua eleição. Mas Bolsonaro não foi eleito apenas por esses eleitores. É preciso que junto a eles uma gigantesca camada de pessoas comuns tenha achado que ele era simplesmente a melhor opção. Se nós não decifrarmos esse enigma, não vamos sair nunca de onde estamos.

E é aqui que acho que o Foro não ajuda muito. Seus três apresentadores — Fernando Barros, José Roberto de Toledo e Malu Gaspar — são, como tentarei mostrar, quase arquétipos de supostas rotas de fuga que simplesmente não têm funcionado.

Nesse sentido, a boa conversa do Foro é uma espécie de situação concentrada do debate que gira em torno ao eixo progressista em variações que são as mesmas a bater na parede e voltar quando se trata de confrontar o populismo reacionário.

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Vou começar pelo Fernando Barros. Inteligente e culto, Fernando representa a voz da Razão. Assim, com R maiúsculo. A civilização e, com ela, a Razão Crítica.

Seu tom diante dos absurdos que se acumulam é sempre o horror, lembrando um pouco a forma como Adorno — volta e meia mencionado por ele — adotava quando descrevia que a mesma Modernidade capaz de produzir a alta tecnologia era também criadora de Auschwitz. A “barbárie” é inclusive um termo recorrente na sua descrição. Como que a suplantar as eventuais diferenças entre direita e esquerda, tocando em fundamentos mais essenciais que essa divisão contigente, Fernando Barros luta pela manutenção do mínimo legado civilizatório diante da invasão dos bárbaros bolsonaristas.

Sua leitura é de que vivemos sob a epopeia da burrice, do anacronismo, do obscurantismo. Uma era do horror em que o pensamento é esmagado pela vulgaridade pérfida de criminosos que teriam tomado o controle do Estado brasileiro, destruindo qualquer ideia minimamente balizada em um mínimo de decência e razão.

Mas a elegância e altivez dos comentários do Fernando são exatamente o que os enfraquece diante do bolsonarismo.

A máquina bolsonarista funciona justamente produzindo um feedback negativo da postura “elitista” da Razão Crítica. A delicadeza da alta cultura em contraste com a vulgaridade fascista, resultando na acidez dos comentários críticos, são fermento na máquina de demonização das elites culturais como saqueadoras, destruidoras do modo de vida popular baseado em um conservadorismo elementar, pragmático.

O intelectual aparece como desconectado dos problemas reais, elitista, descomprometido com a vida real das pessoas. O tom ácido é rebatido de duas formas: com a visceralidade do xingamento direto, do insulto, rebaixando a disputa para o nível pessoal; ou simplesmente com a vitimização ocasional, a postura do ofendido diante da arrogância da “esquerda”.

“Pobres de nós, conservadores que só estamos sintonizados com os sentimentos básicos do povo e somos constantemente perseguidos, ridicularizados e odiados pela elite esquerdista e seus aparelhos de propaganda. Quando alguém desmerecer seu meme no WhatsApp, saiba que a pessoa é arrogante, se pensa dona da verdade, pois a esquerda não tolera nada que não a repetição das suas próprias ideias. O que eles chamam de barbárie somos nós, o povo, o senso comum conservador que não está na torres de Babel acadêmicas.”

Se algum dia foi possível que textos cortantes produzissem escândalo e ultraje, hoje é exatamente do ultraje que vive a nova direita. Além de tudo, reagir ao tom ofendido é um dos esportes principais — conhecido como trollagem — utilizado nas plataformas bolsonaristas. É preciso ser agressivo suficiente, “autêntico“, arriscar uma “canelada” para revelar a fúria com que o “politicamente correto” irá atacar o sujeito que “diz o que pensa“.

A principal armadilha que a nova-velha direita criou para a esquerda no jogo virtual é exatamente enfraquecer aquilo que se mostrou por um tempo a principal estratégia dos grupos progressistas: utilizar o poder de pressão para constranger moralmente.

