Uma agenda econômica para resgatar o Brasil
Iludido pelo mito da eficiência dos mercados, país afunda na desigualdade e, como mostra o Amapá, caminha para a ruína. Mas é possível fazer das nossas grandes carências o motor de um novo desenvolvimento. Seu eixo, agora, é o Comum
Publicado 19/11/2020 às 19:46 - Atualizado 23/12/2020 às 16:56
Por Pedro Rossi, Marco Antonio Rocha, Esther Dweck, Ana Luiza Matos de Oliveira e Guilherme Mello
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Este texto é parte do livro:
Economia pós-pandemia
Organizado por Esther Dweck, Pedro Rossi e Ana Luiza Matos de Oliveira |Publicado pela Autonomia Literária, parceira editorial de Outras Palaras
Lançamento: 5ª-feira, 18/11, às 20h30, aqui
Título original: “Uma agenda econômica para todos”
Até aqui este livro trouxe uma perspectiva crítica ao pensamento econômico dominante e apontou a necessidade de pensar outro paradigma para a atuação do Estado na economia. A primeira parte discutiu aspectos teóricos e desmistificou falácias associadas à agenda da austeridade fiscal. A segunda parte avaliou os impactos da política fiscal na desigualdade e em diversas áreas sociais e apontou para a necessidade de alternativas e de inverter a lógica da política fiscal de forma a que esta sirva como um instrumento para a garantia de direitos e não para o constrangimento dos mesmos. Por fim, a terceira parte do livro traz reflexões para outro paradigma de política econômica. Neste último capítulo, trazemos as linhas gerais para uma outra agenda de desenvolvimento que é a antítese da agenda da austeridade: uma agenda econômica para todos, que aponte o caminho para a recuperação econômica e para transformação da sociedade brasileira rumo à igualdade.
Essa agenda pressupõe reafirmar a necessidade do crescimento e do desenvolvimento econômico, mas ao mesmo tempo repensar suas características atuais (Oliveira, 2014). O crescimento, entendido como o aumento da produção de bens e serviços, pode ter características perversas (padrões de consumo insustentáveis, exclusão social, degradação ambiental etc.) mas também positivas e necessárias (construção de moradias, expansão dos serviços de saúde, aumento das atividades culturais etc.). O problema não é o crescimento, mas qual crescimento. Mais do que conciliar crescimento econômico com preservação ambiental e transformação social para atacar as múltiplas dimensões da desigualdade (social, racial, de gênero, regional etc.) da sociedade brasileira, é necessário transformar essas agendas no objetivo do processo de desenvolvimento. Para isso, é necessário recuperar uma tradição econômica que pensa o desenvolvimento a partir de um lugar periférico e que articula/integra as estruturas de demanda e de oferta, o mercado de trabalho, os padrões de consumo, estrutura produtiva e o emprego. Há, portanto, uma dimensão macroeconômica do desenvolvimento que esse capítulo propõe discutir.
O modelo de desenvolvimento aqui proposto é movido por dois motores principais do crescimento econômico: i) a distribuição de renda e a inclusão social; e ii) a expansão da infraestrutura social. De um lado, a distribuição de renda é fundamental para a consolidação de um mercado interno dinâmico que, por sua vez, pode proporcionar emprego de qualidade para os trabalhadores e ganhos de escala e produtividade para as empresas. De outro lado, a inclusão social não pode ocorrer apenas pela ampliação do acesso aos bens privados, mas pela ampliação dos direitos de cidadania. É necessário pensar a esfera pública, ampliando o acesso e melhorando a qualidade das instituições de serviços públicos, o que remete ao segundo motor do crescimento.
A expansão da infraestrutura social tem efeitos dinâmicos de curto prazo, por meio dos multiplicadores de gasto e da geração de empregos, e efeitos de longo prazo, por meio da melhora da qualidade de vida das pessoas e da produtividade do sistema. Diante do grau de desigualdade no Brasil e da carência na oferta pública de bens e serviços sociais, esses motores podem conferir ao país anos, talvez décadas, de crescimento econômico.
Além dos dois motores do crescimento, outra característica central da proposta é a ideia de política pública orientada por missões socioambientais, que apontam para as finalidades do processo de desenvolvimento e para a solução de problemas e gargalos históricos da sociedade brasileira como a mobilidade urbana, saúde, educação etc., mas também para uma nova lógica de organização do planejamento econômico. Além de apontar para as finalidades, as missões devem articular as demandas sociais com uma base produtiva e tecnológica necessária para atendê-las, contribuindo assim para a sustentação do modelo de crescimento e para a transformação estrutural da economia.
