Drogas: o proibicionismo nos movimentos sociais

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Quem quer transformar o mundo deve reproduzir, em nome da eficácia, o controle sobre os corpos e as ações de disciplinamento praticadas pelo Estado ?

Por Júlio Delmanto

No último dia 15 de outubro, mais de 900 cidades de 82 países atenderam ao chamado proveninente dos “indignados” espanhóis e ocuparam praças e ruas demandando democracia real e o fim da ditadura financeira global. Em São Paulo, um movimento bastante plural se formou e decidiu montar um acampamento no Vale do Anhagabaú, a fim de dialogar com a população e estabelecer articulações internas que resultem em ações pautadas pelos consensos propostos no manifesto do movimento.

De sábado para cá, ao menos cem pessoas têm dormido diariamente debaixo do Viaduto do Chá, suportando chuva, frio e achaques da polícia — que não permite nem que barracas sejam levantadas — para levar suas demandas adiante. O modelo é de assembleia permanente. As decisões apenas são tomadas por consenso e sempre podem ser revogadas. Uma delas, creio que dialoga profundamente com nosso objetivo aqui — o de debater os diferentes aspectos políticos e sociais das “drogas”. Trata-se da proibição do uso de álcool no interior do movimento.

Foi uma decisão polêmica, e ainda carece de novos debates para ser, digamos, “ajustada”, já que o consenso não foi pleno, inclusive por parte deste que os escreve. Mas, a princípio, estabelece que o uso de “drogas” no interior do acampamento (que ainda não é um acampamento por conta do controle quase absoluto que o aparato estatal exerce sobre o cotidiano da cidade) está proibido. Entende-se como drogas, neste caso, o álcool e as substâncias ilícitas, e não a definição medicinal, que afirma: drogas são as substâncias que alteram o funcionamento dos organismos, resultando em mudanças comportamentais ou fisiológicas. Ou seja, partimos já de uma definição problemática do objeto. Maconha, cocaína e crack são drogas, mas também o são álcool, tabaco, medicamentos, café etc.

A proibição consensuada no que diz respeito ao uso de drogas ilícitas é mais facilmente defensável: seu porte e consumo sujeitaria o movimento à ação repressora policial. Isso traria consequências para o projeto político que se tenta implementar. Mas e quanto ao álcool, por exemplo? O que justifica que uma iniciativa de ativismo com fins de transformação social busque legislar sobre e reprimir a priori condutas individuais de seus membros? Por que um movimento social deve agir partindo de mistificações e com as mesmas premissas de disciplinamento e intervenção sobre os corpos com as quais trabalha o Estado a ser combatido?

Um dos argumentos — a meu ver o mais frágil, moralista e contraditório ao movimento em geral — é que poderia ser resumido como o espírito do “sacrifício militante” ou da “sobriedade ativista”. Não podemos estar drogados (música de terror ao fundo). Se queremos mudar o mundo, a droga (esse terrível ente dotado de vida própria) pode corroer nossos acordos e relações, pode nos levar à ruína na qual nunca cairíamos sem um ente externo e maligno.

Outro enfoque é mais consequente, mesmo que ainda questionável, e é trazido principalmente pelas feministas, que dizem que o uso de álcool acirra o comportamento violento masculino, cujo alvo invariavelmente são as mulheres. Assim como em Chiapas, no México, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) proibiu consumo de álcool (o que não quer dizer que ele não ocorra) a partir de uma demanda das mulheres, a defesa é a de que o álcool gera violência, principalmente de gênero.

Drogas, um fetiche

Mais ou menos elaborados, creio que estes dois conjuntos de argumentos esbarram no mesmo equívoco: a fetichização das substâncias alteradoras de consciência, como se seus efeitos não variassem de acordo com seus usos. Assim como uma caneta pode escrever palavras de amor ou ser usada para perfurar uma jugular, uma substância, qualquer que seja, não detém vida própria, podendo servir tanto de veneno como de remédio, como o conceito de farmácon nos lembra.

