Bacurau e a esquerda anestesiada

Uns veem-no como distopia já em curso. Outros, como utopia catártica. Em comum, a incapacidade para lidar com um real cada vez mais diferente do imaginado. O sintoma não está na obra, mas na estranha recepção de boa parte do público

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Por Bárbara d’Alencar Dragão

Que a esquerda, a partidária, aquela dos cálculos eleitorais e das disputas ínfimas, esteja perdida em seus próprios labirintos já não é novidade. Não que a disputa partidária e a volta ao poder devam ser renunciadas em prol de uma pureza pueril, mas quando o horizonte de sentido se reduz aos aspectos meramente eleitorais, a derrota deixa de ser apenas um acidente de percurso.

Com o avanço da era do absurdo, passados os tempos da política sob a forma do ridículo – saudades desse período, ao menos se podia rir! – a realidade tem se tornando cada vez mais insuportável, mesmo para aqueles e aquelas que não estão diretamente ligados aos quadros fixos da briosa esquerda partidária-institucional.

Trata-se dos que, sem filiação partidária, lugares em coletivos fixos, ou militância constante, se reconhecem dentro do campo progressista além dos períodos eleitoreiros. Para estes, a realidade tende a se tornar ainda mais pesada, pois estão longe de certos afetos ilusórios e iludidos, capazes de serem criados apenas pela máquina partidária. Sim, o mesmo maquinário que é capaz de fazer crível a realidade também é, algumas vezes, um poderoso narcótico. O que pode ser mais distante da realidade atualmente do que certas pretensões partidárias à esquerda? O diagnóstico pós-moderno do fim do real, ironicamente, aparece naqueles que talvez mais o tenham negado, já que se apegam a um real que é apenas a compensação de sua perda, a única realidade possível é a marca de seu desaparecimento.

Não há, nestas marcas, apenas o encastelamento partidário – que já é o reconhecimento das incapacidades de lidar com um real cada vez mais diferente daquele imaginado. Há também um enfraquecimento dos laços e uma distância cada vez maior com aqueles que se identificam com as ideias e os ideais de esquerda, mas estão fora dos quadros partidários.

Uma massa de homens e mulheres que, não estando unidos pelos vínculos partidários, nem pelos passos da militância, unem-se por uma sensibilidade comum que perfaz um horizonte de sentido, um sentimento de mundo compartilhado. Estes sentimentos e sentidos eram orientados primordialmente por uma capacidade de apresentar uma razão e uma norma de ação, mesmo no meio de um mundo aparentemente sem razão e cuja norma de ação parecia não ter limite ético.

Contudo, foi-se o tempo em que era possível realizar verdadeiros diagnósticos e apontar razão onde se via apenas a desrazão. A rapidez dos tombos em sequência e a miopia em enxergar os abismos cavados aos próprios pés, tornam cada vez mais impossíveis as capacidades diagnósticas. Por isso, sobram rápidas e superficiais análises de conjunturas; e, se fortalecem eventos imediatistas para liberar as pulsões. Sem essa liberação mínima, seriam impossível certas ilusões. Mas, uma vez ocorrida a liberação, tudo se esvai em uma grande dispersão, entrando em um círculo aparentemente vicioso.

Essas pulsões são liberadas, por exemplo, quando é possível alcançar os trending topics do twitter, sem falar na incontida e ingênua esperança de que um recente passado volte a ser, como que magicamente, não considerando a distância entre o ontem e o hoje. Mas quando tais fugas do real vão aos poucos perdendo a capacidade de anestesiar, o que sobra?

Ora, sobra aquilo que há de anestético na estética: a arte e seu efeito catártico. Não é este o efeito de Bacurau, o filme? Não tem sido ele a catarse para uns, mais anestesia para outros? O fato é que estes efeitos estão diretamente relacionados não com a obra fílmica em si, porém mais profundamente com a perda do real.

O debate acalorado sobre o filme, reduzido simploriamente entre bajuladores e detratores, perde-se em não captar o sintoma expresso pela obra artística, e que não passa pelas consciências e talentos dos seus realizadores. Esta questão sintomática não está na obra em si; mas, do lado de cá, na percepção e recepção, na sensibilidade do público espectador.

