A proposta singular da PerifAnálise

Dois integrantes de um coletivo da zona leste de São Paulo contam como levaram a psicanálise para fora do centro — e em que isso resultou. Como moradores periféricos, quiseram deslocá-la para seu contexto. Poderão revolucioná-la?

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Rosimeire Bussola Santana Silva e Jefferson Santos Pinto, da Clínica Psicanalítica PerifAnálise, em entrevista a Daniel Guimarães

Entrevista com integrantes da Clínica Psicanalítica PerifAnálise, coletivo de psicanalistas que atuam em São Mateus, São Paulo

Há alguns meses, no dia 25 de julho, já com um bom tempo de pandemia, combinei uma conversa com Meire, Rosimeire Bussola Santana Silva, e Jeff, Jefferson Santos Pinto, da PerifAnálise. Integrantes desse projeto fundamental de prática clínica psicanalítica na periferia de São Paulo, mais especificamente em São Mateus. O trabalho deles, a meu ver, dá um passo histórico no sentido da socialização da psicanálise no Brasil. Um passo além dos que já vêm acontecendo há alguns anos com as experiências clínicas públicas sem a mediação do dinheiro em espaço comum. O que norteia os e as psicanalistas da PerifAnálise é proporcionar uma experiência psicanalítica para e pela população da periferia, distante do centro onde a psicanálise acontece para muito poucas pessoas. Um projeto para trazer pro campo do possível o sonho de que pessoas da periferia possam se tornar psicanalistas na própria periferia e que a psicanálise possa se tornar um ofício comum. Como foi acontecendo no Brasil, pela apropriação de uma classe, a psicanálise concentrada se distancia de sua radicalidade na aposta das periferias da vida psíquica e de sua história marginal na afirmação de suas descobertas contraculturais e críticas às morais dominantes. As clínicas públicas produzem essa experiência nas periferias que existem no centro. PerifAnálise está na periferia. Talvez a partir daí surjam psicanalistas periféricos, formados na periferia? O coletivo é formado por oito pessoas. Seis psicanalistas e duas pessoas no início da formação, quer dizer, duas pessoas fazendo seu percurso de se tornar psicanalista a partir da PerifAnálise. Que consequências isso terá também no campo psicanalítico? Quais as consequências disso na periferia? A que contexto político e cultural o nascimento do PerifAnálise responde? Que noção de centro e periferia está em jogo aqui? A conversa foi muito interessante e teve um ritmo próprio e assim pensamos que seria muito mais rico publicá-la no lugar de um texto descritivo. O pensamento vai se formando aos olhos de quem lê, porque foi assim que aconteceu. É já uma experiência clínica, descentralizada, como a psicanálise do PerifAnálise. É um texto longo, mas vale cada linha, nem que seja para ler aos poucos, em outro tempo diferente desse que estamos imersos através das telas. Segue a conversa:

Meire: Sou psicóloga de formação, moradora aqui de São Mateus e meu percurso na psicanálise começou na universidade. Como você mesmo disse a psicologia apresenta de alguma forma a psicanálise e a periferia, ao acessar a universidade, passa a acessar esse universo também. Antes disso nunca tinha ouvido falar na psicanálise. Acho importante dizer disso, porque a periferia chega na universidade tardiamente. Entra com as políticas afirmativas, entra em uma gestão política muito específica. Todos nós que fazemos parte da PerifAnálise moramos na periferia. A gente mora aqui. Recentemente uma pessoa retornou para o interior, mas também era morador daqui e uma outra é da zona norte. O grupo começa com pessoas que são da zona leste. Tem alguma coisa que se assemelha às clínicas que estão rolando no centro, uma coisa de morar, morar próximo, promover algo que é próximo a nós. Pra acessar a psicanálise, incluindo as formações, a gente tem que atravessar fronteiras imensas, em horas de percurso. Na formação dos analistas do grupo isso também conta, porque a gente também não tem formação aqui. Temos que ir para o centro buscar essas formações. Hoje a gente tem grupo de estudo e atendimento, mas temos interesse também de poder ter um espaço onde a gente consiga formar e se formar. Que possa haver isso na periferia. Que seja familiar, próximo. Sair de São Mateus e ir ao Sedes [Instituto Sedes Sapientiae, importante lugar que abriga departamentos de formação de psicanálise, fica em Perdizes]; sair do Sedes dez e pouco da noite, fazer um baita percurso pra chegar aqui meia noite, era essa a trajetória. Também sou trabalhadora do SUS. O SUS está em todo o território, mas na periferia tem características muito próprias. E desde então, desde a universidade, tenho buscado esse percurso em psicanálise, fazendo a formação, assentado no tripé1 que é uma coisa muito preciosa pra gente na PerifAnálise. Não estamos inventando nada, apesar de ser muito inventivo o que estamos fazendo. Temos uma teoria que nos sustenta e que a gente vai olhar, vai dialogar, ainda que em muitos momentos a gente vá olhar e dizer “não diz daquilo que estamos vivenciando”. Assim como a clínica freudiana. Freud foi encontrando muitas coisas na clínica, a gente também encontra muitas coisas que diz do nosso tempo. Diz do nosso tempo na periferia. Na realidade da periferia.

Jeff: Daniel, as colocações que você faz – a PerifAnálise estar em um outro patamar aos seus olhos, e também “a coisa tá ficando séria” –, acho que vai também de um desejo que compartilho de a psicanálise ser diluída na malha social ao ponto de ela se tornar um ofício comum. Porque, como você mesmo coloca, ela ainda é um ofício da elite. Pelo conhecimento histórico da psicanálise, se entende que, mesmo nascendo em Viena, que é um centro da Europa em 1900, ela nasce com vários pontos dessa periferia. Mostra um lugar periférico. Como a Meire diz, a gente é inventivo mas não tá inventando muito, porque já foi colocada a questão dessa psicanálise surgir ou estar na periferia. Pelo menos em relação ao discurso médico ela vai tentar fazer outro movimento. Mas vou pensando muito na possibilidade disso ser um ofício que não seja mais somente da elite, que seja um ofício comum a todos os periféricos, a toda a população. E tem uma relação muito importante nesse lugar da periferia e centro, que é a identidade que a gente coloca logo no nome: periferia e centro não é só um lugar geográfico. É importante dizer que o PerifAnálise nasce entre mulheres. Já existe algo aí de periférico. Mulheres negras e mulheres brancas. Vou nesse deslocamento que a gente faz, geográfico mas não somente. Eu também estudo lá no Sedes, e aí quando eu entro lá, eu, negro, encontro um país nórdico praticamente. Todas as pessoas brancas, não somente as que estudam e as que ministram aula, mas até mesmo os funcionários de todos os escalões – mas, de praxe, o porteiro e a faxineira negra. A gente vai pra um centro, centro esse bem localizado políticamente, geopoliticamente, antropologicamente. Existem vários centros e periferias. Meu percurso pra entender a psicanálise vou conhecer na graduação. A princípio vou ter um rechaço da psicanálise na graduação, porque vejo na psicanálise um elitismo tanto na sua forma de se apresentar, como também na universidade em que estive, e em como ela é colocada na malha social. E aí vou me dedicar mais à psicologia social. Mas a psicologia social também tem suas questões enquanto clínica, algo que ainda está em construção aqui no Brasil, mas isso aí vou entendendo só depois de ter me graduado. Por clínica vou então pensar na psicanálise porque, mesmo sendo elitista, tem algo no discurso dela que me contempla. Vou atrás dessa clínica, atrás também de um tema. O tema mais caro pra mim são as relações raciais e suas intersecções, essas periferias que vou dizendo, periferias de raça, gênero, classe, essas periferias de uma centralidade de poder. Vou trabalhar na assistência social, vou trabalhar com deficiência intelectual, não vou clinicar logo de cara e, no meio do meu percurso, encontro a Meire e a Paula, que já tinham desejado e gestado a PerifAnálise. Tava ali alguma coisa já engatinhando, e aí vou compor com elas onde a gente se loca hoje que é na Favela Galeria2. Vou pegando bagagem de outros lugares, sou um dos colaboradores do AMMA Psique e Negritude3, e lá desenvolvo alguns trabalhos, como uma roda reflexiva sobre as relações raciais. Lá no Sedes componho um grupo de trabalho de relações raciais.