O objetivo da trollagem é produzir uma linguagem de segunda ordem: enquanto eles se chocam com o dito, nós consideramos o dito irrelevante, o que importa é rir do choque que eles sofrem. E pautá-los. Não importa o conteúdo do que eu digo, o que importa é o que ele faz com os progressistas. Como sabemos com trabalhos como de Angela Nagle, Richard Seymour e Dale Beran (e, se me permitem, também escrevemos umas coisinhas), o combustível da trollagem é o ultraje dos progressistas.

Os trolls não se constrangem pela sua postura anticivilizatória, ao contrário: eles se colocam como “os novos transgressores”, violando os códigos moralistas do politicamente correto. “O conservadorismo é a nova contracultura”, como sabemos, é a tolice repetida a quatro ventos entre os jovens que seguem bolsonaristas apesar de tudo.

Assim, é fácil ao bolsonarismo engolir a Razão Crítica por duas frentes: a via irônica da trollagem, entendendo o civilizador como um moralista, ou a via da vulgaridade, confrontando a postura elitista da alta cultura com o chão material da vida dura.

Nada disso fará as posições da Razão Crítica falsas ou irrelevantes; elas são apenas improdutivas para construir uma rota de fuga do bolsonarismo.

***

Passo ao José Roberto de Toledo. E aqui então temos “o homem dos números”. Toledo figura como o dono das estatísticas, das métricas, das planilhas, enfim, da razão fria. Portanto, representa a voz da Ciência. Não por acaso ele ajuda a produzir o “número da semana” e está sempre em contato com a consultoria Arquimedes, mas inclusive resolveu produzir um podcast específico somente para tratar de questões relacionadas ao COVID-19 sob o prisma científico chamado Luz no Fim da Quarentena.

Infelizmente, tampouco a Ciência está ajudando a criar uma rota de fuga do bolsonarismo. Começando pela ciência política que foi citada insistentemente em episódio recente, com aquele tom de argumento de autoridade positivista, por Toledo diante dos contrapontos que Malu Gaspar levantava quanto a um suposto enfraquecimento tendencial de Bolsonaro. Enquanto Malu dizia “olha, estamos achando há tempos que falta pouco para o Bolsonaro cair e no entanto ele segue bem vivo“, Toledo apenas respondia: “não sou eu, é a ciência política que está dizendo“.

Ok, mas os cientistas políticos na sua maioria erraram feio na avaliação do bolsonarismo. Não por acaso o que vem sendo produzido de maior qualidade no assunto vem da antropologia — mediante etnografias que, pela própria natureza da pesquisa etnográfica— invertem o sentido da voz para o movimento de baixo para cima. Enquanto as antropólogas advertiam para o risco de Bolsonaro ser eleito, a ciência política oficial permanecia falando de tempo de televisão, partidos políticos, base tradicional e apoio do Centrão. Mas não foi a televisão, e sim o Zapistão, que decidiu o pleito. O candidato orgânico da direita, Geraldo Alckmin, naufragou sem chances, enquanto o candidato orgânico da esquerda, Haddad, perdeu com folga para Bolsonaro. Ainda me lembro um cientista político famoso vaticinando que o segundo turno seria plenamente normal e disputado entre Alckmin e Jaques Wagner. Foram centenas de malabarismos retóricos — que iam desde a organização partidária até a ausência de Internet — para separar o que era um fenômeno visível nas redes do “mundo real” lá fora em que as coisas seguiam iguais.

Temos assim um campo dos iludidos que se agarram nos números para tentar extrair algo de palpável. Tenho um amigo que a cada pesquisa que sai faz trocentas considerações para dizer que a pesquisa não está dizendo exatamente o que estava dizendo — e lá vão as torções nos números para manter que “lá fora está tudo bem”. O próprio privilégio do Twitter diante do Zap realça o efeito distorcido.

Toledo pode ser associado — e é humanamente compreensível e até desejável sua atitude — como aquele que pensa que os números hão de derrotar Bolsonaro no fim das contas. A fadiga dos materiais, produzida por uma soma de crises, o desgaste natural, a crise econômica, o fim do auxílio-emergencial, o Queiroz, enfim, toda essa torrente de fenômenos vai fazer com os números despenquem. Os números do Twitter mostram.