Os efeitos causados pela obra em seu público se referem, portanto, muito mais aos espectadores e um horizonte de sensibilidade que vai se esfacelando com as perdas da capacidade de realização e de fabulação do mundo, do que propriamente do filme. Deter-se no enredo e nos efeitos fílmicos da obra é perder o que ela suscita de mais primordial.

Assim, para aqueles que veem no filme uma distopia para falar de um futuro que na verdade é presente, fica a sensação anestésica. Atônitos, se reconhecem sem saber bem o que falar sobre a obra, restando apenas tentar entender a sensação de espanto emudecedor. Este sentimento de perplexidade é idêntico ao que se segue no cotidiano; ampliado na tela fílmica, é capaz de provocar ainda maior estupefação. Não pela capacidade da obra em si, mas porque a estupefação vai se tornando o sentimento dominante do mundo. O filme, como parte integrante deste real, anestesia não por retirar, mas por deixar o espectador ainda mais cativo de sua perplexidade.

Há outros que não veem propriamente uma distopia, identificando no filme uma utopia. São aqueles para os quais, conta mais a catarse do que o puro efeito anestésico. Após a descarga emocional do filme, é hora de assumir no real o que ele propõe. Para o espectador catártico – diferente do anestesiado – o filme apontaria um caminho de resistência, um certo modo de ação. Prova da incapacidade real de orientação da ação, ele confunde o roteiro do filme com uma estratégia hodierna, confunde o ficcional com o factível. Para este, a perda do real é mais desviante, pois ele vê no filme aquilo que nele não está, é o avesso do realismo, porém sem a fantasia criadora. Desse modo, ele não é atônito e perplexo, mas resoluto, tanto que não emudece, mas fala o tempo todo da obra, a desdobra, sem se dar conta daquilo que expressa de si mesmo, quando pensa estar falando apenas de uma coisa. A realidade que vê na obra é a sua ilusão omitida.

Estes dois tipos de espectadores, embora pareçam contrários, expressam o mesmo sintoma: a perda do real, a certeza de um tempo histórico que escapou das mãos sem compensações ou restituições possíveis. Nem o próprio filme lhe pode ser uma restituição, ainda que simbólica; mas no fundo, os dois tipos de espectadores não sabem o que o filme é. Se o próprio filme lhes escapa, mas ainda o real. Um, já o acha tão perdido que identifica presente e distopia; o outro, também já o acha tão distante, que propõe possuí-lo novamente seguindo os “passos do filme”. Um, perde-se entre o filme e o presente; o outro, entre a obra e o futuro. Mas o que ambos não conseguem ver com certeza é a realidade, o hoje.

Nem distópicos, nem utópicos: na verdade, atópicos. Sem lugar, em um mundo que os expulsa de dentro de si mesmo, mostrando que um dia este mesmo mundo não fora completamente deles, conforme tinham imaginado. Não vivemos em Bacurau, mas onde estamos? E preciso fazer esta pergunta novamente, não para entender o sentimento de pertença, mas a pertença do sentimento.

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9 comentários para "Bacurau e a esquerda anestesiada"

  1. Mathias disse:

    Gosto do texto. Em qual lugar do tempo estamos? Qual capacidade de escrevermos a história do tempo nós temos? indústria cultural para todos os gostos, individualismo contraditoriamente marcado pelas ausências de si, a especialização até da própria festa, a robótica, o medo da morte e o sonho da vida eterna, o Instagram, o WhatsApp, os bancos … e a reforma agrária cadê? Existir já foi sinônimo de escrever a história do seu tempo. Hoje sobrevivemos e derramamos nosso grande ego onde há espaço para que ele abunde. O mundo é velho, nossa modernidade infante. O tempo há de mostrar que a vida não precisa de sentido, é pra ser vivida de afetos somente. A cidade é o nosso lugar de colonização passiva. As camadas de ilusão se formam sucessivamente em nosso entorno. estamos absolutamente perdidos no nosso próprio tempo e não temos saída. Quem conseguirá ver beleza na colheita, no floramento, na chuva, na criança? Quem abrirá mão de digitar palavras explicativas de um sistema falido em tom professoral e gozar da reverência, de ouvir um disco novo da banda cool ou irada? Pergunto pra dizer que os poucos que entendem mais ou menos a nossa modernidade não quer sair dela tampouco a imensidão que está absolutamente submersa nela quererá. O comunitarismo campesino precisaria desenvolver uma forma de defesa bélica para proteger os seus territórios enquanto não conquistamos o comunitarismo mundial. É, a suposta democracia possibilita o aproveitamento legítimo de nossos recursos. Não vi o filme. No sertão da Paraíba onde moro não tem cinema.