Grafite na lateral da Favela Galeria, espaço onde funciona a PerifAnálise

Um pequeno desvio é necessário para trazer pra conversa a Paula Jameli, mencionada pelo Jeff, co-criadora da PerifAnálise ao lado da Meire. Pedi a Paula que escrevesse ela mesma sobre sua experiência e história:

A PerifAnálise começa a ser gestada num momento de crise, diante da conjuntura política, às margens das eleições presidenciais de 2018. A presença desse contexto de retrocessos nos gerou inquietação e nos mobilizou a estudar psicanálise e a articular um novo dispositivo na periferia. Passamos a colocar em questão que clínica pretendíamos formar, a partir da inspiração de modelos de clínicas públicas já existentes. Levar a escuta analítica para a periferia nos fazia pensar em fazer um furo no estereótipo elitista que a psicanálise tem aqui no Brasil, no sentido mais amplo de que está presente nos grandes centros e com alto custo mercantil, tornando-se menos acessível e democrática. Fomos pensando e construindo a PerifAnálise muito na perspectiva de aproximar a psicanálise e a periferia.

Eu, que ainda me encontrava há pouquíssimo tempo conhecendo meu território periférico de fato, dois anos apenas atuando como psicóloga na assistência social, depois de atuar mais de 20 anos no centro das corporações bancárias, fui descobrindo outro mundo dentro das periferias de São Mateus, não foi difícil ficar sensível às formas de segregação, que pouco tempo antes eram estrangeiras pra mim, mesmo sendo moradora da região há 42 anos. Ou seja, a vida no centro parece que distancia a gente da periferia, e esse distanciamento é tão simbólico pra mim…

Conheci a psicanálise na antiga sexta série, na rede pública, através de uma professora de psicologia, quando ela abria a boca e falava de Freud eu ficava encantada. Fui lá na banca de jornal da esquina da Mateo Bei e comprei um livrinho do Freud, sobre o Inconsciente e pronto, enlacei. Sempre soube que queria fazer psicologia, até porque minha referência ficou sendo esta, ainda não sabia nada sobre a diferença da psicologia para a psicanálise. Eu acho que tive muita sorte de ter tido a professora Inês no meu caminho, um privilégio e tanto. Fui para Universidade em 1996, mas só consegui concluir em 2005, depois de interromper o curso de Psicologia por três vezes durante este período, por falta de grana, mais precisamente. Depois fiz uma pós em comunicação e marketing porque a corporação pagava e eu achava que precisava fazer carreira lá dentro.

Mas ir para assistencial social mudou tudo. Me acordou para meu desejo. Hoje faço formação contínua em psicanálise, também sou membro do corpo clínico Clínica Social de Psicanálise Hélio Pelegrino, e sigo sustentando meu desejo de ser analista, também, na periferia.”

fim do desvio

Jeff, tu falou que alguma coisa no discurso da psicanálise te contemplou quando você reencontrou a psicanálise, o que foi?

Jeff: Acho que tem aí o efeito da própria análise. Um movimento de você se inserir na sua própria história a partir da primeira pessoa. A meu ver foi eu entendendo que o processo psicanalítico me deu a dimensão da responsabilidade sobre aquilo que crio como narrativa. Esse lugar é muito caro pra mim, porque cria uma condição necessária pra eu me colocar enquanto sujeito. Não vou ser uma pessoa que será determinada por outra, que será determinada por algum centro. Seja nas relações raciais, nas masculinidades, nas diversas outras formas de discriminação, exclusão e assujeitamento. Vou entendendo que existem esses processos, essas artimanhas da exclusão, ao mesmo tempo como vou me valendo de mim quanto primeira pessoa. Além de uma responsabilidade acho que é uma implicação, como vou me implicando com essa minha pessoa diante de tudo isso.

Mesmo que não queiram, os psicanalistas acabam fazendo esse gesto político que é a modificação na assimetria de poder que estamos habituados numa relação médica. A primeira vez que li os Estudos sobre a histeria4 fiquei muito encantado com a Anna O., claro, é incrível. Anna O., a paciente, pedir pro Breuer, o médico, ficar quieto… deixa que ela fala, ela é que sabe. Esse é um dos momentos em que as coisas ficam sérias. Ali a coisa começa a ficar interessante, na vida.

Meire: A gente começa pela Anna O. lá no nosso grupo de estudo. Essa história que antecedeu, que o Je fala, antes da entrada dele, que nós começamos… Ih, travou.

Travou quem? Eu ou você? Eu tô te vendo.

Meire: Você travou, mas tá ouvindo, né?

Eu?

Meire: Você, Daniel, travou.

Ixi, mas estou te ouvindo.

Meire: Mas a sua voz tá bem.

Tô te ouvindo bem. Mas é isso, às vezes a imagem trava, mas o áudio não, a psicanálise tem disso, não é?

