Esquerda, antifábrica de subjetividades?

Capitalismo se impõe explorando necessidades, carências e desejos. Mas onde há, hoje, entre os progressistas, espaços para inventar novas formas de troca, colaboração e manutenção da vida? Sem conseguir criá-los, cedemos a debates inúteis

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Por Renan Porto | Imagem: Christoph Ruckhäberle

Depois do penúltimo ato contra Bolsonaro, no dia 3 de julho, algumas discussões rolando nas redes traziam a questão da legitimidade ou não da ação direta dos black blocs nas manifestações. Um argumento recorrente deslocava tal questão para o fato de que tais divergências só enfraqueceriam a suposta unidade nunca realizada da esquerda enquanto grupos de direita estariam agindo de modo articulado para deslegitimar o campo da esquerda como um todo. Gostaria de trazer alguns pontos sobre essa tão cobrada unidade das esquerdas. Tão almejada por partidos e militantes desse campo.

Primeiro, é interessante observar que conservadores, reacionários, partidos de direita não precisam de consenso e unidade pra vencer disputas políticas. Eles têm toda a ordem social capitalista funcionando em favor deles. Para a maioria, essa disputa é parte dos negócios, já que o Estado opera em favor do mercado. Os políticos são muitas vezes facilitadores burocráticos agindo em favor de interesses privados. Não à toa temos bancadas disso e daquilo. O argumento de que esses grupos agem de forma coordenada enquanto a esquerda está dispersa brigando sobre os black blocs me parece mais uma forma de abafar o dissenso. Argumento este que está aí desde sempre, pelo menos desde de junho de 2013, e nunca fez mais do que por o exército para bater em manifestantes quando teve o poder do Estado. Como fez o PT nos protestos do #NãoVaiTerCopa em 2014. Mas a unidade das forças políticas é realmente um requisito para a vitória política?

O bolsonarismo nunca precisou de qualquer unidade em torno de algum partido ou qualquer organização única para alcançar o poder do Estado. Sempre funcionaram pela dispersão. E tem coisa mais dispersa e anômala do que as igrejas evangélicas?

A convergência de interesses, afetos e desejos que produzem uma ressonância coletiva de larga escala, um movimento de massas, uma massa sem homogeneidade, ou uma multidão nas palavras de Antonio Negri e Michael Hardt, está para além de um acordo consensual entre grupos diversos, uma decisão consciente a todos. Temos máquinas operando para produzir essas massas homogeneizantes o tempo todo. Basta sair na rua, ir ao centro de qualquer cidade, e podemos ver organizações capitalistas trabalhando todo dia e o dia todo na produção de subjetividades, corpos e mentes. E no fim de semana, muitas das pessoas que não estão consumindo e trabalhando estarão na igreja.

Enquanto isso, quais instituições e organizações nós temos que produzem uma experiência não capitalista? A universidade, alguns espaços artísticos, que normalmente não existem em cidades pequenas, os encontros formais ou informais de pessoas contrárias ao capitalismo?

Mas ora, vejamos a recente luta indígena para combater a tenebrosa proposta da PL490 (que dificulta ao máximo a demarcação de terras indígenas — em especial dos povos que permaneciam expulsos de seus territórios quando a Constituição de 1988 foi promulgada). Por que será que são justamente os indígenas que se colocam tão frontalmente contra o Estado? Que corpo e subjetividades e sociabilidades são essas que se forjam nessas comunidades? Por que eles nunca precisaram ter um nome só, uma língua só, para convergiram em suas lutas?

Os evangélicos estão aí há décadas forjando suas formas institucionais e subjetivas, se difundindo sem qualquer unidade administrativa ou teológica. Inventaram uma forma financeiramente sustentável de fazer isso. Ocuparam o lugar de produção da experiência lúdica e intelectual. Lembro de uma vez quando saí para correr na minha cidade, Jequié-BA, e observava mais uma igreja nova que se inaugurava. Pensei aquilo enquanto arquitetura, produção de um espaço, lugar de encontro e sociabilidade, produção de linguagens, discursos, modos de explicar a realidade, produção de uma experiência artística através da música. Uma fábrica de subjetividades.

São esses espaços de produção de subjetividades que precisamos inventar contra o capitalismo. E através deles também inventar novas formas de trabalho, colaboração, manutenção da vida, troca, distribuição de bens e serviços. Movimentos como a Teia dos Povos já estão fazendo isso, por exemplo. As comunidades eclesiais de bases também já o fizeram, um dia. Em junho de 2013, esses espaços se proliferavam por todos os lados. Todo mundo fazia parte de algum coletivo. Havia coletivos para tudo que é coisa, criando e experimentando com tudo. Era um associativismo monstruoso. Assembleias, ocupas, festas surgiam incessantemente. A internet era uma ecologia de blogs e canais e nada ficava reduzido a site nenhum. A criatividade não se continha.

Mas nem tudo se esgotou. Essas linhas de força foram se reatualizando em outras práticas e precisam ganhar visibilidade e consistência. Por exemplo, podemos citar o canal Transe no Youtube como um bom experimento nessa direção. Canal esse que tem difundido excelentes discussões e tem sido um espaço de formação para muitos. Discussões que geram curiosidade e desejo em torno delas.

O capitalismo se reproduz a partir da exploração das nossas necessidades básicas de sobrevivência, das nossas carências e desejos. Coloniza cada dimensão da vida, inclusive nossa libido e desejo, seja sexual, estética ou intelectual. Para quebrar esse ciclo de reprodução, precisamos ir nos organizando devagarinho para cultivar outros espaços de florescimento de experiências não capitalistas.

Talvez por um bom tempo o capitalismo nos ofereceu um pouco mais de chance de segurança e horizonte de expectativas. E daí talvez fosse melhor individualmente seguir os seus caminhos já dados de sobrevivência e realização individual. Mas com o acirramento das tensões e emergências de todas as ordens, a eminência de catástrofes, esse horizonte que já não era acessível a todos fica ainda mais indeterminado. Uma catástrofe climática, por exemplo, nos forçaria a reinventar as formas de sobrevivência de modo inescapável.

Imagine a cena: tu e teu corpo, os corpos de quem está perto, a cidade arruinada, não tem carro nem celular nem nada para te socorrer. Tu e toda a orfandade do mundo no teu peito. Caminha no escuro, breu da noite, no risco de uma doença, de um ataque, de um acidente, da fome.

Por séculos inventamos formas de suprir todas essas carências. Construímos mecanismos para cada uma delas. Construímos instituições públicas para gerir a distribuição de bens e serviços, mediar conflitos de interesses, sob o comando das unidades administrativas do Estado. Onde chegamos? A saúde, a polícia, a indústria de alimentos e remédios e ferramentas de todos os tipos, as tecnologias de comunicação, tudo tão bem amarrado e bem coordenado em alguns poucos lugares. E de repente a gente tem que aprender a ser bicho de novo! Essas gentes que se viram!

Claro, não chegamos a esse ponto. Mas uma contingência, uma cadeia de eventos imprevistos disparando um fenômeno natural de escalas inimagináveis e eis aí nosso corpo nu de novo. Abandonar todas essas formas de sustentação coletiva forjadas há séculos pode não ser sequer possível. Mas mais do que nunca, seja porque não existe mais horizonte de pleno emprego e bem estar social, seja pelo recrudescimento das formas policiais do Estado, seja pela iminência de um colapso climático, precisamos no mínimo imaginar outra coisa que não o capitalismo e o Estado.

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