Cronista de um tempo tormentoso

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Não é possível falar de Literatura Marginal sem mencionar Ferréz, sua obra que salta para novas mídias, seu compromisso duradouro com a periferia

@jeanmello12

“A conclusão que eu tive é que achei muito ridículo o discurso oficial [midiático e político] que defende que ‘podem voltar todos ao normal’. São Paulo está vivendo um novo período e ainda não descobriram. Muitas vezes me perguntam se caminhamos para uma guerra. Eu acho que isso já é uma guerra”. Neste trecho, de Ninguém é Inocente em São Paulo, Ferréz expõe sua visão sobre os conflitos que marcam a cidade — para usar a expressão de Mano Brown, outro desbravador das culturas periféricas — “a garoa rasga a carne”.

Não dá para pensar na ascensão da Literatura Marginal, e em sua visibilidade no cenário nacional e internacional, sem relação direta com os livros de Ferréz (no cartório, Reginaldo Ferreria da Silva). Ele estreou em 1997, com a Fortaleza da Ilusão, e permanece ativo e provocador desde entãoSerá mera coincidência ter surgido no mesmo ano do Sobrevivendo no Inferno, disco dos Racionais de mensagem contundente e um milhão e meio de cópias vendidas?

No livro Capão Pecado, seu primeiro romance (primeira edição, de 2000, esgotada em apenas dois meses), a relação entre o escritor e o rap fica ainda mais evidente. Poetas, cantores, escritores e articuladores do movimento hip-hop intercalam suas contribuições, registradas no livro, com a história, de tirar o fôlego e prender a atenção até o momento em que o enredo finalmente se resolve.

Ferréz coloca as cores de realidade em seus livros, que já estão tomando outras linguagens. O conto Os inimigos não levam flores foi adaptado para televisão e assumiu a forma de histórias em quadrinhos. Há traduções para o espanhol e italiano, respectivamente com Capão Pecado e Manual Prático para o Ódio. O último vai ser adaptado para as telas de cinema. Certo dia, quando estava lendo esse livro pela segunda ou terceira vez, um cobrador de ônibus me disse que todo mundo deveria ler Ferréz — principalmente esse segundo romance lançado em 2003. Uma literatura que chega em quem é retratado.

Fiquei surpreso ao entrar em contato com Amanhecer Esmeralda, primeiro livro infantil do autor. Numa edição com lindas ilustrações, a obra é a história de uma criança negra e moradora de uma comunidade pobre, que vai sendo modificada através de gestos de amor que melhoram sua autoestima. Segundo Ferréz, a personagem foi inspirada numa criança que assistia suas palestras e o impressionava pela altivez — que ele compara à das grandes nobres africanas.

Além de escrever, Ferréz edita. Seu livro Cronista de um tempo ruim —  um compilado de contos e crônicas, em que destaco Rio de Sangue — inaugurou o Selo Povo, criado para publicar textos de escritores periféricos. Em dois anos, lançou quatro publicações. Com a lançamento do livro de Cidinha da Silva, fechou um ciclo, deixando a lição de que é possível publicar livros de ótima qualidade, vendendo-os ao preço de duas cervejas e meia, algo sempre ressaltado na divulgação dos materiais publicados e em entrevistas de Ferréz.

Para ele, todo escritor deve estar engajado em projetos sociais. Para alinhar discurso com prática, em 2012 conforme afirma em um dos seus blogs, Literatura Marginal, vai dedicar-se ao Instituto 1DASUL que dentre várias frentes, realiza oficinas de leitura para aproximadamente 180 crianças.

 

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6 comentários para "Cronista de um tempo tormentoso"

  1. DLabres disse:

    Sabe o efeito catarse? Então… rememorando agora as letras do Racionais debatidas com estudantes quando estava lecionando História, em periferia. O despontar da razão das questões urbano-sociais vividos por muit@s, igualzinho, ainda hoje.
    Valeu, Jean!
    Suas ‘outras palavras’ já a serem utilizadas em novos/velhos debates de história contemporânea, con su permisso 😉

  2. mayra laborda disse:

    Ferréz é divino! Adorei a inciativa, são poucos que dao valor aos artistas “de rua”.

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