Meire: Parece que é conexão ruim… e agora no atendimento online como tem disso! Mas eu estava dizendo como a gente começa. A gente se forma e na universidade o que tem de posto de trabalho pra nós psicólogos é na área da assistência social. A gente se encontra lá, na assistência social, eu e a Paula. Muito desejosas naquele momento, nós duas e duas assistentes sociais, de ler o que estava acontecendo em 2018, nas vésperas das eleições, nessa crescente do Jair Bolsonaro. Queríamos olhar pra essa conjuntura a partir da psicanálise. Elegemos um texto, o Mal-estar na civilização (Freud, 1930), pra poder começar a estudar. E nisso a gente vinha acompanhando esse movimento das clínicas do centro. A gente vinha acompanhando essas clínicas públicas. Acompanhamos um pouco o que estava acontecendo na Vergueiro, a Oficina Pública de Psicanálise, e na Praça Roosevelt (Psicanálise na Praça Roosevelt). Acho que tava bem no início, na época que a gente começa a estudar e ser estimulada a pensar sobre isso aqui. Somos inspiradas de alguma forma por esse movimento que tava acontecendo no centro. É claro que a gente logo de cara faz a crítica, do ponto de vista da periferia, porque é o que faz sentido pra nós, não é? Mas não dá pra negar que a gente também foi inspirado, influenciado, por esse movimento que tava acontecendo no centro. Acompanho também o Psicanalistas pela Democracia. Aí a gente também se vê representado. Essas duas assistentes sociais acabam seguindo outros percursos e ficamos eu e a Paula lá. Duas pessoas não é um grupo, a gente vai tentando sustentar de alguma forma essa dupla. Aí a gente encontra o Je – trabalhavamos na mesma instituição –, fazemos convite pra ele e pra outro colega que a gente acabou conhecendo em outro espaço, e formamos esse nós quatro pra começar a pensar clínica, estudar… No começo tínhamos muitas divergências. Eu e a Paula fazemos uma formação mais lacaniana, um outro colega tava no Freud, o Je também, além dessa formação dele que ele já te disse. A gente ia dialogando, tentando pensar o que de comum nós tínhamos pra poder sustentar ali enquanto coletivo. Foram várias conversas. O Je costuma dizer que umas mais aquecidas que outras. E tudo isso acontecendo aqui em São Mateus. Naquele momento nós nos reuníamos na casa da Paula e, então, pensamos em começar, ir pra clínica. É muito importante dizer que a gente olhava pras iniciativas do centro, muitas delas eram praças, lugares assim e chegamos a pensar “onde a gente pode fazer aqui na periferia? Vai ser na rua, em alguma viela, em algum lugar.” Estamos próximos de uma grande favela aqui em São Mateus, é lá que a PerifAnálise acontece. “Mas vai ser na rua?” A periferia já ocupa a rua, a periferia já está na rua. As casas na periferia são muito pequenas, em geral não tem quintal. Então já começamos dizer de uma diferença, de que não dá pra ser dessa forma, põe um banquinho na rua e vamos lá, diz o que tem na cabeça. Não era sobre isso. Em São Mateus, é legal saber, acontece muita coisa, tem muita potência, centro cultural, rap, grafite, muita coisa acontece aqui. E a gente chega na Favela Galeria. Precisamos de um lugar que promova alguma privacidade, um lugar que a pessoa possa ir até lá e possa ter preservado alguma coisa. É claro, dentro de uma galeria não é a mesma coisa que num consultório convencional e também não é rua. Lá dentro a gente não tem porta, enfim, é muito interessante algumas coisas que acontecem lá na clínica. Privilegiamos um lugar que é uma referência dentro da comunidade da Vila Flávia. Lá começamos a fazer grupos de estudo e organizar nossos atendimentos. E aí as pessoas começam a chegar, timidamente, por indicações dos artistas da galeria, mas a nossa ideia era que pudessem ser atendidas as pessoas dali, dali do entorno. Bom, as pessoas do entorno às vezes não vêm, mas vêm de onde? Vêm das ruas próximas. Vêm trabalhadores, trabalhadoras do entorno, vêm pessoas de outras comunidades, e vai mudando, vai dando uma cara pra clínica da PerifAnálise. Acho que isso diz muito do início. Tem várias coisas marcantes da nossa clínica. Acho que a supervisão também. Bom, a gente tem demanda de uma supervisão. Tem essa pessoa que é nossa supervisora, que também é conhecida dos serviços onde a gente trabalhava – eu trabalhava, a Paula continua – e a gente combina: a supervisão também vai ser aqui. Claro, uma psicanalista do centro, consultório no centro, a gente negocia, eu dou um pouco, dá um pouco também, então a gente combina uma vez lá e uma vez aqui. Mas vai ter supervisão aqui, vai ter supervisão na Favela Galeria. Tudo isso pra dizer que a psicanálise está acontecendo. Só falta os nossos analistas serem daqui, pra poder dizer que tudo o que envolve está acontecendo aqui na periferia. E claro, isso não se esgota, porque estamos sempre refletindo sobre as questões. Agora estamos falando da questão do atendimento online, sobre a questão dessas características que são muito próprias da periferia, desde a internet, o acesso a internet, como é fazer esse uso nas casas, vários elementos surgem. Mas a PerifAnálise surge num momento político. O grupo aumenta no novo momento de crise, que é quando surge a pandemia. A gente resolve falar mais nas redes sociais, ampliar pra que outras pessoas nos conheçam. Até então a gente tava fazendo isso, mas entre nós, aqui. A gente fala muito sobre a apropriação do que acontece na periferia, as produções na periferia são apropriadas por quem é do centro. Nos mais diversas segmentos. Na pesquisa… a academia vem, usa a gente como objeto de pesquisa e acabou. Vamos nos havendo com várias fantasias. E a gente conversa muito sobre isso dentro do nosso coletivo.

