Sérgio perdeu um olho. Os juízes, a dignidade

Assim o Judiciário tenta enterrar Junho de 2013. Ou: como o Tribunal de Justiça de S.Paulo não considerou a PM culpada de ter cegado, há cinco anos, o fotógrafo Sérgio Silva

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Por Tadeu Breda | Imagem: Sérgio Silva

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Este é um trecho do capítulo “Nexo causal 2017-2018”, do livro

Memória Ocular: Cenas de um Estado que Cega

de Tadeu Breda e Sérgio Silva

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“Votação unânime, está encerrado o julgamento”, ouço, e me levanto bruscamente. Estou perto da porta, sou o primeiro a deixar a sala. “Ele perdeu”, digo à equipe de TV que esperava do lado de fora. Busco a janela. O céu está azul. Tento me acalmar respirando fundo… soltando o ar… respirando de novo… bem devagar…

O corredor está cheio, agora. Olho em volta. Um clima de merda. Localizo Sérgio Silva ao lado da filha, Elis, que se refugia em um joguinho de celular. Me aproximo. “O nexo causal vale mais que meu olho, mano”, ele me diz, segurando a imensa indignação que ameaça explodir em gritos, palavrões e outros gestos de inconformidade que definitivamente não combinam com a suntuosidade do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Respondo com um abraço apertado, e encharco seu paletó. Não tenho nada a dizer, só consigo chorar, e choro por sei lá quanto tempo, trinta segundos, dois minutos, três, até que outras pessoas chegam mais perto, esboçando um contato. Câmeras e gravadores estão prontos. Sérgio não tinha sido ouvido durante a audiência, mas todos querem escutá-lo, saber como se sente, o que acha da sentença recém-proferida.

“É desumano perder o olho por um tiro claramente disparado pela Polícia Militar, em uma noite em que eu não estava me manifestando, estava trabalhando, e depois ouvir sobre o nexo causal da história”, desabafou, a voz embargada. “Meu nexo causal eu tenho: é a falta da visão. Isso é muito mais humano do que qualquer fotografia ou vídeo que essa decisão pede para que eu prove que foi uma bala de borracha que destruiu meu olho.”

“Nexo causal” e “nexo de causalidade” foram as expressões mais repetidas durante a audiência realizada na 9ª Câmara de Direito Público do TJ-SP na manhã de 29 de novembro de 2017. A sessão durou exatamente trinta e oito minutos e trinta e dois segundos, tempo suficiente para que os desembargadores Décio Notarangeli e Oswaldo Palu seguissem o voto do relator do caso, Rebouças de Carvalho, e negassem em uníssono o pedido de indenização de Sérgio Silva. Isso porque, de acordo com os magistrados, o fotógrafo não pode provar que teve o globo ocular destruído por um projétil de elastômero — pode ter sido qualquer outro objeto —, nem que foi mesmo algum membro da Polícia Militar que o atingiu — pode ter sido qualquer uma das pessoas que estavam no cruzamento das ruas Consolação, Maria Antonia, Caio Prado e Dr. Cesário Mota Júnior, no centro de São Paulo, no início da noite de 13 de junho de 2013.

É verdade que não existem nem vídeos nem fotos de Sérgio Silva logo após ser ferido, ainda na rua. Não há imagens da bala de borracha chocando-se contra seu olho esquerdo. Não se sabe onde está o projétil de elastômero marcado com seu sangue. Mas há uma testemunha, Severino Honorato, que socorreu o fotógrafo naquele momento de suplício — e que não foi ouvido em nenhum momento pela justiça. Há também uma infinidade de relatos e gravações disponíveis na internet, atestando que os policiais apontaram suas espingardas de bala de borracha na altura da cabeça das pessoas. Há documentos oficiais da PM comprovando que ao menos 506 projéteis foram disparados por seus agentes naquela jornada. Há outras pessoas — jornalistas e transeuntes — atingidas pelo elastômero no olho e no rosto durante o mesmo protesto. A posição em que Sérgio se encontrava quando foi alvejado — defronte à tropa de choque, no espaço exíguo entre uma banca de jornal e a parede de um edifício — elimina qualquer possibilidade de que seu olho possa ter sido atingido por paus ou pedras lançados pelos manifestantes, como sugerem os desembargadores. As últimas fotos que produziu quando ainda tinha dois olhos, e que abrem este livro, são prova de que o fotógrafo estava onde diz que estava, ou seja, na esquina da Rua da Consolação com a Rua Caio Prado. Não se encontrava na “linha de tiro” — seja lá o que isso quer dizer —, e buscava abrigo de uma tropa que, posicionada no cruzamento, disparava e lançava bombas para todos os lados.

Eu me sinto um idiota escrevendo tudo isso pela enésima vez. Parece inútil. Além do juiz de primeira instância, três desembargadores e seus respectivos assistentes tiveram o processo nas mãos. Está tudo lá. “É desigual, o poder está muito desigual, não tem humanidade, não tem democracia, não tem direitos, não tem nada, esse discurso cai por terra”, diz Sérgio. “Fico pensando muito na imagem da justiça, que é uma figura feminina com os olhos vendados, né? Eu discordo. Ela não tem olhos vendados. E não é uma mulher. Até agora, quatro homens me julgaram, e enxergando muito bem.”

Transcrevo a seguir a íntegra do julgamento a que assistimos naquela manhã de quarta-feira. Esqueci o gravador ligado dentro da mochila, e o aparelho captou o que se disse na sessão. Algumas partes, porém, estão inaudíveis: resolvi sinalizá-las com reticências entre colchetes, que é como se costuma fazer. De toda a audiência, irei omitir apenas a sustentação oral de um dos advogados do fotógrafo, Mauricio Vasques, que foi o primeiro a fazer uso da palavra. A esta altura o leitor já conhece suas opiniões e os argumentos que conduzem a ação. Só não sabe que o doutor recebeu algumas mensagens emotivas de apoio alguns minutos antes da sessão, que quase o levaram às lágrimas, e que trazia no bolso da calça raminhos de lavanda amarrados com um barbante, presente da esposa para que trouxesse a sorte de que precisaria naquela inglória contenda. Como se verá, porém, os magistrados haviam formado convicção antes de adentrarem o recinto: o roteiro já estava, literalmente, escrito. Nada do que se disse mudaria o desfecho do episódio. “Aquilo foi uma espécie de teatro”, definiria Sérgio.

A cena se desenrola em uma sala relativamente ampla. Os desembargadores sentam-se a uma grande mesa em “u”, com o presidente do colegiado na cabeceira, ao lado de uma assistente, e os outros dois julgadores posicionados um em cada lado, olhando-se. Um quarto desembargador permanece em seu lugar, mas não participará deste julgamento. Transitando entre os homens brancos de capa preta, um copeiro negro de paletó branco, em silêncio, lhes serve água, café e chá, talvez algum tira-gosto. De frente para o presidente, mas a certa distância, encontra-se um púlpito, destinado ao advogado ou procurador que defenderá suas razões perante a corte. Às costas de quem faz a sustentação oral, e logo atrás de um cercadinho de madeira que não deve ser ultrapassado em hipótese alguma, cadeiras se perfilam em uma pequena plateia.

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