A presença de Mark Fisher em dois filmes brasileiros

Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça, e Marinheiro das Montanhas, de Karim Aïnouz, mostram o tempo suspenso – e a sensação de que o presente não cria novos assombros. E buscam a cidade como espaço de devaneios contra a ordem neoliberal

Foto: Marinheiro das Montanhas, de Karim Aïnouz
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‘’Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos’’
Marshall Berman

Retratos Fantasmas, do diretor Kleber Mendonça Filho e Marinheiro das Montanhas, do diretor Karim Aïnouz: os dois se cruzaram com o meu mais novo e absoluto flerte: a assombrologia, conceito posto pelo filósofo Jacques Derrida. Um fantasma não está totalmente presente mas é algo que age sobre nós sem fisicamente existir: a eles, tenho dedicado horas de pensamentos críticos e acríticos após me atar às deduções do escritor Mark Fisher. Meu corretor, de puro-sarro-poético-previsível sugeriu a palavra ‘’acrílicos’’, que nada mais é que um material termoplástico extremamente transparente e resistente, segundo a sua própria definição. Seria o fantasma um material resistente justamente por seu caráter excessivamente invisível?

Os diretores em questão me parecem tão mais convencidos do que eu de que a vida física é moldada por lapsos fantasmagóricos. Durante os dois filmes, me vinha em caixa alta, um dos títulos do capítulo do livro Os Fantasmas da minha vida do Fisher: DESEJANDO SEMPRE O TEMPO QUE ACABOU DE NOS ILUDIR. Os dois filmes se tratam de um tempo suspenso e fantasiado. No caso do Karim, uma vida que poderia ter sido totalmente outra caso tivesse sido criado em uma cidade de cores frias e pessoas de línguas doces, onde nasceu o seu pai. No caso do Kleber, uma cidade dentro do terceiro mundo que poderia estar cada dia mais e menos parecida com o seu passado mas que ainda assim fosse totalmente irreconhecível no seu futuro, mas que ainda assim seja incapaz de persuadir o presente.

É impossível negar a sensação de que o presente já é quase que totalmente insuficiente para a criação de novos assombros e por isso realizamos o gesto de voltar o nosso pescoço para trás, acordar nossos fantasmas e reafirmar os nossos espectros. Há um gesto de recusa e dignidade do personagem Kleber: o seu fantasma não o deixa dormir e por isso, é impossível que seu corpo se acomode ao desencantamento capitalista e o que ele propõe como paisagem. O estabelecimento do neoliberalismo nas éticas e estéticas criou a paisagem urbana que Mark Fisher descreveria como ‘’forçada a uma simulação gigantesca de atividade, uma fantasmagoria produtiva em que nada mais é produzido, uma economia feita de ar quente e delírio brando.’’

Em Retratos Fantasmas, o diretor remonta uma Recife engolida pelo apetite neoliberal e em Marinheiro das Montanhas, o diretor sonha com uma vida que poderia ter sido em uma cidade que soa como um paraíso arcadista do século XVIII. Há nas entrelinhas esse desejo pelas paisagens que não mais existem, dos sonhos coletivos silenciosamente destruídos no meio das grandes cidades. Eles querem a cidade como espaço de devaneios, que resistem ao processo de gentrificação e desenvolvimento e para isso, reafirmam suas assombrações insuperáveis com toda a beleza disponível apenas para os grandes poetas. Creio que talvez já possamos chamar Karim e Kléber de poetas da imagem.

Como resgatar a vida perdida diante dos nossos olhos? É a pergunta que está no centro da melancolia. O poeta Duda Machado diria que ‘’viver inclui o que poderia ter sido’’.

Na contemporaneidade, é engraçado e estranho presenciar como as tecnologias têm materializado nossas memórias. Vivemos um boom de artifícios digitais para que nossa vida presente soe analógica, como uma gravação em vhs dos anos oitenta ou como as imagens de super 8 registradas nos filmes de Jonas Mekas. No paradoxo da nostalgia, coexistem os novos discursos neoliberais sobre bem estar e saúde que usam a palavra SUPERAÇÃO de forma compulsória e erroneamente simplista. Estamos todos debaixo da chuva ácida de dicas e receitas de como superar o passado, as violências, os abusos, as experiências e os fantasmas. Fala-se muito ainda a palavra RESILIÊNCIA, essa inventada para suportar todas as dinâmicas neoliberais, por mais espinhosas que elas sejam. Não lidamos com o fato de que há paisagens insuperáveis, há fantasmas que não desaparecem e que ao invés de superá-los, muitas vezes, é mais interessante observá-los para entender o porquê desaparecem, para quem sabe, apaziguá-los.

O que nos impede de habitar o presente digital? Mark Fisher ressaltaria que nos últimos dez ou quinze anos, a internet e a tecnologia móvel modificaram significativamente a textura da experiência cotidiana para além do que imaginávamos ser possível. Ainda, e talvez por causa disso tudo, exista uma sensação cada vez maior de que a cultura perdeu a capacidade de compreender e articular o presente. Ou pode ser também que não exista mais um presente a ser articulado. Não sei. Mas vejo esse gesto de resgate como uma tentativa de manter o sabor que tinham as ruas.

Às vezes também é interessante não superar porcaria nenhuma. Ainda que o neoliberalismo queira nos ensinar que estar vivo seja seguir superando toda e qualquer paisagem, acostumando à vista à prédios, misérias e mercadinhos Oxxo. Talvez uma opção de cura seja transformar nossas assombrações em imagens, e finalmente aceitar que um futuro havia morrido silenciosamente, mas outros viriam à tona.

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