Brasil e Paquistão: um ponto de encontro

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Mais que diferenças culturais e religiosas, parecem ser as semelhanças sociais materializadas na pobreza e na corrupção que melhor explicam tanto a violência dos morros cariocas quanto o fundamentalismo das montanhas nas fronteiras do Paquistão

Favela do Rato Molhado é uma comunidade situada na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Swat é um vale e um distrito administrativo na província de Khyber Pakhtunkhwa, na fronteira do Paquistão com o Afeganistão. Apesar da imensa distância (são 17.000 km) e das gritantes diferenças culturais, existe um paralelo concreto entre o que acontece aqui, nas favelas cariocas, e o que acontece lá, nas comunidades pobres da fronteira afe-paqui[1]: no Rio, vemos crescer o poder das milícias e dos traficantes de drogas, disputando influência nas áreas desprezadas pelas elites e pela Administração Pública; em Khyber Pakhtunkhwa, pelas mesmas razões, é cada vez maior o poder dos talibãs e outros grupos fundamentalistas.

Recentemente, num artigo publicado pelo jornal paquistanês Dawn, Zubair Torwali, um ativista e defensor dos direitos humanos, baseado em Swat, reportou a seguinte fala de um morador da região: “Após ser humilhado e saqueado pelos tribunais, oficiais da fazenda pública e pela polícia, acaba-se desejando que o Talibã retorne”. Com a retirada dos talibãs pelos exércitos nacionais e estrangeiros, as sociedades não conseguiram se reorganizar. Tampouco implementaram-se políticas públicas para promover o desenvolvimento da região e melhorar a vida das pessoas. Pelo contrário, o que se viu foram policiais corruptos e oficiais do governo substituindo os talibãs na exploração da população, sem, no entanto, oferecer as contrapartidas que os fundamentalistas eventualmente ofereciam às comunidades.

Isso repercute inclusive no recrutamento de jovens pelo Talibã. Torwali prossegue: “Nossa observação é que as injustiças sociais, o mau governo e a corrupção por parte da Justiça, dos policiais e de outros departamentos, proveram espaço para o Talibã acelerar seu movimento, atraindo jovens homens ignorantes e com raiva”.

Em outro artigo, este versando sobre a realidade das favelas brasileiras, o delegado da Polícia Federal Antonio Rayol esclarece a situação nos morros cariocas, sob um ponto de vista análogo ao apresentado pelo ativista paquistanês: “Em algumas comunidades, os traficantes substituem o poder público até mesmo promovendo um tipo de assistencialismo que consiste em financiar compras de remédios e até funerais para alguns moradores. Mas não é uma benemerência desinteressada e costuma esconder um alto preço a ser pago pelos moradores das favelas”.

Em entrevista publicada em 2005, no site da fundação Dreams Can Be, o antropólogo Luís Eduardo Soares, um dos maiores especialistas em conflitos urbanos na América do Sul e um dos autores do livro Cabeça de Porco [2], já se posicionava: “Meninos pobres, frequentemente negros, são recrutados pelo tráfico cada vez mais jovens. Nesse processo, que não controlam e mal conhecem, primeiro eles são vítimas; depois, provisoriamente, ocupam a posição de algozes; e finalmente voltam a ser vítimas, acabando os seus dias de forma precoce e cruel, antes dos 25 anos. As polícias, salvo honrosas exceções, são parte do problema e não da solução, por sua brutalidade arbitrária, pelo grau de corrupção que as degrada, por seu despreparo e sua incapacidade de zelar pelo cumprimento das leis”.

Soares defende que “temos de oferecer aos jovens pelo menos o mesmo que o tráfico oferece, com sinal invertido, claro: recursos materiais, sem dúvida, mas também reconhecimento, acolhimento e valorização. Afinal, há uma fome mais funda e radical que a fome física: a fome de afeto, reconhecimento e valorização, elementos que alimentam a autoestima e põem de pé um sujeito verdadeiramente apto a agir”.