Jeff: Acho importante dizer como a PerifAnálise impacta em mim. Eu continuava na assistência social, via a clínica como um horizonte distante, mas que ainda continuava no horizonte e acho que a PerifAnálise me possibilitou isso. Quando a Meire e a Paula fazem o convite, a princípio para um grupo de estudo, eu já estava estudando e fiquei meio que tipo “será que vou dar conta? Serão dois grupos de estudo, e aí?” Acabo aceitando. Nesse período a gente ainda está na casa da Paula. A gente vai fazendo nossos estudos, mas acho que ali já vai se gestando outras coisas. Não era somente um grupo de estudos, existia muito mais desejo pra além disso. Não era só ler o caso Dora ou o Mal-estar na civilização. Acho que era fazer apostas e essas apostas tinham uma radicalidade, ao mesmo tempo se encontravam muito com o meu desejo de clinicar na periferia porque, a princípio, pra mim, esse desejo de clínica surgiu de abrir uma clínica no centro e seguir o barco, entrando um pouco nesse fluxo, esse fluxo em direção a esse centro, esse centro político que muitas vezes me joga à margem. Estaria nesse fluxo sempre em contradição, tentando superar essas contradições, e acho que a PerifAnálise é uma síntese pra mim. Um lugar que me sinto à vontade. Temos muita associação, muita liberdade pra poder falar. Fazemos nossos movimentos ali dentro, arriscando nossas apostas. A gente não joga dados diretamente com essa centralidade. A gente joga dados entre nós, fazendo um amálgama de alguns desejos. Da mesma forma que a PerifAnálise me dá espaço, me dá condições, me dá insights para poder atuar, essa minha clínica vai falando a partir da periferia, também vai se dirigindo à periferia. Não quero tentar me igualar ao centro. Não fico me esgueirando com o centro, mas vou em direção à periferia, porque, antes de tudo, moro aqui. Da internet que chega mal, do cachorro que late na hora da sessão, do caminhão que passa igual passou há pouco aqui, enfim, do vizinho que tá colado aqui na parede. Vão se fazendo os arranjos. Na sessão ali há dois seres humanos em associação livre. As palavras vão surgindo… esse é um movimento próprio da PerifAnálise, nossas reuniões têm esse movimento, vamos falando do que passa por nós, vamos armando estratégias de avançar, de recuar, de quais literaturas seriam interessantes pro momento e acho que ainda continua muito esse desejo, que é o desejo inicial, que é uma aposta de fazer uma frente ou pelo menos uma resistência diante da eleição do inominável, da ascensão ao poder do inominável, que é abjeto e por isso inominável, mas ao mesmo tempo fazemos, no nosso próprio quintal, a articulação dos nossos desejos e nossos planos. Somos nós por nós. Ao mesmo tempo a gente vai encontrando, seja lá no Sedes, seja lá em nossas formações, até mesmo em outras clínicas, mesmo que no centro da cidade, aspectos da periferia. Sei lá, às vezes eu converso com um amigo que tá atendendo no centro, e atende em formato de clínica pública, ou que vem de periferia, enfim, e a gente tem uma linguagem muito parecida. É uma linguagem que vai nos identificando e vai nos colocando num mesmo fluxo de palavras. Valor social, o que isso significa? E aí isso cai e se torna então um valor comum e esse valor comum o que significa também? Vão surgindo outras coisas, na questão do próprio dinheiro que em alguns momentos é escamoteado na análise e em outros momento é fator analítico. Existe aí um jogo que é muito próprio da PerifAnálise. Estamos cercados dessa materialidade das pessoas que vem daqui, que estão aqui, que são daqui. A gente compartilha de um mesmo horizonte, mas cada um também no seu lugar, cada um com sua singularidade. Na PerifAnálise, como a Meire já deu algumas pistas, somos muito diferentes, temos algumas diferenças, algumas delas até radicais, mas isso não impede da gente sustentar nosso vínculo, da gente sustentar nosso lugar enquanto psicanalistas, enquanto grupo, enquanto perifanalistas. Isso dá um fogo a mais pra cozinhar aquele diálogo, aquela conversa.

Essa questão do dinheiro é super delicada. Esse debate era rechaçado. Tinha uma questão de colocar como impossível acontecer uma psicanálise fora de parâmetros de mercado. O valor do dinheiro no inconsciente… O debate não era sobre o que se faz a partir de uma situação que alguém não pode pagar, não por um sintoma individual, mas por uma circunstância de classe e território. Esse debate não podia muito acontecer, era sempre jogado pro campo do sintoma. Se não quer pagar, se não pode pagar, é porque tem algo ali a ser trabalhado como sintoma daquela pessoa e não de uma estrutura social. E a questão do território: a psicanálise pode acontecer fora de um consultório, pode acontecer na rua, pode acontecer em outros lugares. Não sei como é pra vocês, se vocês enfrentaram ou enfrentam essa questão, a gente enfrentou coisas do tipo “o que vocês estão fazendo não é psicanálise, o que vocês estão fazendo é alguma coisa de orientação psicanálitica, é próxima de psicanálise, mas não é a psicanálise propriamente dita.” Essas frases que surgem de diversas formas, e que vão impedindo o movimento histórico acontecer, as formas novas que vão surgindo, mesmo com aqueles constrangimentos que era a gente apontar, não, mas olha, o Freud atendeu fulano andando na rua, o Freud fala aqui que tinha pacientes que ele não cobrava… Então por que a gente não pode? O que acontece? Fico com a impressão de que esse primeiro movimento de clínicas de democratização da psicanálise, do período que se inicia em 2015-2016, foi muito interessante pra poder consolidar um campo. Um campo, eu leio assim hoje em dia, que já tem um tempo, que não é muito, não são muito antigas essas experiências nossas, mas elas já têm um tempo suficiente pra que não seja mais tão exótico, ou jogado à margem dentro do movimento psicanalítico. É inegável, agora tem o movimento das clínicas públicas. E aí começam pesquisas e vai se descobrir que em 1918 Freud lança em discurso a defesa da psicanálise como direito social arcado pelo Estado, que em 1920 é criada a clínica gratuita de psicanálise em Berlim, onde se iniciam os processos de organização da formação dos psicanalistas; que em 1922 acontece a de Viena, e depois vai ter a da Hungria que é uma espécie de periferia europeia, onde a psicanálise era muito rica; vai ter na Inglaterra, no Zagreb… os personagens mais fundantes da história da psicanálise, todos passaram por essas experiências. A de Berlim tem uma coisa muito interessante: eles cobravam e não cobravam pelos atendimentos. Agora, eles diziam assim: o que era importante para a Policlínica de Berlim é que a capacidade da pessoa pagar ou não não deveria ser o fator que determinaria se ela poderia fazer análise ou não. Se ela não pudesse pagar, então os psicanalistas deveriam pensar alguma forma de proporcionar que essa psicanálise acontecesse. Eles estavam imersos num período de ascensão da social democracia, entre os socialistas, então esse espírito de socialização, de construção de uma vida voltada para os interesses públicos e coletivos estava lá nos psicanalistas. O contexto amplo da vida social fazia com que a psicanálise fosse de um jeito ou de outro. A correspondência entre o período histórico, a origem e o espaço onde a coisa acontece, ela não é de menor importância pro nosso trabalho. Então fico pensando, opa, PerifAnálise, alguma coisa de especial por si só está acontecendo. Isso vai trazer coisas pra gente. A Clínica Pública de Psicanálise na Vila Itororó no Bixiga não é a mesma coisa que a clínica do Sedes Sapientia em Perdizes. É diferente. Porque está num outro lugar, vinculado com outra história, circulam outras questões. Vocês vão contar muitas coisas, vão ensinar muitas coisas pra quem tiver a inteligência de querer prestar atenção e escutar o que vocês têm a dizer… Pensei numa coisa assim: a Clínica Pública acontecia num centro cultural, a Roosevelt é numa praça, a Clínica Pública de Psicanálise acabou, aquele centro cultural já não opera sob os mesmos princípios dos usos espontâneos e um uso feito a partir dos próprios usuários… lá atendíamos pessoas num espaço que não tem a proteção das paredes, e que o som vaza. O que significa esse nome “público”, quando a gente trata de coisas tão íntimas e assim por diante? Tô pensando aqui, fui me perdendo, associação livre é foda… Tenho uma fantasia aqui, não sei se faz sentido: fui criando pra mim um espaço pra poder me formar como psicanalista, não só no Sedes, porque só o Sedes não era suficiente, e tudo bem, o Sedes não tem obrigação de proporcionar uma formação idealizada pra mim, isso é evidente, mas tinha limites do que se podia fazer lá no Sedes, que talvez tenha levado eu e esses meus colegas a fazer coisas fora dele, poder encontrar um lugar de pertencimento e de criação, invenção da psicanálise também. Tô levando em consideração que a PerifAnálise pra vocês tem uma coisa que vai por aí, um lugar onde vocês, com as diferenças que têm, conseguem ter algo mais familiar. Você falou, né Meire, você falou de se tornar familiar, um lugar de pertencimento de vocês, talvez isso role mais espontaneamente do que naqueles outros espaços. E sem menosprezar o efeito terapêutico que isso tem. Tô ouvindo o Jeff falar e me dá uma dimensão de como essas clínicas são terapêuticas pros próprios integrantes delas. A formação do grupo, o que isso produz de efeitos… Qual é a realação que a própria clínica tem com o trabalho de vocês como grupo? Qual é a especificidade do grupo de vocês que aparece no funcionamento da clínica? Porque vocês estão lá no tripé da psicanálise, mas vocês estão se colocando, não apenas reproduzindo uma coisa que já existia, mas criando coisas.

