Socialismo, utopia inviável? (1)

Há cem anos, Mises e Hayek desafiaram o sistema proposto por Marx: seria ineficiente e autoritário. Escola Austríaca defendia a desigualdade, mas previu impasses que bloquearam o socialismo. Agora, surgiram meios para superá-los

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Parte I — Mises: o socialismo como impossibilidade prática

PRÓXIMOS CAPÍTULOS:

Parte II:
Hayek: a apologia da competição e rivalidade permanentes

Parte III:
Morozov: o Big Data e a chance de planejamento democrático

No primeiro capítulo de O capital, Karl Marx delineou os principais traços do socialismo que adviria com o desenvolvimento do capitalismo: “o processo da produção material apenas se desprenderá de seu místico véu nebuloso místico” – disse ele –, quando, como produto de homens livremente associados, ele for planejado, ficando assim sob o seu controle consciente”.1

Como se sabe, em outubro de 1917, ocorre a primeira revolução socialista que não é logo derrotada e que tinha, supostamente, a tarefa de realizar aquilo que havia sido previsto, em grandes traços, pelo fundador da tradição marxista. A sociedade a ser construída deveria combinar a livre associação dos seres humanos – isto é, alguma forma de democracia socialista – com o planejamento do sistema econômico como um todo. Mas, como se sabe, essa revolução acabou criando apenas uma sociedade muito autoritária que não deixou de ser totalitária em certos momentos. Eis que ela durou um pouco mais do que setenta anos.

Em 1990, o economista russo Yuri N. Maltsev, numa reapresentação do artigo O cálculo econômico numa nação socialista,2 de Ludwig von Mises, escrito em 1920, anotou:

O vigésimo século testemunhou o começo, o desenvolvimento e o fim do experimento mais trágico da história humana: o socialismo. O experimento resultou em tremendas perdas humanas, na destruição de economias potencialmente ricas e em desastres ecológicos colossais. O experimento acabou, mas a devastação afetará as vidas e a saúde das gerações futuras. A tragédia real é que Mises e seus seguidores (…) haviam exposto a verdade sobre o socialismo em 1920 – mas os seus avisos foram ignorados.3

Maltsev fala assim como um economista da corrente austríaca que, escrevendo no momento do colapso final do sistema soviético, mostra-se incapaz de uma avaliação equilibrada desse evolver histórico. De qualquer modo, ele exalta o artigo de Mises pois este autor, em sua opinião, mostrara logo no início do processo revolucionário em curso na Rússia, no fim da segunda década do século XX, que o socialismo era um projeto utópico, ilógico e que ele não poderia funcionar virtuosamente.

Essa nota pretende examinar os argumentos desse economista austríaco, tão venerado por muitos neoliberais, com a devida atenção. Mas, antes disso, julga-se aqui que é preciso avaliar também, brevemente, o “experimento” capitalismo em perspectiva história, ainda que este não tenha chegado ainda ao fim. Franco ‘Bifo’ Berardi, em seu livro Futurabilidade – A idade da impotência e o horizonte das possibilidades,4 anotou o seguinte sobre “essa tragédia da civilização humana” cujas consequências ainda se desenvolvem sob os nossos olhos aturdidos:No curto prazo, a queda do projeto comunista provocou um colapso global do tardio sistema de bem-estar social, mas também, do ponto de vista da evolução futura, abriu as portas para uma onda de barbarismo que está colocando em risco a própria humanidade moderna. As consequências de curto prazo são fáceis de identificar: a classe trabalhadora não despareceu depois da derrota; longe disso, o exército industrial se expandiu pelo mundo. (…) Mas enquanto tal, ela perdeu assim a sua força política, arrancaram-lhe todas as ferramentas de autodefesa; eis que está agora composta por trabalhadores precários, incapazes de formar uma comunidade solidária, jogados num processo continuo de desterritorialização.5

Bem, a história da sociedade moderna não é um passeio pelo céu, mas um desenrolar entre ele e o inferno que também fica na terra mesmo. Caminhando agora em direção ao campo teórico, é preciso então perguntar: qual o argumento central de Mises nesse artigo famoso?