E vejam a Ciência também foi engolida pelo Bolsonaristão. Aderindo cada vez mais claramente a perspectivas conspiratórias, o bolsonarismo reconstrói a polarização cultural projetando a mesma “arrogância” da Razão Crítica na Ciência. Em vez disso, os bolsonaristas preferem se apoiar no que Leticia Cesarino caracteriza como uma epistemologia do visual, isto é, só acredito no que eu vejo. O que poderia parecer um ato cético é, na realidade, mais crédulo que nunca: qualquer imagem ou vídeo manipulado ou fora de contexto pode servir de base para um raciocínio supostamente fundamentado contra os cientistas elitistas.

A mamadeira de piroca está aí para provar.

A vitória no discurso sobre a pandemia mostra que colocar a Ciência no lugar da Razão, criando uma substituição da autoridade do argumento racional pelos números objetivos, também não funciona como atalho para vencer o debate da subjetivação política.

***

Finalmente, Malu Gaspar. Brilhante jornalista, Malu foi autora de algumas das mais emblemáticas matérias sobre o neodesenvolvimentismo de Dilma, as negociatas internas e suas estratégias geopolíticas, bastidores da política, perfis geniais, entre outras (ao lado das matérias de Consuelo Dieguez). Mas Malu também é o alvo mais fácil aqui por se situar muito claramente no campo que Nancy Fraser chama de neoliberalismo progressista, isto é, a junção entre a política econômica “ortodoxa”, ou neoliberal, com pautas de reconhecimento nas disputas culturais. O perfil de Malu é exatamente o mesmo da linha editorial da GloboNews, por exemplo, e seria fácil imaginá-la na bancada no lugar dos péssimos Gerson Camarotti e Eliane Cantanhêde. Seria muito fácil descartá-la, portanto, e o que tenho visto na minha bolha é exatamente ameaçar o cancelamento do Foro pelas posições mais liberais de Malu. Então digamos que Malu seja o Mercado.

Só que, por outro lado, é exatamente pelo seu distanciamento da esquerda, sua postura “tucana” (figurativamente), que Malu às vezes tem insights interessantes. Como quando, por exemplo, sempre lembra que a esquerda “deveria escutar o Mano Brown” ou realça necessidades vitais das pessoas diante de considerações mais abstratas dos outros apresentadores. Ao mesmo tempo, está todo tempo em tensão com Toledo, com perfil claramente social-democrata, sobretudo quando o assunto é economia. Infelizmente (ou não), pelo estilo mais leve do Foro fica difícil entender as posições de modo estruturado, já que o formato jornalístico tende a privilegiar a rapidez no raciocínio, a velocidade no diálogo e a aversão à abstração como forma de manter o ouvinte fiel e atento.

Mas Malu tampouco aponta rota de fuga. Seu campo, o liberalismo lavajatista, talvez seja o que está sob sua maior crise. Com a queda de Moro, a saída de Deltan Dallagnol da Força-Tarefa, o controle de Bolsonaro sobre o MPF e a Polícia Federal, a própria suspeição a ser declarada no processo de Lula, gerando a anulação, entre outros acontecimentos, a pauta está cada vez mais fria. Aparentemente, a mobilização contra a corrupção — tradicionalmente reduto do moralismo hipócrita, embora em si mesma seja uma simples consequência do republicanismo — está voltando ao seu lugar de origem: a irrelevância eleitoral.

Situada nos segmentos mais conservadores da classe média, a luta contra a corrupção figura como um duplo distintivo: da própria fração de classe média de esquerda, que flerta com o assistencialismo e não prioriza o tema, e do povão, cuja adesão pragmática dispensa os altos valores políticos. Jessé Souza, na época em que escrevia textos mais sóbrios, certa vez demonstrou como o “voto desinteressado” era um signo de contraste e distinção entre classe, em que o privilégio das classes médias dava a possibilidade de uma abstração das necessidades urgentes (a mesma abstração que hierarquiza a cabeça e o corpo, a imaterial ou espiritual e o material ou braçal).

