Por uma cartografia dos becos e vielas

OpenStreetMap, plataforma livre de mapas, chega aonde carros do Google não vão. A pé, em bicicleta ou canoa, alcança os arrabaldes do Brasil. Tônica é a transparência: quem, quando e por que mapeou. E pode inspirar olhares insurgentes nas escolas

Montagem de dois mapas para a mesma área, comparando a visibilidade das periferias. À esquerda, o OpenStreetMap; à direita, o Google Maps.
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Publicado originalmente em Geocracia com o título: A (in)visibilidade dos dados geoespaciais das periferias

O Google Maps é um sistema de característica dupla. Apesar de “todos” poderem fazer o mapa, nem “tudo” pode ser mapeado. Lançada em 2004, a iniciativa circula pelo Brasil em todos os estados. Mas nem todos os territórios estão de fato no mapa. Existem lugares que não têm a sua localização representada nos mapas.

Como todo sistema de informação privado, o Google Maps funciona sendo atualizado. Quem faz o serviço são empresas contatadas por região do Brasil que capacitam e operacionalizam o trabalho de motoristas-mapeadores que rastreiam comércios com veículos-mapeadores, guiados com a ajuda de mapas fornecidos pelos governos em mais de 180 países do mundo.

As previsões do Google Maps informadas em seus sites são, portanto, informações terceirizadas do mundo da cartografia digital. Os veículos-mapeadores (normalmente carros) percorrem as vias com acesso para veículos. Aonde o carro vai, o mapa também vai. Mas e aonde o carro não vai?

Das alternativas para as alternâncias

É nesse contexto que o OpenStreetMap insurge como alternativa. A diferença é que a rede é formada por voluntários usando dos diversos meios de locomoção (de bicicleta, a pé, de canoa etc.), configurando um contramovimento de ações horizontais, individuais, porém coletivizadas.

Nas comunidades locais e regionais em ambiente online, diversos grupos autorregulam seus mapas e avaliam uns aos outros enriquecendo os mapas com lugares invisibilizados no Google Maps. É possível entrar para um grupo de mapeadores após a primeira edição, por sugestão da própria interface do “modo editor” do OpenStreetMap.

Nesse sistema de informações geográficas, também criado em 2004, podemos fazer o mapa online com liberdade, diferente do Google Maps, seguindo regras da instituição sem fins lucrativos, regras decididas por um consórcio internacional de dados open source.

A qualidade da transparência pode ser notada na quantidade de metadados do mapa: “quem mapeou”, “quando mapeou” e “porque mapeou” são informações valiosas e que os metadados do OpenStreetMap nos permite coletar, analisar e refletir para aprimorar estas mídias de representações socioespaciais.

É interessante notar, mundialmente, como ações individuais em OpenStreetMap importam para causas coletivas, sobretudo nas periferias e entre populações marginalizadas, de coletivos às pessoas. Um exemplo da força transformadora desse movimento é o fenômeno do “contraste cartográfico”.

Este tipo de visibilidade (o contraste) é algo que podemos detectar a olho nu comparando os resultados das representações do Google Maps e do OpenStreetMap. É como se fossem dois mapas, nas mesmas escalas cartográficas (de zoom), observados lado a lado.

O resultado é a imagem no topo desta página que estarrece sobre o cinismo da cobertura “global” do Google Maps, quando dezenas de quilômetros de becos estão fora do “maior mapa do mundo”. Essa imagem é um reflexo social do duplo resultado dos usos das tecnologias sociais (à esquerda) e das tecnologias proprietárias (à direita) no contexto periférico de uma metrópole brasileira.

“Mapeadores e mapeadoras, uni-vos!”

Mas quem sabe aprimorar um mapa online? Que pessoa saberá fazer uso de aplicativos de smartphone e aplicações de laptop no “modo editor”?

É preciso dizer que não é necessário ser uma pessoa hacker para desenvolver um mapa (mas se você for, poderá desenvolver sites inteiramente a sua linguagem de aptidão maior), no entanto, é preciso ser uma pessoa maker, e para isso diversos conteúdos (de tutoriais à MOOC) estão disponíveis na internet.

Também é preciso dizer que a maioria dos bancos de dados geoespaciais (como mapas de base e imagens de satélite) são disponíveis online, assim como as ferramentas digitais para edição temática desses dados, o que possibilita a análise e a produção de novos mapas e mapeamentos.

Sendo assim, o desafio é a curiosidade e a coragem de cada pessoa em aprender, em seu ritmo, a “bordar” digitalmente a face do seu território na Terra e ajudar a incluir mais lugares nos mapas globais, como Google Maps e OpenStreetMap.

A pedagogia dialógica, conforme Paulo Freire, nos oferece interessantes propostas para responder aos desafios de cada território. A obra de Freire serve no presente para mudar o futuro da cartografia.

A inclusão da Cartografia Crítica na formação de novos educadores e educadoras tem sido um esforço de diversas escolas púbicas e profissionais educadoras pelo Brasil, com obtenção de resultados progressivos em diversas iniciativas que comprovam que, de fato, “o local ensina o global”.

Mulheres que se empoderam em uma área dominada por homens, periferias que revelam seus potenciais, são algumas consequências deste contra-movimento na educação.

O que antes se chamava de “corrida espacial” passou por uma “metamorfose comunicacional”, nos termos de Muniz Sodré, e transformou-se na “corrida infoespacial”. Neste momento histórico da globalização, cada território do Brasil assume “a complacência ou a revanche”, nas palavras de Milton Santos, atuando por mediação das representações geoespaciais nas plataformas de geoweb. Podemos hoje fazer cada bairro o seu mapa solidário, cada quilombo o seu mapeamento coletivo.

A técnica da cartografia está para a descolonização, mas também para a colonização. Façamos mapas com os habitantes em cada território do Brasil, pelo desejo local de cada território, e não ao contrário.

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