Veja-se, de início, que produção capitalista se baseia na propriedade privada, na busca do lucro pelos proprietários privados e na coordenação descentralizada – algo anárquica – promovida pelos mercados. Mas essa última resolve, sim, um problema difícil. Pois, uma economia moderna comporta vários milhões de pessoas, produz milhões de produtos diferentes entre si, por meio de centenas de milhares de empreendimentos localizados perto ou longe uns dos outros; em consequência, requer para funcionar muitos bilhões de decisões pontuais relacionadas ao emprego de trabalhadores, fixação dos salários, compras de matérias primas e auxiliares, aquisição de máquinas, fixação do nível da produção para o próximo período, transporte, estocagem etc.

E, como se sabe, essa coordenação, mesmo estando longe de ser perfeita, funciona. Mas, para ser justo, não funciona suavemente; ao contrário, é bem turbulenta. Depende crucialmente dos preços de mercado e estes da existência do dinheiro – que aparece simplesmente para os investigadores superficiais como um mero instrumento da circulação mercantil. Ora, esse sistema funciona, segundo Mises, porque oferece uma base objetiva para o cálculo econômico, o qual visa, em última análise, permitir a alocação de recursos de um modo eficiente, obter mais produtos e distribui-los para os indivíduos e as famílias. É assim que ele pensa e é nessa perspectiva que julga o sistema alternativo.

Já o sistema socialista,6 assevera, pretende substituir esses bilhões de decisões circunstanciais e descentralizadas por um sistema centralizado de decisão. Esse sistema funda-se no planejamento econômico e quer ser considerado sobretudo como “racional”. Pois vem à existência justamente para superar a anarquia do mercado. Ora, Mises contradita essa pretensão, argumentando que os planejadores, mesmo se dotados das técnicas mais sofisticadas, não serão capazes de fazer os cálculos adequados e suficientes para realizar a tarefa de coordenar centralizadamente o sistema econômico. Ao contrário, julga que eles necessariamente produzirão algo muito irracional.

É assim que um seu fervoroso seguidor sintetiza a sua tese principal:

Ludwig von Mises demonstra, de uma vez por todas, que, sob o planejamento central socialista, não é possível o cálculo econômico e que, portanto, a economia socialista é impossível – não apenas ineficiente ou menos inovadora (…) mas realmente, verdadeiramente e literalmente impossível.7

Como esse seguidor chega a essa conclusão tão definitiva e que soa como uma recitação provinda de uma dogmática religiosa? Ora, o autor que ele sintetiza dedicou a sua vida à defesa ardorosa da propriedade privada e da “economia de mercado”. Foi, também, um daqueles economistas liberais que depois do fim da II Guerra Mundial participou da Sociedade Mont Pèlerin e contribuiu para o advento do neoliberalismo.

No texto que aqui se examina, ele reflete em primeiro lugar sobre a distribuição dos bens numa nação socialista tendo sempre em mente como esta ocorre numa economia capitalista. Os meios de produção, diz, figuram agora como propriedade comunitária. Logo, de algum modo, é essa entidade que decide como repartir a produção realizada. A produção enquanto tal, em qualquer de suas partes possíveis ou no todo, não pertence a ninguém em particular, mas, ao contrário, pertence à comunidade como um todo. Assim, a questão de decidir o que cada um vai consumir se torna um “problema difícil” que não pode ser mais decidido descentralizadamente. E, ademais, que precisa ser resolvido conscientemente.

É importante lembrar aqui que a propriedade privada dos meios de produção (mas não dos bens pessoais e familiares) é abolida com o advento do socialismo. Com ela, assim, desaparece também aquele critério baseado na relação de pertencimento: o produto pode ter um ou mais produtores, mas apenas um dono (individual ou coletivo). Em consequência, agora, será preciso definir um critério para alcançar um determinado objetivo distributivo; por exemplo, a cada um segundo o seu esforço. Pouco importa, no entanto, a regra escolhida para alcançar o objetivo colimado. O problema que fica vem a ser como traduzir esse critério num fato objetivo, isto é, numa repartição efetiva do produto social. É preciso lembrar aqui que as necessidades das pessoas são muito diferentes entre si e que os bens e serviços contam-se aos milhões. Logo, para proceder a repartição é preciso um sistema de avaliação e este, agora, não pode mais contar como os preços formados nos mercados…