Da mesma forma como o “combate ao crack” fetichiza a substância e convenientemente obscurece processos sociais muitos mais amplos — ou alguém defende que desaparecendo o crack a vida das populações de rua estaria melhor? —, a responsabilização de uma substância como o álcool como geradora de problemas como a violência de gênero serve apenas para que a questão não seja encarada com a seriedade e a profundidade que necessita, além de ser uma “fórmula mágica” que prima pela coerção e não pela solução dialogada, definida caso a caso, dos problemas concretos.

Certamente, em determinadas conjunturas o uso do álcool em determinadas formas — e novamente é preciso fugir das generalizações, e diferenciar por exemplo cachaça de vinho, cerveja de tequila, cada um tem sua história e cultura de uso — potencializa a violência. Mas é o álcool que a cria? Um homem que se dá o direito de agredir uma mulher quando alcoolizado deixará de submetê-la ao seu entendimento machista e opressor da realidade somente por estar “sóbrio”? Ou eleger o álcool como responsável pelo problema não serve simplesmente para evitar o debate de fundo, que deve questionar por que esse tipo de comportamento existe, mesmo no seio do movimento social?

E mesmo que sim, que fosse comprovada a conexão absoluta entre álcool e violência, a proibição resolve o problema? Não estamos partindo aí da mesma premissa proibicionista, a de que a repressão à oferta extingue a demanda? Uma solução impositiva como essa só tende a jogar o problema para baixo do tapete, uma vez que aquele que quiser realmente fazer uso dessas substâncias pode simplesmente fazê-lo em outros ambientes ou de forma escondida. Ou daremos consequênca a esta decisão e criaremos uma política absoluta de monitoramente e policiamento dos indivíduos?

Assim como é a lei que cria o crime, e a repressão seletiva (já que é impossível que um aparato repressor, por mais amplo que seja, consiga capturar todas as infrações cometidas) a este nunca ataca suas causas nem diminui sua incidência, a mera proibição de uma conduta que se vê como totalmente problemática, mesmo que o seja apenas parcialmente, só ataca os sintomas do problema, não os processos que o geraram. Além disso, novamente procedendo da mesma forma como o direito penal burguês, esta forma de resolução individualiza as condutas ofensivas, vendo nelas apenas responsabilidade individual e não suas determinações sociais.

Prefiro acreditar em uma alternativa que discuta as divergências caso a caso, que coloque os causadores de danos e as vítimas para dialogarem e para refletirem sobre os fatores sociais e coletivos que produziram a desavença. Pode ser mais difícil, assim como é dificílimo decidir tudo por consenso. Mas certamente é mais coerente com um projeto de fato libetário e questionador das premissas capitalistas não só da exploração como da dominação.

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10 comentários para "Drogas: o proibicionismo nos movimentos sociais"

  1. Olá,
    Ainda não havia escrito nesse espaço – e, dessa vez, minha contribuição é muito breve, já que estou tateando e pensando muito ainda sobre o assunto (complexo que só ele).
    No mais, gostaria de parabenizar seriamente ao Júlio pela coragem e excelente tema colocado para a discussão de todos nós.
    Abraços.

  2. Júlio disse:

    Escreve pra mim que trocamos mais ideia, Sá!
    [email protected]
    Um abraço,
    Júlio

  3. disse:

    Amei seu artigo! Trabalho com “compulsão química” equivocadamente chamada de “dependência química”. A minha principal questão quando estudo e leio sobre o assunto é “Seríamos (a humanidade) mais feliz sem as drogas ou o mal-estar (como nos ensinou Freud) está mais ligado a opressão civilizatória?”
    Leio muita porcaria na net sobre esse assunto e pouco tenho encontrado de reflexões sérias sobre esse assunto. Ao meu ver parece que a sociedade se entorpece – com o uso de drogas lícitas, ilícitas e até mesmo com a fuga sobre o debate pautado nas reflexões sobre o modo de produção -, e anestesia-se do horror que é viver o adiamento constante do gozo (como tb já refletiu Marcuse, e eu acrescento, pautando me em Reich, orgasmo irrealizável nesse ordem civilizatória). Pow, adoraria poder diálogar com vc, Julio, sobre esse assunto. Sá

