O som e a náusea – a face sonora do fascismo brasileiro, março de 2016

munch

“O Grito” (Edvard Munch, 1893)

E não é que agora os golpistas querem ganhar na buzina? Não somente na panela reativa, mas no barulho, no ruído militante, desestabilizador, enlouquecedor?

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

E não é que agora querem ganhar na buzina? Não somente na panela reativa, mas no barulho, no ruído militante? (Enquanto um juiz vaza outros sons; vaza o áudio da presidente da República e a imprensa faz de conta que tudo se passa em termos republicanos.)

Eu andava no bairro de Perdizes, em São Paulo, quando comecei a escutar as buzinas. Estava calmo e fui ficando cada vez mais irritado – como fico quando os motoqueiros estão com os dedos na buzina particularmente irrequietos. E fiquei pensando nos sons da minha vida.

Sons repletos de silêncios. Sons com pausas. Como o som do coração da minha filha, na primeira vez em que eu o ouvi. Sons com ritmo, com melodia. Eu com 15 anos trancado no quarto, tentando ouvir cada nuance de um disco do Genesis, o “Selling England by the Pound”.

Não essas marretas, essas britadeiras, esses alarmes ensandecidos, esse assassinato da atonalidade (o mundo tonal terá sido aniquilado há tempos por esses fascistas), esse mal estar da civilização sonora, esses ruídos do demônio. Quem dera o inferno fosse composto apenas por fogo: “Senhor satanás, queime-me; mas me queime baixinho, sim?”

Que Santo Naná Vasconcelos nos proteja dessas cabeças de vento uivantes, desse espaço off do grito de Munch, desse berro primal, desse berro – esse berro desesperador, proteja-nos dos berros, Naná. Dos buzinadores e dos batedores de panela. Dai-nos força, dai-nos um protetor de ouvidos – vermelho.

Fico pensando em quais seriam os sons da “Peste” de Albert Camus, dos subterrâneos de “Sobre Heróis e Tumbas”, do Ernesto Sabato, quais seriam os ruídos dos pesadelos dostoievskianos e dantescos? Qual o barulho estúpido da bomba de Hiroshima, o ruído exato do desespero em Auschwitz?

À regressão estética se soma, portanto, a regressão auditiva. Às favas os escrúpulos auditivos, decidiram os fascistas: “Importunemos a multidão, até que ela fique tão irritada quanto simulamos estar”. Eles optaram pela estratégia do enlouquecimento coletivo, por essa tortura sonora específica, como se estivéssemos condenados a escutar eternamente os analistas da Globonews.

O vazamento compulsivo de áudios é a metáfora completa para esse fenômeno mais amplo, essa evasão da privacidade sonora, esse cutucar de onça com ondas curtas, essa insustentável algazarra do ser. O som e a náusea – diria Sartre. O ser e a decadência. O golpismo na época de sua reprodutibilidade técnica, parte II. A música do desespero, ou a sua mais completa negação.

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O golpismo na época de sua reprodutibilidade técnica

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4 comentários para "O som e a náusea – a face sonora do fascismo brasileiro, março de 2016"

  1. Zelia Ferreira Siqueira disse:

    Cada vez que leio seus textos, Alceu, fico pensando porque há tantos jornalistas medíocres pendurados nas tetas da oligarquia, quando bem deveriam gastar parte do tempo deles, lendo mais, aprendendo mais para poder fazer um jornalismo literário tão rico e profícuo quanto o que faz você. Lindo demais o seu texto, meu caro.

    • Alceu Castilho disse:

      Gratíssimo, Zélia. Até porque esse texto se propôs, de fato, a algo mais. Acho que em outros países eu teria espaço na própria imprensa burguesa. Mas estou aqui, né? E nossa imprensa anda cada vez mais indefensável.

  2. Zelia Ferreira Siqueira disse:

    Cada vez que leio seus textos, Alceu, fico pensando porque há tantos jornalistas medíocres pendurados nas tetas da oligarquia, quando bem deveriam gastar parte do tempo deles, lendo mais, aprendendo mais para poder fazer um jornalismo literário tão rico e profícuo quanto o que faz você. Lindo demais o seu texto, meu caro.

    • Alceu Castilho disse:

      Gratíssimo, Zélia. Até porque esse texto se propôs, de fato, a algo mais. Acho que em outros países eu teria espaço na própria imprensa burguesa. Mas estou aqui, né? E nossa imprensa anda cada vez mais indefensável.

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