Em primeiro lugar, Mises analisa a possibilidade de o cálculo socialista ser feito in natura, isto é, sem a intervenção de uma moeda. Considera, então, que este método pode funcionar em economias bem simples, mas que falharia no caso de econômicas muito complexas como as modernas. Assume ainda que poderia ser usado eventualmente na distribuição de bens finais, mas que não seria capaz de abarcar os bens de produção. As decisões de investimento requerem uma análise de custo e de benefício que só pode ser feita usando o dinheiro. Assim sendo, uma completa impossibilidade de comensurar em dinheiro “exclui a racionalidade econômica”. Mais do que isso, “sem cálculo econômico não há economia. Assim, num Estado socialista, o cálculo econômico se torna impossível; nele não pode mesmo existir – conforme nosso sentido do termo – uma economia”.8

Diante dessa consideração e supondo que o sistema de planejamento econômico centralizado possa criar algum tipo de moeda, Mises chega à seguinte conclusão:

Além disso, justamente porque os bens produzidos nunca serão objeto de troca, será impossível determinar o seu valor monetário. A moeda, assim, não pode cumprir num Estado socialista o papel que cumpre numa sociedade competitiva na determinação do valor dos bens. Os cálculos em termos de dinheiro serão impossíveis.9

Aqui, para bem compreender o seu argumento, será necessário notar que Mises pensa na perspectiva de uma teoria subjetiva do valor. Ele considera que as pessoas em geral são capazes de fazer julgamento de valor sobre os bens que lhes interessam e que se mostram capazes de lhes suprir alguma necessidade. Mas elas não estão isoladas umas das outras, pois pertencem a uma sociedade baseada numa complexa rede de produção e distribuição. Aí é preciso avaliar não apenas os bens finais, mas também os intermediários e os duráveis. Ademais, a valoração pessoal, segundo ele, não se traduz numa medida já que o valor de uso subjetivo, isto é, a utilidade10, não pode funcionar como uma medida; na verdade, ainda segundo ele, a utilidade apenas pode estabelecer graus e escalas de preferências estritamente individuais e incomensuráveis entre si.

Somente as trocas objetivas de mercadorias, segundo ele, fazem existir de fato uma medida, baseada por sua vez numa unidade determinada (marco, por exemplo), que permite o cálculo econômico de forma generalizada. É por meio dessa medida que as valorações subjetivas individuais se manifestam; elas não aparecem por si mesmas, mas por meio de um fenômeno produzido coletiva e interativamente, isto é, pelo valor de troca medido em dinheiro.

E aqui é preciso notar uma anomalia em sua concepção de dinheiro que advém de sua teoria do valor. Os valores de troca são estabelecidos nos mercados, objetivamente, mas os valores enquanto tais são subjetivos e individuais. Segundo ele, estes últimos apenas se tornam comparáveis como “valores de troca, emergindo da interação das valorações subjetivas que participam da troca”.11 Em consequência, ele tem de dizer que a “moeda e, assim, o preço, não é uma expressão do valor. O valor não é medido em moeda, nem em preço. Ela [isto é, a moeda] consiste meramente em moeda”! 12

A moeda é, pois, uma medida que nada mede intrinsecamente e que está – menciona – em constante alteração, estando mesmo sujeita a violentas flutuações. Ademais, ela não serve para avaliar a beleza, a saúde, a honra e o orgulho, ainda que nada impeça o homem em geral de pagar por tais valores ditos superiores. Segundo Mises, o cálculo monetário ganha o seu sentido próprio no interior do sistema econômico enquanto tal. Ele se aplica de modo estrito somente aos bens e serviços transacionáveis. Nesses limites – observa –, é absolutamente necessário: “o cálculo monetário preenche todos os requisitos do cálculo econômico”. De fato, ele considera o dinheiro já sempre na circulação mercantil e o define, então, mediante uma repetição, como “meio de troca universalmente utilizado”.13 Ao mesmo tempo, é evidente que considera o dinheiro como um redutor da complexidade interna ao sistema econômico.