Meire: Meu desejo de ser analista começa aqui, começa na PerifAnálise. Apesar do trabalho no SUS… meu desejo de analista é o desejo de ser analista aqui na periferia. Falamos da periferia poder se servir dessa experiência da psicanálise. Nossa intenção nunca foi a de levar a cura em algum lugar, sabe? Ainda que tenha a função terapêutica, ali pra quem se serve da psicanálise, a nossa intenção é que a pessoa pudesse ter essa experiência, a experiência de uma escuta, de um lugar, onde ela pudesse endereçar a alguém ali as suas questões caso ela quisesse. Que ela pudesse acessar. Porque isso não tem aqui na periferia. Veja, até tem consultórios nas avenidas principais dentro das periferias. Até tem a palavra psicanálise ou outra, mas é muito pouco. E a nossa intenção é que as pessoas pudessem se servir caso elas quisessem. Não é dizer que é algo que todos devem querer porque está ali, porque tem algo gratuito. Não, isso foi outra coisa que caiu. “A periferia não pode pagar”. A periferia tem uma fantasia de que paga-se muito caro pela psicanálise. E não é só fantasia, porque é muito real, tem consultórios que são caríssimos, tem psicanalistas que são caríssimos. O encontro com a psicanálise lacaniana contribuiu pra gente pensar a questão do dinheiro, dizendo de um standard que não deve existir e que o valor da sessão é a pessoa que vai dizer. Em geral as pessoas querem poder pagar na nossa clínica. E essa é uma questão que falamos bastante a respeito, o que se cobra, o que é o valor, o que é o dinheiro na análise de cada um. Tem pessoas que pagam e pessoas que não pagam, e não deixam de ser atendidas por conta disso. Que a psicanálise possa começar a acontecer, de alguma forma, pra que tudo o que envolve a psicanálise possa acontecer. Vamos ler a realidade, a conjuntura, a partir dos textos psicanalíticos. Vai ter uma clínica psicanalítica? Vai ter uma clínica. Vai ter uma supervisão psicanalítica? Vai ter uma supervisão psicanalítica e que tudo o que envolve a psicanálise possa ter e acontecer aqui. É isso que nos estimula. Outra coisa que você falou, Daniel, que me chamou a atenção, que vocês foram questionados pelas instituições, se o que vocês estão fazendo é psicanálise. Nós não somos questionados, as instituições não sabem que a gente existe. Acho que um ou outro psicanalista… Tá, chegou no Sedes alguma coisa de que a gente existe. Um ou outro ficou sabendo. E aí se pergunta, não se o que a gente faz é psicanálise, mas… a gente já ouviu uma coisa que mexeu conosco, que tem gente que acha muito interessante o que a gente faz, mas ainda desvaloriza a formação do analista. “Será que na periferia vai ter gente capacitada o suficiente pra ser psicanalista?” Então a gente já ouviu coisas do tipo assim, “ah, um ou dois que sejam muito bons a gente pega e forma”. Como se a gente também não construísse o nosso próprio percurso enquanto psicanalista ao recorrer a esses lugares. Lamentavelmente a gente tem que recorrer ao saber que é dominado ainda por essa elite, essa elite acadêmica, essa elite dos institutos… Mas quando você fala que a gente se reúne, a gente se identifica, a gente consegue ficar junto… em uma instituição por onde passei não era possível ficar junto. Enquanto as pessoas estavam lá vivendo seu ano sabático, as pessoas tinham lá a psicanálise como um hobbie, a gente tava no campo do trabalho, como o Jeff fala, de um ofício. A gente não vai se dar o luxo de não receber. A gente tá num outro lugar, é uma outra coisa.

Você ia falar, Jeff?

Jeff: Você pode ir costurando também, Daniel, sem problema nenhum.

Vou pegar essa deixa da Meire, quem sabe se fizer sentido você vai por aí em algum momento. Como está a questão do dinheiro nas conversas de vocês? Do ponto de vista do analisando, mas também dos analistas. Meire trouxe essa coisa agora, vocês não estarem nesse mesmo lugar, que pode ser o nosso aqui, de analistas terem a possibilidade de não receber para atender. Eu, por exemplo, faço dessa forma. Na minha cabeça a coisa vai assim: pra mim é possível fazer isso, então vou fazer. Mudar a realidade que me forma é do meu interesse. Ampliar a esfera pública me faz sentir mais vivo. Mas acredito que cada contexto é determinante para como o trabalho acontece. Em outros momentos talvez eu não faria. No consultório particular eu cobro para atender. Mas essa questão do dinheiro, do valor, das trocas do inconsciente, como isso circula na cultura, como é atravessado pelas questões de classe, de centro e periferia… a questão do dinheiro é da maior importância, não deve ser tratado como tabu nem para negar a possibilidade de um trabalho que seja fora do circuito do mercado central, nem como uma forma idealizada, e talvez até caridosa, de trabalho que rejeitaria o dinheiro como uma questão. Que é comum nesse nosso campo. Não trabalhar a questão do dinheiro e deixar pra lá coisas muito importantes que surgiriam a partir disso.