Considera-se que o conjunto das políticas públicas deve ser pensado de baixo para cima, a partir da necessidade dos diferentes territórios e regiões e das demandas socioambientais que cada um apresenta. Não é possível elaborar um projeto de desenvolvimento único, constituído “de cima para baixo”, para um país continental e heterogêneo como o Brasil. Ou seja, é preciso identificar os problemas e as soluções a partir as especificidades locais e regionais e da demanda pelos bens e serviços finais e os insumos necessários para o seu provimento. A solução de muitos dos problemas sociais poderá ser encontrada em mecanismos de solidariedade e tecnologias sociais que podem ser desenvolvidas no âmbito local, em comunidades, bairros ou cidades (Dagnino, 2014). A tarefa de pensar o bem comum é, portanto, uma tarefa de base. No entanto, o Estado tem um papel fundamental no âmbito nacional para organizar as diversas demandas, planejar os esforços para seu enfrentamento e encontrar as formas de coordenar as ações dentro da esfera pública (e em âmbito federativo), assim como entre o setor público e privado.
A articulação do provimento de infraestrutura social com uma política de desenvolvimento produtivo requer a coordenação de investimentos e incentivos para a capacitação em tecnologias estratégicas e para o fortalecimento da estrutura de fomento ao desenvolvimento, na proposta das “missões” apresentada mais adiante. A centralização das ações coordenadas a partir de cada eixo de demanda social selecionado poderá contribuir para a construção de uma agenda que tenha alcance nacional e que, ao mesmo tempo, procure dialogar com ações regionalizadas e no âmbito local.
1) Dois
principais motores para o crescimento
O conceito de
desenvolvimento pode ser definido como um processo histórico marcado
pelo crescimento econômico e por mudanças estruturais. A mudança
estrutural é crucial para indicar a direção do processo de
desenvolvimento. Essa aponta as mudanças na paisagem econômica e
social, na estrutura produtiva, no mercado de trabalho, na
distribuição da renda e da riqueza, nos indicadores sociais e
ambientais. Pode haver desenvolvimento com industrialização
intensa, concentração de renda e degradação ambiental, como
ocorreu no período da ditadura militar no Brasil. Por outro lado, é
possível buscar um modelo de desenvolvimento em que a finalidade do
crescimento econômico seja a igualdade e a garantia de direitos e
que isso se reflita nos indicadores sociais, nas condições de
trabalho, na distribuição da renda e da riqueza, na preservação
ambiental e na melhoria dos indicadores de qualidade de vida nas
cidades, em particular nos grandes centros urbanos.
O trabalho de
Bielschowsky (2014) nos ajuda a pensar estrategicamente o
desenvolvimento brasileiro por meio do conceito de frentes de
expansão, que constituem motores do crescimento econômico. O autor
identifica três frentes de expansão para a economia brasileira: i)
um amplo mercado interno; ii) uma forte demanda interna e externa por
nossos recursos naturais; e iii) perspectivas favoráveis quanto à
demanda estatal e privada por investimentos em infraestrutura
(econômica e social). Nesse desenho conceitual, cabe ao Estado atuar
sobre os motores de crescimento para garantir o crescimento e o
desenvolvimento.
A partir da ideia de
frentes de expansão, é possível pensar uma nova lógica de
operação da economia brasileira no longo prazo que garanta
simultaneamente dinamismo econômico e uma profunda transformação
da estrutura produtiva e social. Para essa estratégia de
desenvolvimento, a atuação pública deve estar voltada para dois
motores essenciais do crescimento econômico (ou frentes de
expansão): a distribuição de renda e a oferta de infraestrutura
social. Isso não significa negligenciar outros motores do
crescimento, como aqueles apontados por Bielschowsky (2014), mas
concentrar a atuação do Estado e as políticas públicas nesses
importantes eixos do desenvolvimento.
O intuito da requalificação do debate sobre as frentes de expansão da economia brasileira é, sobretudo, de discutir o sentido do desenvolvimento e, simultaneamente, pensar a estrutura produtiva necessária para dar sustentação ao projeto e assim atender as demandas sociais.
1º motor: a distribuição de renda
A distribuição da
renda é entendida como um motor do crescimento uma vez que a
ampliação da renda das famílias fomenta o mercado interno de
consumo, induzindo os investimentos privados na ampliação da
produção e impulsionado a geração de emprego e renda, o que se
reverte em mais consumo, investimento e renda. Este motor é
fundamental em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira,
fundada na exploração da população negra e indígena, das
mulheres, e com expressivas desigualdades regionais.