Porém, não existiria alguma outra forma de repartir bens e serviços como riqueza material entre os cidadãos de uma nação? Não existiria uma outra forma de comensurar bens e serviços, sejam eles destinados ao consumo, ao uso como matéria prima ou mesmo como meio de produção durável?

Uma ideia possível seria considerar a possibilidade de montar um imenso modelo de equilíbrio geral por meio do qual o sistema de planejamento central determinaria os preços de todos os bens e serviços. Mises considera essa possibilidade como plausível apenas no plano conceitual. Eis que essa técnica é inerentemente estática e, por isso, seria inaplicável no mundo real, já que aí os resultados econômicos estão em perpétua mudança.14 Daí ele conclui: “numa nação socialista, cada mudança econômica se tornaria um evento cujo sucesso não poderia ser avaliado nem antes, isto é, com antecedência, nem depois, retrospectivamente. Haveria apenas um tatear no escuro. O socialismo é a abolição da economia racional”.15

Mises considera também a possibilidade de empregar o valor trabalho no cálculo socialista, ou seja, como forma de comensurar bens e serviços em geral. Nesta aplicação, obviamente, o valor não poderia aparecer como tempo de trabalho abstrato, mas como resultado mediato dos tempos de trabalho concretos que são mensuráveis empiricamente. Como tempo de trabalho socialmente necessário para produzir bens determinados ele teria de aparecer, ademais, como tempo de trabalho médio de conjuntos de trabalhadores. De qualquer modo, ele vê duas dificuldades nesse desiderato: como levar em conta os “fatores materiais da produção” no custo em trabalho do produto acabado e, principalmente, como “ignorar as diferentes qualidades do trabalho”?16

Mises, tal como muitos marxistas antigos, não compreendeu bem a teoria do valor de Marx e, por isso, confundiu trabalho abstrato como gasto fisiológico de energia humana: “para Marx” – eis o que diz – “todo trabalho humano tem a mesma natureza econômica, é sempre gasto produtivo de cérebro, força muscular, nervos e mãos”.17 Ora, esse gasto ocorre sempre, obviamente, de uma forma concreta qualitativa e quantitativamente diferenciada; o dispêndio concreto de energia humana é, no entanto – como se sabe –, apenas a base de uma redução abstrativa feita pelo processo social, um processo “cego” que põe a existir o trabalho abstrato, ou seja, um fantasma social real.18 Em consequência desse erro, ele considera, junto com Böhm-Bawerk, a famosa proposição de Marx sobre a redução do trabalho complexo ao trabalho simples que aparece no primeiro capítulo de O capital como “um malabarismo teórico de ingenuidade quase entorpecente”.

A teoria do valor válida no capitalismo, um sistema dominado pela reificação das relações sociais e, assim, pelo fetichismo da mercadoria, tem pouco a ver com um possível uso do tempo de trabalho como forma de criar uma medida do produto social em geral num sistema socialista. Ambas têm em comum que o tempo de trabalho interessa ao homem em todos os modos de produção. Numa economia socialista, esse uso só pode se dar – ao contrário do que ocorre no capitalismo – por meio de uma de uma convenção estabelecida de modo consciente.19

Se for do interesse social, pode ficar convencionado, por exemplo, que o trabalho de um engenheiro vale tanto quanto o trabalho de dois pedreiros para fins do cálculo econômico que quantifica o valor de determinado produto gerado no setor da construção civil. E esse interesse não precisa levar em conta nem única nem necessariamente a escassez relativa dos tipos de trabalho em consideração. Pode considerar relevante, por exemplo, instituir uma repartição igualitária do produto social. É claro que uma contabilidade específica teria de ser criada e ela se faria necessariamente com base numa medida geral de riqueza material. E esta última só se realizaria mediante o uso de “senhas”20 representativas de tempo de trabalho.