  2. Anelise disse:

    O que o filme é para a autora, afinal? Não adianta nada dizer que ninguém entendeu o filme, sem dizer exatamente o que isso significa. Uma leitura um tanto quanto obscurantista, ao meu ver..

  3. Lucas disse:

    Acho engraçado as pessoas não terem gostado do texto. Todas as esquerdas estão perdidas, paralisadas, embasbacadas. Entre iludidos com o lula livre, reformistas, militantes partidários e encastelados, ninguém sabe o que fazer e ninguém fala com o povo. O texto aponta essa desorientação.

  4. Willams B. de Lima disse:

    Com toda minha simplicidade de observador não estou conseguindo mas identificar o que é ser de “esquerda ou progressista no brasil”, vejo como uma centopeia que apesar de tantas pernas encontra-se locomovendo-se rastejante e vai se despedaçando e dividindo-se ficando cada fragmento apenas com uma perninha transformando-se em Sacis, porém dos poderes do Saci só estão conseguindo aparecer e desaparecer misteriosamente e as vezes obtendo sucesso no principal divertimento do Saci que é atrapalhar as pessoas para se perderem, encerro o meu simples texto com citação inspirado em um trecho do livro de Paulo Freire – Pedagogia da Autonomia: Nós esquerdistas, progressistas, marxistas, comunistas, socialistas, feministas, sindicalistas, oprimidos, proletários, defensores da democracia etc. ainda somos minorias por não perceber que juntos seriamos maioria.

  5. Igor disse:

    Muitas palavras bonitas e pouca coerência.

  6. Roberto Blatt disse:

    O texto é quase a reprodução, o xerox, da dicotomia rasa entre apocalípticos e integrados. E ainda sobra para uma retórica acerca do real. Ora , o que é isso ? Me parece elucubração de quem não participa do entrecruzamento de realidade e institucionalidade , ou seja , na cruz da realidade de poder. Percebo isso quando fala de esquerda encastelada. Me faz pensar no PSTU e seu fora todos sem ter um único vereador eleito no país . Ruim essa analise, não faz avançar em nada uma compreensão do filme muito menos da realidade de que reivindica ter acesso a uma espiadela.

  7. Angela A Teles disse:

    Quando a “verdadeira esquerda”, a visionária e iluminada, vai assumir o protagonismo? O PT não se mostrou um grande equívoco, não está acabado? O problema para a “verdadeira esquerda” não era o PT e sua base militante fanática? Então, agora ele está na lona. Está na hora da “verdadeira esquerda” encarar a extrema-direita que ela nunca acreditou que existisse. Ou o inimigo ainda é o PT e as petistas fanáticas como eu? Quanto ao texto que não tratou do “filme em si”, mas o utilizou como mote para falar mal do PT, é um grande desrepeito à obra fílmica, ao trabalho dos diretores e ao cinema brasileiro.

  8. Tomás Alvim disse:

    Eu entrei achando que leria uma crítica a Bacurau, mas encontrei uma crítica à esquerda. Para a direita, tudo o que a população progressista produz agora é um ataque ao governo Bolsonaro, é?
    E também não sabia que eu, mero progressista sem forte participação política, necessariamente era “anestesiado” pelas “instituições de esquerda” simplesmente por gostar de uma obra-prima sobre a minha terra.

  9. Ricardo Cavalcanti-Schiel disse:

    “Esquerda anestesiada”???
    Já está realmente começando a ficar chato esse negócio de chamar o PT de esquerda. Assim como The Guardian alterou recentemente a terminologia redacional, deixando de falar de “mudança climática” para falar em “colapso climático”, também já é mais do que hora de deixar de falar de PT como “esquerda” e começar a chamá-lo de “liberais assistencialistas” ou “centro-esquerda moderada”.
    Felizmente, o brilhantismo da contundência do artigo não avaliza o título equivocado.

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