Existirmos – a que será que se destina?
Publicado 02/06/2017 às 15:35
Nova peça de Nelson Baskerville sugere, na forma de um jogo teatral denso e imprevisível, que não é suportável viver sem sentido
Por Simone Paz Hernández
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MAIS:
A Vida, de Nelson Baskerville
De (hoje) 2 de junho a 9 de julho
Sextas às 21 | Sábados às 20h | Domingos às 18h
Ingressos: de R$7,50 a R$25,00 (também pela internet)
SESC Santo Amaro – Rua Amador Bueno, 505 (mapa) – São Paulo – Metrô Largo Treze (650m)
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“Poder viver apenas uma vida é como não viver nunca”
Milan Kundera
A experiência inicial, como primeira janela ao espetáculo, é de um cenário velado, coberto por tule branco, como névoa em um sonho. A Vida não se deixa ver de forma nítida, porque a vida é nebulosa desde o nascimento.
A impressão é de que só veremos a vida, numa visão completa e panorâmica, depois que ela acabar. Estando dentro dela tudo é muito confuso, rocambolesco e surreal – e sim, é ela que imita a arte.
Mas a vida só é vida graças a uma sucessão de mortes. Neste ponto, precisamos entender que só seguimos vivendo porque deixamos pedaços de nós morrerem; e que para nossa evolução, é preciso desapegar de faces que não nos pertencem mais. Ao mesmo tempo, refiro-me à peça A Vida, do aclamado diretor Nelson Baskerville (Luis Antônio-Gabriela), que brinca de forma astuta com o necessário exercício do teatro e com a morte de cada cena.
No teatro existem os inevitáveis nascimento e morte, que trazem, a cada encontro com o público, a surpresa, o inesperado. É isto o que torna cada apresentação uma “vida” única, sem repetição e sem registros.
Em A Vida, Baskerville não só utiliza esta condição do teatro a seu favor, como potencializa a experiência por meio de um jogo de probabilidades, a partir de uma roleta composta por várias fases e 27 possíveis cenas, resultando sempre numa peça diferente para o público, por contar com milhares de combinações possíveis. Quase um cortazariano Jogo da Amarelinha nos palcos. Porém, em A Vida o principal ator é o acaso ou a sorte, nenhum mortal possui as rédeas da trama, nem o poder de definir o que virá na sequência. Ao não poderem escolher com precisão qual será a próxima cena, giram a roleta para que a magia continue acontecendo.
A partir dos traumas e dores pessoais de cada ator e do diretor, o texto perambula entre realidade e ficção – nunca saberemos o que é autobiográfico e o que pertence ao plano do delírio – e entre a leveza de sua estética que remete a shows populares de televisão e a cassinos versus o peso das histórias encenadas.
A cada fase, a vida vai ficando mais densa e a carga mais pesada.
Mas o que é o peso, se não o que nos aproxima do verdadeiro? Como bem definiu Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser: “O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é. Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.”
O mundo superficial do espetáculo encontra-se com as angústias mais cotidianas possíveis, e que, por isso mesmo, nos afetam e socam o estômago. A morte de nossas vontades porque ninguém quer ouvir-nos, a morte do desejo e do corpo por causa de uma violação, a morte de um animal, a morte de um ser querido, a morte de um grande amor. Mortes e mais mortes, a cada segundo, compõem o motor que nos impulsiona.
A Vida é uma verdadeira homenagem ao teatro, por escancarar como ele é uma metáfora da existência humana, onde simplesmente entramos em cena, sem saber o que virá. É também uma homenagem à dor e à delícia de viver, é filosofia para encarar cicatrizes na alma como vitórias, afinal de contas, Vinícius de Moraes já cantava: “porque a vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu”.
As referências passam por Nietzsche e Violeta Parra, mas A Vida é, sobretudo, um trabalho raro na cena teatral brasileira, por ir na contramão daquilo que estamos cansados de ver: clássicos reencenados e o trabalho muitas vezes vazio de grupos experimentais. Nelson Baskerville volta aos palcos afiado e vanguardista, e encarnando um Tennessee Williams contemporâneo e brasileiro, ao fazer, novamente, a verdade parecer mentira e a arte nos salvar do terrível.
Felipe Schermann… sucesso a você e a todos da peça. Tentarei estar na estréia hoje! Abraços do Tio Ronaldo!