Em consequência, ao contrário do que pensa Mises, não há nada de errado com no seguinte trecho do Anti-Düring de Friedrich Engels. Ademais a contabilidade em horas de trabalho dispendida na produção é algo bem comum na própria produção capitalista, ainda que apenas no interior das empresas. Não há, por isso, um óbice para que seja empregada socialmente.

Tão logo a sociedade toma posse dos meios de produção e os aplica à produção em sua forma diretamente socializada, o trabalho de cada indivíduo, por mais diferente que seja sua utilidade específica, torna-se a priori trabalho diretamente social. A quantidade de trabalho social investida em um produto não precisa ser estabelecida indiretamente; a experiência diária imediatamente nos diz o quanto é necessário, em média. A sociedade pode simplesmente calcular quantas horas de trabalho são investidas em uma máquina a vapor, um quarto do trigo da última safra e 100 jardas de linho de determinada qualidade… É claro que a sociedade também terá que saber quanto trabalho é necessário para produzir qualquer bem de consumo. Terá de organizar o seu plano de produção considerando a necessidade dos meios de produção e quanto de trabalho eles requerem. A utilidade gerada pelos vários bens de consumo, ponderados uns em relação aos outros e em relação à quantidade de trabalho necessário para produzi-los, acabará determinando o plano. As pessoas tornarão tudo simples sem a mediação do notório “valor”.21

Não há dúvida que há nesse texto de Engels um bocado de ingenuidade. Eis que ele tem uma boa intuição, mas lhe falta qualquer experiência histórica sobre como organizar a produção socialista. Sabe, no entanto, que o seu planejamento requer um cálculo fundado numa medida constituída por meio de uma convenção; por meio dela é feita a redução do trabalho concreto ao trabalho abstrato (não cegamente, portanto).22 Essa medida, portanto, deve estar baseada no tempo de trabalho concretamente gasto para produzir os mais diversos bens e serviços em geral. É evidente que ele minimiza a dificuldade para criar e aplicar essa forma de medida, com maior ou menor imperfeição. Entretanto, apesar disso, a constatação aqui exposta mostra que a tese principal de Mises está em princípio errada. É pelo menos possível fazer cálculo econômico sem dispor de propriedade privada, dinheiro e mercados. O socialismo não pode, portanto, ser dito irracional em princípio.

Ademais, o planejamento centralizado, mesmo se nunca deixou de ser ineficiente e ineficaz, além de ser também ditatorial, existiu de fato na antiga União Soviética. E isto, pensando agora de uma perspectiva contemporânea, parece ser uma prova de que o argumento de Mises, ao fim e ao cabo, está incorreto já que ele afirma peremptoriamente a impossibilidade do cálculo socialista. Os misesianos, baseados no próprio Mises, não concordam. Diante dessa evidência histórica irrefutável, os seus seguidores lançam um argumento final que também não parece correto; ao contrário, afigura-se bem apelativo: “apesar de suas ineficiências” – diz, por exemplo, Salermo –, “essas economias conseguiram de fato manter existências precárias como parasitas do processo social de avaliação e da estrutura integrada de capital produzida no mundo [não socialista] que as cercavam, isto é, no mercado mundial”.23

A controvérsia do cálculo socialista tem um século de existência e está enredada numa discussão que envolve vários outros autores e muitos artigos e livros. Aqui não se pretende apresentar a sua história24, mas apenas tentar selecionar os melhores argumentos contra o socialismo para ver se eles ficam de pé. A conclusão do autor desta nota considera que o arrazoado de Mises, apesar de ter trazido pontos importantes para o debate que se seguiu à publicação de seu artigo, não põe um ponto final na questão do cálculo socialista, tal como ele pretendeu que tivesse posto. Ele não demonstrou a impossibilidade desse cálculo, ainda que tenha apontado para a sua dificuldade intrínseca.

Mas por que Mises falha? A razão advém de um raciocínio de simplicidade escandalosa. Ele pensa o mercado com base na teoria subjetiva do valor; esta prevê que os indivíduos buscam a máxima “utilidade” fazendo escolhas, as quais sempre enfrentam uma escassez de bens e de recursos para produzi-los. A escassez é, de modo característico, entendida meramente como uma restrição externa e natural. Trabalha, pois, com base em uma teoria metodologicamente individualista que nasceu para explicar os preços de mercado, de uma maneira diferente daquela gerada pela Economia Política Clássica. Como o socialismo quer se valer do planejamento e quer suprimir a forma mercadoria e, assim, os mercados, Mises chega à conclusão que o socialismo é impossível porque deixa de contar com os preços de mercado.

