Oriente Médio: o papel crescente da Turquia
Publicado 06/09/2011 às 11:29
Diante do desprestígio do Ocidente, e das lutas pela democracia, país aspira à condição de potência regional
O primeiro-ministro turco, Recep Erdogan (foto), fez novas declarações de grande repercussão na manhã desta terça-feira (6/9), dias depois de ter rebaixado o status das relações de seu país com Israel, em resposta à ausência de um pedido de perdão pelo ataque à “frotilha da Paz”, em maio de 2010.
Erdogan afirmou que adotará novas sanções contra Tel-Aviv, inclusive o rompimento dos laços econômicos e militares. Além disso, garantiu que a marinha turca passará a ter presença mais constante no leste do Mediterrâneo (hoje dominado por Israel). Por fim, anunciou que visitará ao Egito, com passagem — detalhe essencial — pela Faixa de Gaza, sitiada pelo exército israelense…
Não se trata de medidas apenas simbólicas. A edição internacional do jornal turco Hurriyet relata hoje as primeiras reações — temerosas — de Israel, diante das sanções econômicas. O presidente do Banco Central, Stanley Fischer (ex-vice-presidente do CityBank), afirmou ontem, numa conferência em Tel-Aviv, que “as consequências serão pesadas, porque a Turquia é a economia mais importante de toda a região, inclusive os Estados [petroleiros] do Golfo”.
Erdogan age lastreado por este peso econômico (o PIB turco cresceu a uma média de 7,4% entre 2002 e 2007 e é o 17º do mundo; o país possui indústria sólida e exporta sem barreiras alfandegárias para a União Europeia) e por governar uma nação de 72,5 milhões de habitantes. Mas ele soma, a estes fatores, vantagens políticas raras na região e uma impressionante capacidade de criar fatos novos.
Embora o islamismo seja fortemente majoritário como religião, a Turquia é um Estado laico desde 1923 (quando a República foi proclamada e a família real otamana, expulsa). Durante a Guerra Fria, foi parceiro estratégico dos Estados Unidos e conserva-se membro da OTAN. Até há poucos anos, mantinha sólidos laços com Israel.
Esta postura mudou aceleradamente a partir de 2004, quando Ancara passou a denunciar assassinatos “seletivos” cometidos por Tel-Aviv, classificando mais tarde a política adotada contra Gaza como “terrorismo de Estado”. As relações deterioraram-se de vez desde o assalto à frotilha, em que nove cidadãos turcos foram mortos por militares israelenses. À mesma época, em outro sinal da força crescente dos países “emergentes”, Turquia e Brasil articularam um acordo internacional para por fim ao conflito entre Irã e Estados Unidos — aceito por Teerã, mas rejeitado, à última hora, por Washington.
As recentes revoltas árabes ampliaram ainda mais a margem de manobra de Ancara na região. Embora a juventude (que liderou movimentos como os do Egito e Tunísia) busque claramente novas formas de democracia, elas ainda precisam ser consolidadas como projeto e como prática. Num momento de buscas, o exemplo turco parece providencial: o país e seu regime não se confundem nem com o Ocidente (visto como opressor dos árabes), nem com regimes islâmicos que não reconhecem a democracia formal ou as liberdades básicas (Irã e Síria, por exemplo).
Se visitar Gaza, como prometeu esta manhã, Erdogan pode tornar ainda mais proeminente este papel. Será visto como o chefe de Estado que teve a coragem de desafiar o cerco aos palestinos — às vésperas de uma decisão da ONU que poderá reconhecer seus direitos. Formalmente, não há o que possa impedir o primeiro ministro de adotar este gesto simbólico; nem ele parece temer a ousadia.
Só o fato de um país membro da OTAN, tido como um “enclave” dos EUA e (eterno) candidato à União Européia criticar e adotar ações concretas contra o expansionismo israelense (e, por conseguinte, seu patrono, os EUA) já nos dão uma prova do quanto o poder mundial está tornando-se cada vez mais multilateral e como os EUA estão em declínio enquanto império político.
Parabens, Sr. Erdogan, se quiser compania, vou junto com V. Sa. !
Marcomede.
Ótimo artigo. É alentador ver que depois de décadas, finalmente pessoas/países estão tendo a coragem de enfrentar o que parece ser o último tabu: criticar Israel, até hoje intocável.
Concordo com outros comentadores que acham que poderá vir a ser só “fogo de palha”, mas a Primavera Árabe mostrou ao mundo que o inusitado também pode acontecer. Felizmente estamos vendo certo amadurecimento no sentido de que a humanidade não parece mais querer tolerar injustiças.
Vejo com cautela a surpreendente noticia, até porque a Turquia é acalentada pelos EEUU e tida e havida como um enclave norte-amricano na região. Possa ser que este episodio seja uma legítima manifestação de repúdio à agressão israelsense, assassinando turcos, e apenas uma satisfação ao seu povo, com o duplo intuito de provocar uma mudança no comportamento de Israel quanto aos comboios humanitarios. Possa ser tambem que revele a ponta do iceberg nas relações Turquia x EEUU sempre questionadas pelo mundo árabe em redor da Turquia. Só o tempo dirá.
Alberto Freitas.
Por enquanto, grande retórica. Vamos ver no que vai dar, na hora que essa retórica tiver de se traduzir em hostilidade militar.
Não havia aprofundado a reflexão acerca da iniciativa do Brasil em articular-se com a Turquia para mediar a situação do Irã. Tampouco detinha pormenores sobre as relações muito próximas entre Ancara e Telaviv. Por último, parabenizo a corajosa atitude do primeiro-ministro da Turquia em visitar Gaza e solidarizar-se com um povo que há mais de meio século é diuturnamente bombardeado pelas forças terroristas do Estado de Israel. Não há registro na História Contemporânea recente de um povo que haja sofrido tão intensamente como o nobre Povo Palestino. O primeiro-ministro Erdogan ficará registrado na História como o primeiro chefe de governo que ousou desafiar um Estado opressor e genocida, como Estado de Israel, até há bem pouco parceiro. Que vergonha para os demais chefes de governo e de Estado. No entanto, o primeiro-ministro Erdogan poderia ter adotado essa iniciativa há mais tempo.
excelente análise! simples, direta e bem escrita!