Honduras: como refundar um país?

Golpe de Estado. Fraudes eleitorais. Ingerência dos EUA. Exército nas ruas. Esquerda hondurenha resiste contra institucionalidade corrompida e aposta: construir projeto articulador é o primeiro passo para recuperar soberania

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As ruas de Tegucigalpa, capital de Honduras, estão calientes. Desde o fim de abril, quando o regime de Juan Orlando Hernández, mais conhecido como JOH, anunciou, por imposição do Fundo Monetário Internacional, a privatização da saúde e da educação, dezenas de milhares de pessoas protestam toda semana. Para sufocar a insatisfação popular, que contava até com greve da Polícia Nacional, o presidente convocou o Exército. Já houve três mortes e mais de 20 feridos. O Organização das Nações Unidas pediu uma investigação “urgente e imparcial” dos acontecimentos.

O fato é que Honduras vive uma grave crise: três golpes de Estado, um militar e dois eleitorais, em apenas dez anos. E, desde então, amarga a imposição de um modelo neoliberal – do qual essas contrarreformas anunciadas por JOH fazem parte – e uma submissão aos interesses estratégicos dos Estados Unidos, seu principal aliado e que dá sustentação a Hernández, inclusive militar. Com 9,1 milhões de pessoas, hoje a pobreza atinge 60% da população hondurenha. 23% das crianças são subnutridas, atingido os 40% em alguns períodos, segundo dados das Nações Unidas. Mais de dois terços das famílias (72%) vivem da agricultura, como pequenos proprietários ou trabalhadores em grandes explorações agrícolas de banana, café ou açúcar.

Ofensiva golpista

O país centro-americano sofreu o primeiro golpe contra os governos do ciclo progressista latino-americano. Lá foi inaugurado o período de restauração conservadora: golpes parlamentares contra Fernando Lugo, no Paraguai, e Dilma Rousseff, e lawfare, a guerra jurídica, contra líderes progressistas como Lula, Cristina Kirchner e Rafael Correa.

Na madrugada do dia 28 de junho de 2009, cerca de 200 militares encapuzados invadiram a casa presidencial e sequestraram o presidente Manuel Zelaya, ainda de pijamas. Deixaram-no por breve período em uma base militar e, em seguida, o deportaram para a Costa Rica.

O argumento para o golpe era que Zelaya, que anunciara um referendo para reformas constitucionais, queria se perpetuar no poder. Na verdade, o presidente deposto, latifundiário que ganhara as eleições com o apoio do Partido Liberal, havia dado um giro à esquerda, aproximando-se da Venezuela de Chávez: incorporou, com autorização do Parlamento, Honduras ao Petrocaribe (que permitia comprar petróleo venezuelano em condições de pagamento preferencial) e, em seguida, à Aliança Bolivariana dos Povos de Nossa América (Alba).

Em novembro de 2009, foram chamadas eleições presidenciais, boicotadas pela esquerda e por movimentos democráticos, que acusaram-na de “viciada”. Porfírio Lobo Sosa, do Partido Nacional, foi, então, eleito presidente. Em 2013, e já com Zelaya de volta ao país, mas impossibilitado de se candidatar, Xiomara Castro, sua esposa, disputou a presidência por uma coalizão formada pelo Partido Liberal e pelo Livre, recém-fundado por ele. JOH vence, mas com fortes suspeitas de fraude: enquanto realizava-se a recontagem de votos, os magistrados do Tribunal Supremo Eleitoral estavam reunidos com a embaixadora dos Estados Unidos em Honduras.  Em 2017, houve outra eleição marcada por fraudes – com urna de votos abertas ou sem atas, cédulas de votos recém impressas, eliminação de rastros digitais de contagem etc. JOH vence por uma estreita diferença de votos. As ruas novamente esquentam: protestos contra a fraude eleitoral são duramente reprimidos pela polícia.

Em busca de “refundar” Honduras

O ativista hondurenho Luis Méndez é um dos idealizadores da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), que reúne organizações sociais e setores populares, sindicais e progressistas para denunciar o golpismo em Honduras e traçar estratégias para restabelecer a democracia. Em entrevista ao pesquisador Aleksander Aguilar Antunes, destaca que, diante da grave crise política que o país enfrenta, movimentos populares devem apostar em um projeto alternativo e popular de poder – e não ficarem “reféns” das eleições.

“O movimento social e popular organizado e as populações desorganizadas têm estado em uma espécie de ‘vagão traseiro’ do projeto de disputa pelo poder. Portanto, as forças populares, com falta de autonomia e autodeterminação diante da crise e diante da disputa de poder, criam uma dependência excessiva das lideranças politicamente instáveis ou excessivamente calculistas. Nesse sentido, há uma ausência de liderança estratégica, de um plano mínimo de luta que permita às forças populares avançar em seu verdadeiro projeto de poder popular”.

Para Méndez, há duas estratégias para enfrentar o golpe, por vezes conflituosas. A primeira, considerada por ele como “sistêmica”, apregoa que o Estado Democrático de Direito pode ser restabelecido via processo eleitoral, apesar da institucionalidade ser uma “pedra no sapato”: Suprema Corte Eleitoral, Ministério Público e demais instituições estão subordinadas ao Executivo. Outro caminho, “antissistêmico”, seria a implantação de uma Assembleia Nacional Constituinte Originária e Refundacional, que colocaria a população no centro das decisões – e não os partidos.

“Acredito que na fase pós-golpe, apesar das contradições entre uma linha eleitoral e outra refundacional, o projeto político eleitoral assumiu a metade do caminho entre uma identidade relacionada com essa refundação e definiu como instrumento político eleitoral o Partido Livre, o que, ao meu ver, constituiu em uma contribuição refundacional ao ideário político do partido”, analisa o ativista.

No entanto, de acordo com ele, as forças populares, diante de derrotas via fraude eleitoral, enfrentaram uma subdivisão de suas forças – e, diante de lideranças políticas, ainda recai sobre a esquerda hondurenha uma incerteza de um projeto articulador, seja via eleições ou Assembleia Constituinte.

“Portanto, posso concluir que a FNRP, embora seja verdade que existe como estrutura nominal e constitui um projeto histórico e de referência extremamente importante depois do golpe de 2009, também é um projeto de transição para outras formas de organização das forças populares que rejeitam formatos unidirecionais e verticais de condução, típicos de movimentos sociais tradicionais e até novos”, pondera ele.

E conclui: “não é de estranhar que, antes da fraude eleitoral de 2017, na fase de insurreições territoriais em nível nacional, o FNRP não atue como espaço articulador do processo. Na ausência de uma frente de luta, houve uma convergência contra a continuidade e a fraude eleitoral; um amplo espaço que conseguiu articular organizações e movimentos do setor social popular e da Aliança da Oposição”.

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