Ora, a teoria do socialismo adotara há muito a teoria clássica dos preços naturais e de mercado como base de reflexão, não sem antes criticar as suas insuficiências. Dessa perspectiva, como a utilidade dos bens e serviços são incomensuráveis entre si, a teoria do valor defendida por Mises, assim como o miolo de sua crítica ao cálculo socialista, deve ser considerada errada. De qualquer modo, apesar da fraqueza teórica de sua argumentação, esse autor abriu um debate necessário que ainda não foi bem resolvido, mesmo depois de um século. Mérito dele.

1 Marx, Karl – O capital – Crítica da economia política. Vol. I do Livro Primeiro. Abril Cultural, 1983, p. 76.

2 Mises, Ludwig von – Economic calculation in the socialist commonwealth. Mises Institute, 1990.

3 Maltsev, Yuri N. – Prefácio ao artigo antes citado de Ludwig von Mises, op. cit., p. vii.

4 Berardi, Fraco ‘Bifo’ – Futurability – The age of impotence and the horizon of possibility. Verso, 2019.

5 Op. cit., p. 46-47.

6 Mises define o socialismo como um sistema em que os meios de produção são controlados em exclusivo por uma comunidade organizada (Mises, op. cit., p.1)

7 Salermo, Joseph – Why a socialist economy is “impossible”. Mises Institute, 1990. Pós-escrito ao artigo anteriormente citado de Ludwig von Mises.

8 Idem, p. 18.

9 Op. cit., p. 4.

10 “Utilidade” aqui se refere à noção neoclássica ou austríaca que extrapola a noção comum de utilidade, pois pressupõe que a utilidade da banana, da laranja etc. são comensuráveis entre si, o que, evidentemente, é absurdo.

11 Op. cit., p. 10.

12 Idem, p. 11.

13 Idem, p. 11.

14 Implicitamente, há duas questões implicadas no uso dessa técnica: a) o tempo de computação do “modelo”; b) o tempo de validade de um determinado plano de produção e de distribuição.

15 Op. cit., p. 23.

16 Idem, p. 25. As coisas concretas nunca são perfeitamente homogêneas em quaisquer de suas dimensões. A área plana, por exemplo, só é homogênea na geometria; as áreas reais, quando a noção se aplica, são sempre mais ou menos planas. Mesmo assim, essas últimas podem ser medidas. A objeção de Mises devém de um erro conceitual que comente.

17 Idem, p. 28.

18 Como se sabe, para Marx, o capitalismo é um sistema social metafísico que ilude a ciência positiva.

19 Não se pode, entretanto, ser ingênuo aqui. Como isso poderia ser feito respeitando o caráter democrático de um socialismo digno desse nome?

20 E esse tipo de senha de valor não pode ser confundida com o dinheiro que circula no modo de produção capitalista.

21 Apud Mises, L. von – op.cit., p. 26.

22 Uma medida, note-se, depende sempre de uma abstração, ou melhor, de uma redução abstrativa.

23 Salermo, J. – op. cit., pag. 55.

24 Ver Barbieri, Fábio – História do Debate do cálculo econômico socialista. LVM Editora, 2013.

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6 comentários para "Socialismo, utopia inviável? (1)"

  1. Dante disse:

    Gostei disso, poderíamos montar um lab de algoritmos, deveriam ter teses para desenvolver essa reflexão.

    Penso que há fatores para ponderar também, como:
    1- Uso que a pessoa faz de bens públicos de serviços complementar: restaurantes, espaços culturais, etc
    2- Proximidade do trabalho socialmente necessário à residência
    3- Situação atual (atualizável a todo momento) de necessidade social do trabalho específico
    4- Categorização de trabalhos

  2. Rui disse:

    “Quem vai decidir o que vale mais o trabalho de um engenheiro ou dois pedreiros?”
    Não foi tocado no assunto, mas uma proposição seria que o valor do trabalho fosse proporcional ao tempo de estudo necessário para adquirir tal aptidão e também proporcional à experiência da pessoa naquela função. Assim poderia se quantificar melhor a hora-dinheiro de cada pessoa.