  4. Júlio disse:

    Leila, se você leu o texto com o atenção verá que existe uma pesquisa, de 2005 portanto precisa ser reatualizada, que aponta que quase um quarto (o valor é 22,4%) dos brasileiros adultos ja utilizaram substâncias ilícitas. São todos dependentes? Certamente que não, logo você está confundindo uso com abuso. Defendo o direito ao uso e o tratamento do abuso sendo feito em marcos não repressivos, simples asim, ninguém está defedendo uso a priori (quem não quer usar não usa) nem uso abusivo, que quase sempre é problmetático – mas caso alguem opte por ele o que fazer? O suicídio não é crime.
    Assim como defendo um tratamento para o uso abusivo em marcos que primem pelo respeito aos direitos humanos e a liberdade do indivíduo, acredito que um movimento social deve sim se preocupar com o uso abusivo de substâncias alteraadoras de consciência, como o álcool (e vejamos novamente aqui que uso e abuso não são sinônimos, nem devem ser tratados enquanto tal). Agora essa preocupação deve primar pela construção de novas formas de se lidar com os conflitos, deve primar pelo diálogo, pelo respeito, e não por uma proibição que além de tudo é ineficaz (a pessoa se quiser beber irá beber, permitido ou não).
    Assim como existindo casos de violência ou agressão eu não acredito numa resposta punitiva, penal ou policialesca por parte de um movimento libertário, também não acredito nestas alternativas no caso de problemas (e os problemas precisam ser tratados tambem caso a caso, nao a partir de uma cultura do medo como infelizmente predomina) com substâncias de qualquer ordem.

  5. Xavier disse:

    Nao concordo com este texto:
    Estou contra a proibicao das drogas pela lei
    Mas nô caso de movimentos sociais e principalmente manifestacoes na rua e importante ter a sabedoria de auto-limitar para 2 razoes simples:
    – ter legitimidade . Um manifesto deste deve convicer a massa da classe media. Os politicos que estao contra os manifestos dos indignados sempre vao falar que manifestantes Sao perigosos ou ate terroristas
    – evitar brigas que nô caso do alcool sao obvias, ainda mais nô caso de um contexto de negociacoes coletivas entre manifestantes e de briga contra a policia que nao respeita o direito de manifestar
    E questao de imagem. Temos a liberdade de se auto-limitar
    Em varios paises os indignados entenderam isso e nao aceitam sindicatos, partidos, nem substancias….

  6. Profeta Verde disse:

    seres… humanos, animais, vegetais… minerais e imateriais
    se encontram – inevitavelmente, no colo de mamãe-terra!
    às vezes se amam no prazer, às vezes lutam na angústia,
    mas são sempre irmã(o)s – crias da mesma massa UNIversal
    o encontro não pode ser evitado – muito menos proibido!
    as ações e re(l)ações não podem ser freiadas…
    a Vida continua… na insistência da transformação
    que o espírito da mão-terra, por vias aéreas da santa planta,
    possa penetrar a mente presa e estuprar o estigma deNEGROdor!
    salve a mãe-terra!
    teus filhos e filhas… irmã(o)s!