A constituição de
um mercado de consumo de massas foi uma estratégia econômica
deliberada dos governos do Partido de Trabalhadores, explicitada no
programa de governo do partido em 2002 e nos planos plurianuais (PPA)
elaborados ao longo do governo Lula (Bielschowsky, 2014). Segundo
Carvalho e Rugitsky (2015), a aceleração do crescimento brasileiro
a partir de 2004 teve contribuição crucial do processo
redistributivo, assim como do crédito, o que reforça o elo entre
redistribuição e consumo. Esse fato decorre de uma aceleração do
circuito da renda impulsionada pela transferência de recursos para
uma parcela mais pobre da população, com uma propensão a consumir
maior. Ao longo do processo de inclusão no mercado consumidor, a
ampliação da demanda gera aumento do volume de vendas, o que pode
proporcionar aumento de escala das empresas domésticas, aumentos de
produtividade e crescimento econômico.
As políticas de aumento de salário mínimo e as políticas de transferência da seguridade social e dos programas de combate à pobreza são fundamentais para a melhora relativa na renda da parcela mais pobre da população. No entanto, também é preciso endereçar estruturas que reproduzem as desigualdades e a exclusão social no Brasil em termos raciais, regionais e de gênero, como a carga tributária que reforça e institucionaliza a forte concentração de renda e riqueza: por exemplo, estudo publicado por Inesc e Oxfam (Salvador, 2014) mostra que as mulheres negras são as que mais pagam impostos proporcionalmente à sua renda. Portanto, uma reforma tributária progressiva é imprescindível para amplificar os efeitos redistributivos da política fiscal e reduzir a desigualdade social.
Como já
discutido por Furtado (1983), também é preciso repensar a
articulação dos padrões de consumo com outros aspectos do
desenvolvimento econômico, favorecendo formas coletivas de consumo.
A ampliação da oferta de serviços públicos universais, que
atendam com qualidade a maioria das classes sociais, não apenas tem
a capacidade de ampliar o consumo coletivo, como pode coadunar-se com
políticas voltadas para a economia local e regional, alterando a
cesta de consumo da população, promovendo o desenvolvimento local e
regional e privilegiando os micro e pequenos empreendimentos.
Dessa forma, a
consolidação de um forte mercado interno de consumo por meio da
distribuição de renda deve ser acompanhada por uma discussão em
torno da qualidade do consumo, tanto de bens privados quanto de bens
públicos. Segundo Medeiros (2015), no ciclo distributivo recente,
apesar da difusão de padrões de consumo privado, persistiu a
precariedade do acesso de uma parte da população aos bens e
serviços sociais básicos como moradia, transportes, saúde e
educação, o que nos remete ao segundo motor do desenvolvimento.
2º motor: o investimento em infraestrutura social
O investimento em infraestrutura social permite a ampliação da capacidade de oferta de bens e serviços sociais e de consumo coletivo pela sociedade. Este investimento pode ter um enorme efeito dinâmico de curto prazo por meio dos multiplicadores de gasto e da geração de empregos, sendo, portanto, um vetor de saída para a atual crise econômica. Além disso, o investimento social também tem amplos efeitos positivos sobre o crescimento econômico no longo prazo, por meio da melhora da qualidade de vida das pessoas e da produtividade do sistema e de uma redistribuição de renda e riqueza, por exemplo, se os trabalhadores demoram menos tempo para ir e voltar do trabalho, com serviços de transporte de maior qualidade. Trata-se de uma força de trabalho com mais saúde, mais educação, mais lazer e mais cultura, decorrentes de uma maior oferta de serviços sociais.
O investimento
social não deve ser tratado como um fardo para as contas públicas.
É falsa a ideia de que o gasto social reduz a eficiência do sistema
econômico. Para Peter Lindert (2004), que traz farta evidência
estatística e econométrica e uma análise histórica minuciosa, o
gasto social, ao contrário da intuição de alguns economistas, pode
trazer estímulos ao crescimento econômico. No caso brasileiro,
Castro (2013) aponta que os investimentos sociais têm impactos
positivos tanto para a redução da desigualdade quanto para o
crescimento econômico e a geração de emprego. Segundo o IPEA (2010
e 2011), um incremento de 1% do PIB nos gastos com educação e
saúde, por exemplo, gera crescimento do PIB de 1,85% e 1,70%,
respectivamente. Ademais, o gasto social reduz a desigualdade da
renda: um aumento de 1% do PIB nos gastos com Saúde Pública e no
programa Bolsa Família reduz a desigualdade, medida pelo índice de
Gini, em -1,50% e -2,20%, respectivamente.