Mais iguais que diferentes

O Rio de Janeiro é Brasil, é do sol, da praia, do futebol. O Rio de Janeiro é católico do Cristo Redentor e do Carnaval pagão. O Rio de Janeiro é das mulheres de biquíni nas praias, e das mulheres que trabalham pra se sustentar e sustentar suas famílias. O Rio de Janeiro é, também, do tráfico de drogas e do crime.

Khyber Pakhtunkhwa é afe-paqui, do sol, das montanhas, do críquete. Khyber Pakhtunkhwa é muçulmana das Mesquitas e da Banr Street [3]. Khyber Pakhtunkhwa é das mulheres de burqas negras e azuis e de shalwar kameezes coloridas, das mulheres que cuidam de suas casas e de seus filhos. Khyber Pakhtunkhwa é, também, do talibã e solo fértil para o fundamentalismo.

Favela do Rato Molhado, no Rio de Janeiro, e Swat, em Khyber Pakhtunkhwa, têm suas peculiaridades, mas as suas intersecções passam pela situação de miséria moral e material em que vivem suas comunidades. A mídia e os governos ocidentais têm ressaltado as diferenças entre o mundo daqui e o de lá, mas têm sido displicentes em relação a questões importantes que unem todas as gentes. Religião e cultura não são causas reais de problemas; miséria, ignorância e corrupção, sim.

A reflexão faz cair por terra os preconceitos existentes em relação a diferenças culturais, religiosas e geográficas, já que pode ser aplicada, mutatis mutandis, a todas as situações em todos os lugares do mundo onde a criminalidade, as paixões destrutivas e o fundamentalismo florescem em razão do vácuo de um poder democrático real que permita a educação e a nutrição de sociedades justas e igualitárias.

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[1] Afe-paqui é o termo que vem sendo utilizado pelos Governos e pela mídia para designar a região da fronteira entre Paquistão e Afeganistão

[2] Cabeça de Porco é um livro sobre violência e juventude, escrito por Luiz Eduardo Soares em parceria com MV Bill e Celso Athayde, rapper e empresário do hip-hop.

[3]  Banr Street é uma famosa rua no Vale do Swat famosa por seus artistas — cantores, músicos e dançarinos.

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6 comentários para "Brasil e Paquistão: um ponto de encontro"

  1. João Bôsco disse:

    Apesar de serem culturas e regimes diferentes, essa analogia detalhou bem a situação desses dois ambientes.

  2. BOA TARDE
    Sempre estou lendo sobre culturas diferentes
    Mais não tinha lido ainda uma comparação tão próxima
    As vezes vejo fotos de pessoas tanto do Paquistão como daqui das favelas
    E fixo sempre no olhar
    Aqui como lá
    O olhar é sempre profundo e triste
    As vezes o sorriso não condiz com o olhar
    Mesmo assim !Eu gostaria muito de conhecer o POVO paquistanês desse lado triste entre outros …

  3. Jose Neumar disse:

    Muito interessante a analise feita pelo artigo. Aprofundou um pouco, ao contrário do que aparece na mídia, de um modo geral.
    Entretanto, falta ir mais a fundo. O sistema capitalista, apesar de todo o seu dinamismo e capacidade de vencer as crisis, não é capaz de resolver, e nem será, os problemas apontados – miséria, ignorância e corrupção. Tudo isso são efeitos de sua essência.

  4. Simone Alexal disse:

    Parabéns. Muito boa a analogia. Interessante perceber como em países geograficamente e culturalmente tão diferentes, o descaso pode gerar ambientes e condições tão similares e tristes.

  5. Maria Aparecida da Silva disse:

    Penso que artigos desta natureza precisam ser divulgados por todos os meios. Texto de linguagem clara e concisa. Paralelos que não são comparações, pois afinal, não se pode comparar, mas evidenciar as causas comuns do que ocorre em um País e em Outro. Vou divulgar ao máximo. Grata pela produção. Votos de que este blog coletivo seja o começo de outros empreendimentos coletivos.

  6. Pablo disse:

    Parabéns pela analogia!
    Fazia tempo que não lia algo simples e completo. Vou usar com meus alunos.
    um abraço
    Pablo

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