  7. Lelia Gomes disse:

    Os discursos são necessários, são democráticos, fomentam o debate e este possibilita a formação de opiniões, que geram a criação de políticas públicas, e tantas outras conquistas sociais.
    Agora, uma pergunta que não quer calar após algumas leiturase cenas midiáticas: dentre os levantadores de bandeiras a favor do direito de se usar ou abusar de substâncias psicoativas, quem já teve um ente querido drogado em casa, acabando consigo próprio e com as relações afetivas no círculo familiar? Quem vivenciou a violência doméstica, do menor ao maior desatino, que é a perda da própria vida?
    Tenho certeza, vejam bem, não é discurso, mas convicção íntima nascida da atuação com essa problemática, que o que os usuários comprometidos pelo uso de substâncias psicoativas mais querem não é ter preservado o seu “direito” de usar drogas ou substâncias psicoativas, mas terem o direito de viver de forma diferente do que têm sido a vida deles, depois que entraram na condição de adictos…
    Há referenciais nestas pessoas, da vida sem drogas, subjacentes aos referenciais da vida com drogas, atuantes no íntimo deles quando “sóbrios”, e é a esperança de conseguir vivenciá-los novamente, que possibilita o grito de socorro daqueles que chegaram ao “fundo da fossa”. Esse movimento interno, brotado da certeza íntima de que existe algo melhor e que merece ser vivido tanto por si mesmo, usuário, como por aqueles que contextualizados na mesma problemática sofrida e angustiada, que são os seus familiares, merecem .
    Nesse momento de lucidez, não buscam os discursos políticos ou os públicos, para tentar sair dessa condição de perdas em que se encontram, da dor interna vivenciada com o remorso e a depressão, mas buscam o apoio, a ajuda, a segurança e a tranquilidade de um ambiente limpo, livre das influências danosas a que estavam submetidos e que não propicie conseqências desastrosas em suas vidas. Eles querem voltar ao que tinham antes das drogas, tanto em fatores psicológicos quanto afetivos e familiares, como em fatores sociais. Eles procuram, eles buscam a saída desse mal social que os atingiu e que degrada mais do que a repressão de que se fala…
    De todas as pessoas que atendi até hoje, apenas duas me disseram que gostavam de usar a droga pela droga, mas mesmo assim sabiam que para a vida delas ter mais qualidade e reconquistarem as perdas afetivas, precisavam abrir mão desse prazer. Esse é o grande conflito a ser compreendido e superado pelo adicto. Isto não é fácil, não é um estalar de dedos, não é milagre. É trabalho, é dedicação, é persistência, é determinação e é principalmente, vontade.
    A proposta é que se una o discurso (teoria), e a prática (o fazer) para se chegar a uma atuação política socialmente eficaz, sem demagogias.
    Concluindo, deixo aqui outra pergunta: que direitos defendemos com esses discursos de permissividade ao uso de substâncias psicoativas? Que direitos ficam alienados? Que direitos permanecem inalcançados?
    No meu percurso de existência, sempre ouvi que o direito à vida é o direito primordial, mas atualmente talvez eu precise expandir minhas idéias, acesssar talvez, novas aprendizagens e nesse caso, assumo minha ignorância: onde preservar o direito ao uso indevido de substâncias psicoativas é vida?

  8. Robertinha disse:

    Carara, parabéns Julio, mandou muito bem!
    Todo movimento social, em maior ou menor medida, reproduz a cultura dominante. No caso do machismo, geralmente, é em maior medida. No caso das drogas nem se fala! Tenho certeza, principalmente enquanto feminista, que a violência machista – seja física ou psicológica – seria melhor prevenida e combatida com bons debates sobre o assunto e com propostas afirmativas de combate e coerção a tal pratica – com os bêbados e com os caretas, afinal o machismo é reproduzido por todos.
    No mais, acho um sério erro do movimento combater os estados alterados de consciência, dado que trata disso: quero ver a militância seu cigarro careta. E olha a contradição: nesse mundo onde a regra é o conformismo jovens vão as ruas atendendo ao chamado dos “indignados” espanhóis..parece coisa de doido! A sociedade tb acha coisa de doido. Todos os militantes já foram chamados – por algum amigo do colégio ou familiares – de doidos. Fato, os conservadores não nos entendem! Vão continuar sem entender se estivermos com ou sem cerveja, a diferença é que sem cerveja vai ser mais chato!
    “Os fins não justificam os meios; os meios nos mostram para onde estamos indo” Sei lá quem disse…acho q foi um bêbado!
    Me empolguei..acho que é ainda o efeito das 16h20!
    Beijos
    (não conseguir passar no 15o ainda, a vida ta foda, mas vou tentar passar lá hj…)

  9. Juliana Machado disse:

    Ótimo texto, Julio. É proibido proibir, não só com relação ao uso de substancias quaisquer – o corpo é meu – mas tambem com relação ao aborto, às bandeiras, às sexualidades, às manifestações de diferença sem exceção que, se não cabem no movimento libertário, não caberão em lugar nenhum. É preciso construir um projeto de sociedade desde baixo, nas “pequenas” condutas cotidianas, nas relações afetivas, e inventar novas maneiras de lidar com os conflitos. Já estamos fartos de interdição, sacrifício não faz minha cabeça. Todo o apoio ao #acampasampa, mas “se não posso dançar, não é minha revolução” (E.Goldman). Abraços!

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