Jeff: Se perder também é um caminho, acho que o importante é a gente caminhar junto. Também vou me perdendo com você. Vou pensando um pouco nesse lugar do exótico, de quem nos olha de fora, a gente só é visto quando a gente se coloca de uma forma a ser enxergado. Mas a interpretação sobre nós é uma interpretação de fora. É uma interpretação do exótico mesmo. Uma interpretação de quem está fora da PerifAnálise, está fora do nosso contexto. Quando a clínica que você faz parte é dita desse lugar do exótico e, de alguma forma, vai deixando de ser, vai se tornando familiar, vou pensando o quanto vocês vão se posicionando e assumindo as posições da mesma forma que a PerifAnálise vai se posicionando e assumindo posições. Quando a Meire fala desse desejo dela de ser uma psicanalista na periferia, acho que isso é se posicionar de uma forma que quem está de fora da periferia vai olhar como exótico. Tipo, nossa, olha ali uma pessoa que quer ser avistada. Mas não, acho que não, não é isso, não é se colocar às vistas dos outros, é se posicionar. Ouvi isso em um lugar ou outro: “ah, é muito bonito isso que vocês fazem”. Bonito fica nesse lugar de “que bacana isso”, essa coisa que parece ser um elogio, mas que esconde muita coisa por trás, que é o lugar do assistencialismo, o lugar do pobre carente, o lugar do ajuda, sabe? Isso não somos nós. Ou seja, há um olhar exótico mesmo. Essa interpretação vai dizer muito mais dessa pessoa do que de nós. Esse exótico vai dizer mais da onde essa pessoa olha do que de nós. Outra coisa que a Meire provoca aqui na conversa é de como nosso saber é preocupante pra quem não é, não está a par, não quer conhecer, ou não quer participar de alguma forma. É preocupante no sentido de “putz, existe um novo saber que se compara ou dialoga com o nosso da centralidade e que nos ameaça”. E aí vêm essas frases. De uma preocupação com a nossa formação, como se houvesse uma despreocupação nossa em que formação é essa. E até mesmo uma desconsideração do nosso saber, como o que a gente produz aqui poderia ser folclórico, poderia ser exótico, poderia ser bonitinho. Quando você coloca, Daniel, que a coisa fica séria, é porque nos levamos também a sério. Acho que é essa a paridade que nos coloca no mesmo lugar. Como é que essa clínica funciona? As singularidades de cada um vai constituindo essa clínica. A singularidade de cada analisando. A singularidade de cada analista na PerifAnálise. Dentro do PerifAnálise temos um outro dispositivo que é o de intervisão [situação em que os analistas, sem um supervisor, falam a partir dos casos e contam com a escuta e falas dos colegas para pensar a respeito do trabalho clínico]. Como é rico esse dispositivo!, porque cada um vai olhar de um modo pra esse fragmento clínico e vai dar ali a sua vazão, vai dar ali também um pouco de como aparece sua clínica, vai dar ali um pouco de como se desnuda essa clínica pros companheiros. PerifAnálise não é um centro de formação serial de onde sairão psicanalistas idênticos. Acho que nenhuma instituição quer isso. Dinheiro é a questão que a gente se debruça volta e meia. Desde o início, pelo menos desde que a gente começou a atender, é uma questão. A Meire coloca que há pra ela a possibilidade de se pagar e de não se pagar. Na minha clínica, nas experiências que tive, já fui pensando como é possível somente pagar. Mas há aí essa construção do pagamento, o que se traz junto com esse pagamento. Quais as possibilidades, ou o que se consegue a partir daquele lugar se posicionar diante do seu pagamento, indiferente do quanto, mas o como se paga. Hoje questiono a ideia de um valor social, esse nome, essa identidade, essa identificação de um valor social, logo onde a gente está, na periferia. Esse valor social pode escamotear muito de uma realidade e pode diferenciar essa psicanálise que vem de um lugar e se instala ali. Na verdade não, a gente tá fazendo nascer ali essa clínica. Seria muito contraditório colocar valor social numa clínica que nasce ali naquele meio social. Então acho que é muito de como constrói, de como se elege esse valor, de como é que se faz esse movimento, esse gesto de pagamento, e isso ser respeitado. Ser respeitado como um investimento, como um gesto, como uma entrada, como uma possibilidade, como uma sustentação dessa clínica. E há muitas apostas ali de pessoas que não têm condições de pagar os valores que são colocados em uma clínica, digamos, do centro, ou essa clínica elitista. Mas essa mesma pessoa quer investir ali na PerifAnálise, quer investir o seu dinheiro porque acha importante, acha válido, acha que é um lugar onde ela também deve sustentar. Como a Meire coloca, não é uma venda da cura. A gente não tá vendendo a cura ali. A gente tá proporcionando uma experiência, uma experiência inconsciente. Experiência que se dá pelo analista e pelo analisando, duas pessoas fazendo uma relação e, a partir dessa relação, é construída uma clínica. A cada sujeito que entra nesse meu consultório vai se constituindo uma clínica, que não muda o setting, mas faz com que essa clínica se torne única para aquele sujeito. E ele vai se tornando sujeito dentro dessa clínica e se percebendo implicado e responsável por ela. Então é aí que a gente vê a mágica acontecer, onde vê a psicanálise acontecendo, onde eu vejo a psicanálise acontecendo. As pessoas começam a entender como é que funciona aquilo, se implicando naquilo. Acho isso maravilhoso. Tem a relação do dinheiro, tem a relação do tempo, tem a relação de como estar na clínica; tem a relação agora pandêmica também, como se coloca a internet, como se vê, se é o vídeo, se não é o vídeo, só é o áudio, como o áudio se encontra… Ultimamente eu tô ouvindo, quando muito pelo vídeo, ou até mesmo no tête-à-tête, ouvindo muito, falando bem menos, óbvio, e o silêncio… minha imagem é o suficiente pra estar presente ali. Agora também tenho que usar recursos de “aham”, “certo”, porque a conexão muitas vezes desaparece, você não sabe se a pessoa realmente está ali, se não está, muitas vezes isso tem um efeito clínico. Cada pessoa que entra é uma clínica que vai se constituindo, sabe? Estamos em passos iniciais. Pelo menos há caminho a caminhar. Há bastante horizonte que a gente enxerga junto.

Nesse momento, então, durante a pandemia, que pelo jeito tá longe de terminar e parece que no Brasil tem uma aposta do mercado e do Estado em sua continuidade, vocês seguem trabalhando com os recursos como a internet. Uma analisanda, que veio através da clínica pública, trouxe uma questão muito forte, logo no começo do processo, quando a gente se deu conta da coisa do vírus e pensou o que fazer a respeito disso. Ela trouxe uma questão assim: “se eu não puder ir lá no seu consultório eu não sei como vou fazer análise, porque minha casa é bastante pequena e todo mundo divide os poucos cômodos. Não tenho espaço pra falar sem que os outros escutem”. E certamente aquelas pessoas que estavam ao redor dela são pessoas que ela não queria que escutassem o que ela queria dizer. Ficamos um tempão pensando como construir uma possibilidade pra ela. Nessa situação temos por si só um fragmento de interpretação sobre a nossa vida social. A maior parte dos meus pacientes têm, de uma forma ou de outra, condições de se isolar em algum lugar da casa ou ir para a garagem ou sei lá o quê, pra poder falar sem ser escutada por outras pessoas. Pouco se leva em consideração, entre psicanalistas que ainda são a maioria dos centros econômicos, é que os efeitos inconscientes dos atravessamentos de classe no Brasil se dão de muitas formas. Imediatamente pelo dinheiro, mas também pela espacialidade, pela distância a ser percorrida pra sair de um lugar até um lugar de formação ou até o consultório do analista, e agora a gente tem, ainda bem, de se dar conta dessa situação muito difícil que é a das formas de se viver, das formas de habitar. As questões da intimidade, do espaço, da qualidade da internet, por que chega mais banda aqui no centro e chega pouca pra periferia, como isso atravessa os atendimentos? Acho muito forte e muito interessante que na pandemia, de uma forma ou de outra… não sei se vocês acham que isso faz sentido: vivemos numa circunstância que os analisandos e os analistas estão atravessados, de formas diferentes, tem muitas nuances, mas… quando o analista fala que não vai atender no consultório, vai atender através da internet, o analisando, ali naquele momento, é colocado a lidar com essa coisa de que o analista tá sendo atravessado, como ele, por uma mesma circunstância. Vocês moram aí onde vocês atendem. Os atravessamentos aí das condições habitacionais, espaciais, a qualidade da internet, vocês vivem como os seus pacientes vivem, ou não da mesma forma, mas enfim estão atravessados por essa coisa… Como é trabalhar aí, nessas circunstâncias? Como isso atravessou nas análises que já estavam em curso? Como isso fez atravessar análises que por ventura nasceram nesse contexto? Como é trabalhar nessa situação que estamos agora e não só do ponto de vista material, tecnológico, mas do ponto de vista da conjuntura que chega de maneira muito brutal, invade o setting? Como é trabalhar como psicanalistas na periferia nesse momento?