    Essa fórmula de valor de trabalho seria uma convenção, mas inventei uma agora para ilustrar:
    Anos de Estudo (aE)
    Fundamental 8
    Médio 3
    Superior 5

    Fator de Anos de Estudo (FaE)
    FaE = aE/8 (limitado a maior ou igual a 1)

    Anos de Experiência (aXP)
    Júnior 5
    Pleno 15
    Sênior >15

    Fator de Anos de Experiência (FaXP)
    FaXP = aXP/5 (limitado a maior ou igual a 1)

    Fórmula de cálculo para a Hora Dinheiro (HD)
    HD = hh * FaE * FaXP
    onde:
    hh = Homem Hora (tempo de relógio para realização da atividade)

    Assim teríamos que um HD de pedreiro com 10 anos na função, cuja função é necessário ensino fundamental, valeria
    HD = hh * 8/8 * 10/5 :: HD = 2 * hh

    Já o engenheiro iniciante
    HD = hh * 16/8 * 2/5 :: HD = 2 * hh

    Desta forma os dois seriam recompensados igualmente, da mesma forma que seria realizado com o dinheiro. Claro que um não faz o trabalho do outro, mas com o salário em dinheiro também ocorre o mesmo problema.

  3. O Minhocário disse:

    Boa tarde, professor Eleutério Prado, tudo bem?

    Ótimo artigo de crítica às posições de Mises, muito obrigado por nos oferecer essa contribuição a um debate tão necessário!

    O senhor conhece as críticas que Cockshott e Cottrell escreveram sobre as posições de Mises e Hayek nesse debate?
    São dois artigos muito bons, que tivemos o prazer de traduzir para o português. Vou deixar os links aqui abaixo:

    https://ominhocario.wordpress.com/2019/04/19/de-volta-ao-debate-sobre-o-calculo-socialista-calculo-complexidade-e-planejamento/ (Relato sobre as duas visões sobre o debate e crítica às visões de Mises e de Lange);

    https://ominhocario.wordpress.com/2019/05/09/de-volta-ao-debate-sobre-o-planejamento-socialista-ii-precos-informacao-comunicacao-e-eficiencia/ (Crítica às posições de Hayek e seus seguidores, como Don Lavoie)

    Um fraterno abraço!

  4. Giovanni de Freitas Lima Dalvi disse:

    Amigo, você não entendeu o livro do Mises.
    Quando o autor quer dizer econômia racional é exatamente a racionalidade econômica. Vou usar uma analogia. O que seria a racionalidade econômica numa empresa? Seria diminuir custos, maior eficiência econômica. O mercado oferece racionalidade econômica a partir das escolhas subjetivas de cada uma das pessoas que se tornam uma escolha objetiva da sociedade. Mises não diz que o cálculo econômico sob o socialismo é impossível. Veja o exemplo do cigarros e charutos. Só que esse seria extremamente ineficiente. Sabe o por quê ? Exatamente por se basear em valores que o conjunto social convencionou. A pergunta é como isso é feito. Eu respondo. Alguns funcionários públicos sentados a mesa discutindo baseando-se em dados que são muito menos poderosos que o mercado. É completamente impossível retirar todas as informações perguntando a todas as pessoas. Porque há perguntas que são do tipo: qual trabalho vale mais de um físico ou de um químico ? O que afinal é o interesse social. Você não é ingênuo de dizer que vai perguntar a todo mundo. Ademais você disse que o socialismo nasce da convenção social. Quantas pessoas não foram fusiladas por socialistas? Nunca se há convenção sobre nada na sociedade isso é um fato. Já o capitalismo não. Há convenção entre o patrão e o empregado. Só mais uma coisa. Quem vai decidir o que vale mais o trabalho de um engenheiro ou dois pedreiros?

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