Além da derrota política na anticorrupção para o bolsonarismo, que muito claramente está se infiltrando no Estado para destruir todos os órgãos de controle e/ou controlá-los para seus interesses políticos, o “progressismo cultural” também está em crise. A revolta que alimenta o bolsonarismo se abastece, como destacado atrás, da ideia de “elites culturais” que desregulam a vida da população pobre a fim de instituir um plano de dominação. Assim, as pautas de inclusão ou reconhecimento são transformadas em mecanismos conspiratórios ou, numa versão mais popular e palatável, na “ditadura do politicamente correto”. Os “bons modos” que exigem uma contenção na linguagem, nos hábitos, uma certa finesse para poder conversar no program com Fátima Bernardes, são mais uma vez contrastados com a dureza da vida e ausência de alternativas econômicas que viabilizem uma forma melhor de vida para os pobres.

Somado a isso, a gestão econômica tem se mostrado desastrosa na prática e as “reformas” parecem movidas muito mais por um interesse de cima para baixo, ou mais especificamente da bolsa para o Estado, que por uma viralização social. Na verdade, quando vemos os longos editorais do grupo Globo contra servidores públicos ou direitos trabalhistas sabemos que ali não há uma adesão orgânica, apenas talvez certa passividade pela forma moralista com que o tema é debatido, sempre associando as políticas públicas e o aparato estatal à corrupção.

Não há dúvidas que o liberalismo não era tão grande no Brasil quanto é hoje. A disseminação do discurso pró-mercado de fato funcionou, se alastrou, perdeu a vergonha de se afirmar e atingiu públicos inéditos. Mas parece ter se arrefecido um pouco diante do avanço populista de Bolsonaro, voltando ao ponto em que é sobre-representado no debate público.

É claro que o neoliberalismo tecnocrata pode reagir, eventualmente se aproximando de posições culturalmente mais conservadoras em um lugar ambíguo e ocupando — como a “volta da técnica” e a saída dos “ideológicos”, como diz o discurso da Globo — o lugar que antes foi da esquerda. Dória, Moro, Mandetta e Luciano Huck estão à espreita esperando uma oportunidade, embora nunca tenham estado tão fracos quanto agora.

Este é um dos principais perigos e ao mesmo tempo impasses do nosso tempo: ao mesmo tempo que a esquerda precisa sempre se diferenciar da centro-direita para reservar seu lugar na polarização, evitando que a Janela de Overton se desloque demais, estamos diante do fascismo crescente, e isso exigiria uma atitude de consenso geral pragmaticamente orientado a expulsá-lo da cena política.

***

De qualquer forma, peço desculpas aos jornalistas caso em algum momento tenha sido ofensivo, mas simplesmente utilizei o Foro porque, além de ser provavelmente o podcast mais escutado atualmente no Brasil em política, é a minha turma.

Uma quarta via que escape da Razão, da Ciência e do Mercado, precisa ser inventada para que criemos uma rota de fuga do bolsonarismo. Talvez nas gambiarras juntadas em torno ao auxílio-emergencial, com a pauta direta direta da renda, possa haver uma brecha.

Mas isso já é papo para outro texto.

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Um comentario para "Foro de Teresina e as falsas respostas ao bolsonarismo"

  1. Pedro Henrique de Faria disse:

    Excelente análise. Tenho ouvido muito o Foro e também os considero “minha turma”. Acho que tem um elemento do podcast que resume bem esse tripé “Razão, número e mercado”: a recente (e equivocada) adesão à publicidade do ifood. Ali são apontadas razões justificando que o uso do aplicativo não corresponderia à uma precarização do trabalho e sim que a empresa possui um viés humano, contra a “barbárie” do capital, utilizando números e tentando nos fazer acreditar que as contradições próprias da exploração do trabalho estariam ausentes. É como o Foro: uma alento aos nossos ouvidos, mas que, na prática, pouco tem a oferecer em termos de emancipação.

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