Meire: A internet segue sendo um problema, a conexão que trava, a conexão que cai… isso é bem difícil pra gente, é algo em comum entre nós. Com os analisandos de cada um há particularidades. Por exemplo, os que estavam em atendimento na Galeria toparam ir para o atendimento online. Mas logo nos primeiros atendimentos online surgem falas como “eu moro nesse lugar aqui que é barulhento, sabe como é favela”. Teve situações muito parecidas com as que você falou. Casa com apenas um cômodo e um banheiro, e a pessoa ia ao banheiro pra poder tentar o atendimento. Se tinha alguma condição às vezes ia pra rua pra poder fazer o atendimento. A internet é um dos nossos maiores problemas nesse momento, alguns não conseguiram continuar, pela dificuldade de manusear um celular. Tinha idosos sendo atendidos também, e por não ter essa familiaridade… Ir a um espaço falar para alguém daquilo que dói, daquilo que causa um mal-estar, já provoca um estranhamento pra quem é da periferia. Vêm porque dizem que faz bem falar. Então passar pra esse formato é outro estranhamento. Acompanho mulheres que falam “não dá pra falar em casa, minha questão é com o marido”, e aí bate num lugar e vai nesse lugar pra falar. Isso fala de pessoas que estão desejosas de sustentar esse lugar, de alguma forma tentar mantê-lo, ainda que atravessado pelas condições mais adversas. Mas também tivemos casos de pessoas que desistiram por conta de redução salarial. Mesmo quando falamos “olha, vamos falar sobre isso, dinheiro não é o que vai sustentar seu atendimento aqui, pode falar sobre isso”, a pessoa não conseguiu. Não conseguiu pela relevância, para aquela pessoa, de poder pagar. São elementos que tem algo em comum com uma clínica convencional, mas tem muitas particularidades também. Foi isso que a gente percebeu. Só que, interessante, essa coisa do covid, da pandemia, não aparece muito na narrativa das pessoas que a gente acompanha. Pelo menos a partir dos nossos encontros, em que falamos sobre alguns casos, não é algo que está movendo discurso na periferia. A pobreza sim. A questão econômica, sim. O fato de estar em casa, com a família, sim, de alguma forma, mas essa questão do medo, a morte… A gente tem ouvido muitos psicanalistas falando sobre morte. Na narrativa da nossa clínica, pelo menos no pouco que a gente tem conversado, isso não aparece com a mesma proporção. Essas questões existenciais são de outra ordem.

Jefferson: Pra migrar o pessoal do consultório pro online não tive dificuldade. Não tive essa dificuldade de “olha, pelo contexto, a gente vai fazer desse modo, o que que você pensa, o que que você acha?” Por ser uma novidade pra mim, porque eu não atendia online antes da pandemia, foi um exercício… É um exercício de uma radicalidade estar ali, pegar o transporte até chegar ao espaço, ajeitar o espaço, esperar a pessoa, a pessoa chega ou não chega… tá ali no tête-à-tête, chega o momento de se despedir, abre a porta, o portão, enfim. Tem ali uma dinâmica. Quando você vai pro online é outro lugar, outra dinâmica, outro contexto. E esse contexto exigiu me readaptar, fazer rituais. Tudo isso que falei do presencial é um ritual. É um lugar onde você faz um rito de chegada de um sujeito e aí esse sujeito vai se sentar naquele lugar onde ele se senta já há algumas sessões pra falar daquilo que lhe apatece. Na internet serão outros rituais. Como essa pessoa chega, se é ela quem chega ou se é você quem chama. Se essa pessoa chega, você faz a chamada de vídeo, ou não, vai só pro áudio. Ou então você faz a chamada de vídeo e coloca ela no áudio, enfim. Tem também a sua lógica. Tem aí essa conjuntura da precariedade. Ontem a gente conversava como era ônibus na década de 1990. Não se chegava a todos os lugares. Pra pessoa chegar a determinado centro ela tinha que pegar três, quatro ônibus, porque não havia um ônibus único que levasse até aquele espaço. Ou não existia ônibus para aquele espaço, a pessoa tinha que ir a pé. A periferia fica com esse atraso, com esse lugar onde não é, é preterido, na verdade, onde se exige uma lógica capital, e capitalisticamente a periferia não é interessante. Mas é também muito do contorno que se faz, dos arranjos, inclusive em situações na qual a internet não colabora, tanto do meu lado como do lado do outro sujeito. Remarca a sessão. Muitas vezes a internet tá caindo, tá desabando e a pessoa continua falando e pra ela aquilo ali faz sentido. Pra ela, ali, há um monte de insights, uma elaboração, e pra ela fez muito sentido e aí você meio que fica fora da experiência, fora daquele acompanhamento e pedir pra repetir… não vai ser a mesma coisa que no fluxo das palavras. Mas vai se fazendo um arranjo pra que seja dito de outras formas, aquilo que de alguma forma vai se repetindo, vai tendo insights, vai elaborando. Nessa conjuntura da precariedade é possível fazer análise. É possível fazer contornos pra que a pessoa tenha sua experiência inconsciente, tenha seu momento de análise junto com aquele analista, independente da internet. Alguns que tem carro vão pra dentro do carro, que é um espaço privativo. Outros vão pra frente da casa, no portão. E ali naquele portão tem um significado sentar e falar. Vai pra uma praça. Paga um pacote de dados pra poder fazer análise naquele dia. Tem investimento dos dois lados. Acho que o conjunto dessa precariedade não impede da análise acontecer. Vai se formando investimento suficiente pra se sustentar a clínica. Vou pensando, do outro lado do centro, quais precariedades teriam, não é? Sejam elas materiais ou não. Mas ao mesmo tempo que existem as precariedades dessa materialidade na periferia existem também arranjos, investimentos, implicações da pessoa naquela relação que quer manter, quer sustentar, sabe? Acho isso muito único, uma psicanálise que faz sentido praquela pessoa. A pessoa deseja. A pessoa deseja estar em análise. Acho que esse desejo vai fazendo esses contornos.