Para além dos efeitos econômicos, como argumenta Castells (1989), a falta de provimento de bens de “consumo coletivo” está no cerne da crise urbana em sociedades capitalistas: a exigência do fornecimento de infraestrutura para permitir a expansão da população urbana não encontra adequação, em geral, à lógica de investimento capitalista, porém é condição para a ampliação da própria produção capitalista, o que cria uma contradição que tende a resultar em deterioração das condições de vida e crise de sociabilidade. A defesa da melhoria e ampliação da infraestrutura social, nesse sentido, procura criar condições de construção da legitimidade da política de desenvolvimento produtivo em bases populares.
Mais
recentemente, a OCDE, em seu documento The Future of Work,
também aponta para a necessidade de construir uma agenda de
transição para o novo paradigma tecnológico – conhecido como
“4.0” (Pfeiffer, 2017; Schwab, 2019) – que inclua intervenções
estratégicas do Estado no provimento de bens e serviços como forma
de redução da desigualdade. Essa agenda deve incluir uma política
educacional, tecnológica e industrial para a expansão de bens e
serviços ligados à proteção social, infraestrutura pública e
direitos básicos fundamentais (OECD, 2019). Segundo a instituição,
adaptar-se a um mundo 4.0 não significa ampliar a precarização. No
Brasil, país com alta desigualdade, baixo custo relativo do trabalho
pouco qualificado e baixa automação, é preciso tratar o tema de
forma a não ampliar ainda mais as desigualdades pré-existentes.
Dessa forma, os dois objetivos de redução da desigualdade de renda
e aumento do investimento social são fundamentais ao crescimento
econômico. Além da maior justiça social e reparação histórica,
a implementação de um projeto de desenvolvimento social tem enorme
potencial de dinamizar a economia brasileira dada: i) a enorme
concentração de renda; ii) a carência de infraestrutura social.
2. Missões sociais e ambientais
Esse modelo
econômico de desenvolvimento concentrado em dois motores sociais
supera visões estreitas de política social, como aqueles apontados
por Saad-Filho (2016), e almeja a melhora na qualidade de vida da
população, a expansão da cidadania e a quebra do ciclo da pobreza
e da desigualdade. Para além de gerar emprego e renda e corrigir
mazelas crônicas na oferta de serviços públicos de qualidade, pode
ser funcional ao desenvolvimento tecnológico e produtivo. A ideia de
missões socioambientais dá tração a esses dois motores ao
promover o desenvolvimento de tecnologias e soluções para objetivos
específicos definidos pela sociedade. As missões podem atribuir
novas finalidades para as instituições públicas e direcionar as
políticas públicas em geral, em especial, a política fiscal, como
já discutido no capítulo 16.
Essas missões
podem se organizar em torno dos eixos do “investimento social” –
como mobilidade urbana e transporte, saneamento básico, meio
ambiente e tecnologia verde, habitação popular, saúde, educação
e desenvolvimento regional. Além disso é necessário pensar em
dimensões transversais que devem estar presentes de forma estrutural
em cada uma das missões como a questão ambiental, de gênero e
racial, conforme apontado ao longo desse livro nos capítulos 10, 11
e 19.
As missões
socioambientais devem articular uma transformação da estrutura
produtiva de forma a garantir a base produtiva necessária para
assegurar as demandas sociais. A concepção de Celso Furtado (1959)
de desenvolvimento regional vai nessa direção de transformar a
política produtiva e tecnológica em um eixo de integração e
coesão das diversas políticas setoriais e regionais, a fim de se
unificar as diretrizes de atuação, as instâncias hierárquicas e
os recursos disponibilizados. Esse mesmo autor apontava como o padrão
de crescimento brasileiro requer desigualdade e exclusão e que, para
transformar esse padrão, é necessário transformar a estrutura
produtiva e o mercado de trabalho.