Sempre interessante pensar como as palavras aparecem. Na forma como tu vai falando, Jeff, fico muito tocado com a dimensão dos sentidos da ideia do investimento. Pensando no próprio termo freudiano, besetzung, investimento libidinal, a insistência de Eros, essa instigação que vai procurando formas pra poder existir por um instante a mais. Estou pensando, mexido pelo que vocês estão falando, como uma experiência psicanalítica – não sei se vocês gostam de pensar nesses termos, mas pra mim vai dando também cara de uma experiência política, no sentido amplo e mais radical da ideia da política, dessa prática na cidade da existência, a busca por transformar a existência de acordo com os desejos, uma afirmação política desejante muito forte. E é muito legal como a psicanálise precisa, pra acontecer, muita coisa, embora seja simples também. O analista e essa outra pessoa que chega porque quer falar, porque precisa falar, mas também o analista que também busca suporte no grupo no qual ele trabalha – pode ser um grupo como o de vocês, que é um coletivo, pode ser um grupo que vai se constituindo por afinidade, ou pela rede de trabalho que a gente estabelece com nossos amigos e amigas analistas, nossos supervisores, nossos amigos não-psicanalistas que escutam a gente quando a gente fala sobre o nosso trabalho… Fico com a impressão de um trabalho que fala de uma vontade de, de um interesse, de um investimento freudiano mesmo, de fazer a libido prevalecer, a instigação da vida prevalecer, num momento em que essas instigações são muito necessárias. Vocês falam de um trabalho que começou como uma reação vital a esse momento bastante dramático que estamos. Começa em 2018. Isso por si só já é uma coisa política. Uma experiencia de psicanálise, na periferia, que começa em 2018. 2018 que é a oficialização de um movimento conservador, bastante avesso a essas ideias e afetos de uma vida mais coletiva e socializante, mais interessante, mais plural, mais muitas coisas. Posso estar aqui também deslumbrado com vocês… mas acho que não é só isso. Acho que é muito encantador o jeito que a história brasileira vai se fazendo a partir das periferias.

Meire: Queria só compartilhar uma de tantas coisas que a periferia pode pensar acerca da psicanálise. Na nossa clínica chegou uma vez um senhor, morador da rua onde fica a Favela Galeria, em busca de hipnose. Nos procurou porque queria fazer hipnose… Então, veja, a periferia de alguma forma captura também o que é isso de psicanálise. Estar lá, estar na periferia provoca um interesse de saber. Isso pra nós também… a gente também usa bastante essa palavra, libido, investimento libidinal, porque de fato tem. Que legal que você trouxe e apareceu de alguma forma. Porque se tem uma coisa que a gente tem feito nessa quarentena é se dedicar a PerifAnálise e tudo o que a envolve. Tanto que é sábado à noite e a gente tá aqui falando da PerifAnálise, porque nos atravessa e tem sido muito interessante pra nós também.

Tenho essa impressão que vocês vão proporcionar uma experiência de psicanálise para outros psicanalistas que não são de São Mateus. Acho que é uma coisa bem importante, não na ordem do exotismo, é outra coisa. Acho que é um capítulo importante e imagino que vá ter reverberações em outros campos, outras cidades, outros bairros. É o tipo de experiência que faz com que outras psicanalistas periféricas se interessem por trabalhar nos seus bairros. Acho que isso vai ter um efeito produtivo pra além do próprio trabalho de vocês, pra além do grupo de vocês.

Meire: Confirmando isso que você falou, já aconteceu. Também pelo instagram ficaram sabendo e começaram um outro grupo que se chama Psicanálise na Periferia. Estudantes de psicologia, estagiaram lá na Praça Roosevelt. Também ficaram com inquietações do trabalho na periferia. Nisso a gente já tava acontecendo, nos acharam no instagram e vieram fazer uma conversa com a gente e aí começaram. De alguma forma isso já tá alcançando outros lugares, outros bairros e que bom. Descentralizando de alguma forma.

A psicanálise é a peste.

Meire: Não é a cura, é a peste!


1 A experiência de formação de psicanalistas, baseada na própria análise, em que a pessoa que deseja vir a ser psicanalista terá contato com o próprio objeto da psicanálise, o inconsciente e suas produções; o estudo e produção teóricos e o atendimento de analisandos acompanhado por outro analista, comumente chamado de supervisor.

2 Nas palavras deles mesmos, uma galeria de artes a céu aberto, em Vila Flávia, no bairro São Mateus, zona leste de São Paulo, capital, através da qual coletivos, ativistas e moradores se mobilizam.

3Nas palavras deles mesmos, o Instituto AMMA Psique e Negritude é uma organização não governamental cuja atuação é pautada pela convicção de que o enfrentamento do Racismo, da Discriminação e do Preconceito se faz necessariamente por duas vias: politicamente e psiquicamente. Foi fundado em 1995 por um grupo de psicólogas, ativistas, comprometidas e familiarizadas com o enfrentamento político, e que constatou que somente a via política não era suficiente. Desde então, o instituto tem buscado por meio de formação e prática clínica, identificar, elaborar e desconstruir o racismo e seus efeitos psicossociais.

4O trabalho publicado em 1895 por Josef Breuer e Sigmund Freud que possibilitou este último caminhar na direção do que veio a chamar psicanálise. Foi esta publicação que apresentou radicalmente a importância da história da pessoa no desenvolvimento dos seus sintomas. Assim, o médico teve de passar a palavra para quem antes deveria confiar no saber da autoridade. É o paciente que sabe. Anna O. é a paciente que nomeou esse momento do método terapêutico como “cura pela fala”.

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Um comentario para "A proposta singular da PerifAnálise"

  1. Santos disse:

    Projeto de peso, que levou a saúde mental à populacaode baixa renda, para quem nao tinha condições de pagar os valores astronômicos que eu conheço é um que começou em GO há 23 anos e hoje através de parcerias está em 03 estados, conta com mais de 400 profissionais, com meta de chegar a 1000 e só esse ano atendeu mais de 65.000 sessões de psicoterapia. Atuam na abordagem analítica e por ser também online embora estejam em 03 estados atendem gente no Brasil todo, em fazendas, em asilos, em lugares remotos, em plataforma de petróleo, caminhoneiros em viagem, pessoas humildes como trabalhadoras do lar, coletores de lixo, etc. Eles representam hoje no MUNDO a popularização da análise, até então elitista, cara e inacessível. Tiraram da invisibilidade o sofrimento dos mais humildes e neles colocaram o foco da saúde mental. @olhosalma @psicoterapiasocial

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