A ideia básica
é reconstruir a estrutura de oferta brasileira e fornecer meios para
sua modernização a partir de demandas sociais específicas. Por
exemplo, a saúde movimenta o que Gadelha (2003) conceitua de
complexo econômico e industrial da saúde (CEIS), onde setores
prestadores de serviço (como hospitais, ambulatórios, serviços de
diagnósticos e tratamentos) articulam-se com dois principais setores
industriais: i) a indústria de base química e biotecnológica, que
fornece fármacos, medicamentos, vacinas, hemoderivados, reagentes
para diagnósticos e equipamentos; e ii) as indústrias de base
mecânica, eletrônica e de materiais, que fornecem equipamentos
mecânicos e eletrônicos, próteses e órteses e materiais de
consumo (Gadelha, 2003). Uma política voltada para o desenvolvimento
do CEIS pode: i) reduzir a vulnerabilidade do sistema diante de
crises sanitárias como a atual, mas também amenizar efeitos de
crises econômicas quando a desvalorização cambial aumenta o custo
de importação de medicamentos, equipamentos e outros bens
fundamentais; ii) do ponto de vista das contas externas, reduzir o
déficit comercial e a dependência externa; iii) aumentar os efeitos
dinâmicos do gasto público com saúde na estrutura produtiva, no
emprego e no crescimento doméstico; e, por fim, iv) dar sustentação
a um padrão de desenvolvimento no qual a infraestrutura social tenha
centralidade.
No eixo de saneamento básico também ocorrem encadeamentos produtivos importantes a partir dos investimentos sociais. Além de consideráveis efeitos multiplicadores de emprego, o investimento em saneamento possui fortes encadeamentos diretos e indiretos com materiais elétricos, química e serviços de informação (Hiratuka et al., 2008). Considerando o fornecimento de água e esgoto, temos grupos tecnológicos que envolvem o fornecimento de bens e serviços em torno de bombeamento, processos físicos e químicos de tratamento, recuperação e reuso da água, controle de odores e disposição de lodos, todos com forte potencial demandante de novas tecnologias. A tendência tecnológica é que no médio prazo tenhamos cada vez mais estações de tratamento envolvendo sistemas automatizados, bioprocessos e biofiltros, biorreatores com membranas e tecnologias voltadas à reutilização dos lodos. Assim, o investimento no fornecimento da infraestrutura de saneamento pode estar diretamente ligado ao desenvolvimento de tecnologias. Com isso, não só a melhoria da qualidade de vida da população seria contemplada, como também uma política de capacitação da indústria brasileira em torno de uma série de tecnologias chave dentro da “Indústria 4.0”. Dessa forma, entende-se que é possível realizar política produtiva e tecnológica através do fomento da demanda interna de insumos tecnológicos ligados às atividades envolvidas no fornecimento de infraestrutura social.
A organização a partir de tais eixos procura construir novas formas de apoio popular às políticas para o setor produtivo a partir da geração de benefícios sociais diretos, de médio e de longo prazo. Parte-se do princípio de que a finalidade social juntamente com a ampliação do debate e do apoio da opinião pública sobre desenvolvimento produtivo e tecnológico podem criar as condições para a execução de uma política de grande porte necessária para fazer frente às mudanças previstas na estrutura produtiva mundial.
Essa forma de pensar a política industrial é adequada à superação da longa crise estrutural em que se encontra a indústria brasileira, que ampliou o imenso hiato tecnológico da indústria nacional frente aos padrões de competitividade dos países desenvolvidos. Nesse contexto, a incapacidade de penetrar na Terceira Revolução Industrial não permitiu que a indústria local desenvolvesse os mecanismos necessários de disseminação tecnológica e a privou das capacitações mínimas para internalizar parte considerável da chamada “Indústria 4.0”. Nesse contexto, a intensificação tecnológica dos serviços públicos e das cadeias produtivas ligadas a esses serviços é um caminho factível para a modernização e transformação da nossa estrutura produtiva. O Estado é, portanto, um demandante e um promotor de tecnologias a serem incorporadas em bens públicos.
Ao associar a política científica e tecnológica à modernização dos serviços públicos e da infraestrutura urbana, a política de desenvolvimento buscaria construir e fortalecer empresas regionais de médio porte, de base tecnológica, voltadas à customização das aplicações do novo paradigma tecnológico a problemas específicos, com o setor público, agindo como demandante através de políticas de compras e financiamento (Rocha, 2020). Para isso, seria acionada a rede existente de universidades, agências de pesquisa e de institutos técnicos, que contam com razoável penetração no território nacional.
Por fim, é necessário retomar um projeto nacional e abandonar as crenças de que o desenvolvimento será resultado natural do recuo das fronteiras do Estado e da eficiência do mercado. Direcionar o desenvolvimento para a transformação social e a preservação ambiental implica distribuir renda e alocar recursos para atender as demandas sociais e a preservação do meio ambiente, o que, por sua vez, permite diversificar a estrutura produtiva, aumentar produtividade, garantir empregos de qualidade e criar as condições para a própria sustentação do modelo proposto.
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