O que dizem os anúncios de um grande jornal do país numa quinta-feira chuvosa?

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Carrões e recall, imóveis caros, ministros em evento sobre shoppings; Estadão noticia morte de Naná Vasconcelos ao lado de publicidade do Mundo do Enxoval

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Recebo o Estadão. Abro o jornal para ler sobre a morte de Naná Vasconcelos. Está lá, na capa do caderno de cultura, o Caderno 2. Seria bonito: “O som do silêncio”. Não estivesse quase toda essa página ocupada por um anúncio gigante do Mundo do Enxoval. (Mundo do Enxoval?) “Tudo fora”, grita a peça publicitária, em maiúsculas. “Preços para ninguém botar defeito!” Com lojas em Moema, Jardins e em três shoppings de São Paulo.

E decido percorrer os anúncios do jornal. O que eles dizem? Existe diálogo entre eles e o noticiário? Rumo para a capa. Desta vez não tem aquela capa falsa – publicitária – para avacalhar com a primeira página. Lá embaixo vejo um anúncio do novo Hyundai – um carrão. “O melhor dos Estados Unidos pelo terceiro ano consecutivo”. Estados Unidos? Sim, Estados Unidos. Nas páginas 5 e 7, de novo: “O melhor dos Estados Unidos”.

Lá no pé do anúncio vejo uma frase que se pretende educativa: “Pedestre, use sua faixa”. Como assim, pedestre? O anúncio não é para motoristas? Sim, que bom que pedestres usem sua faixa. Só que os pedestres sabem que elas não são respeitadas – particularmente pelos motoristas de carrões. Por que não uma mensagem educativa para os motoristas? “Motoristas, respeitem a faixa de pedestres”. (Talvez o jornal pudesse pautar isso mais vezes, sei lá.)

Mas devo estar de mau humor. Folheio mais um pouco o jornal. Os eternos empreendimentos imobiliários. Viagens da CVC: está muito barato viajar em março e abril. Não tenho dinheiro, Estadão, obrigado. Um encontro com figurões do mundo imobiliário: “As ideias de quem mora no futuro”. De quem mora no futuro? (Fico imaginando um futuro horrível com mais SUVs, mais SUVs ignorando faixas de pedestres, mais prédios. Não tem como morar no passado?)

Avanço. “Marta Suplicy contrata tucano como consultor de comunicação”. É o Xico Graziano, aquele que não gosta de reforma agrária. Ops, desculpem, isso é notícia, não publicidade. É o vício. Sigo. Terrenos em Atibaia. Um recall da Mercedes-Benz: cabo da bateria não foi fixado devidamente. Risco: “Possível aumento de temperatura e eventual princípio de incêndio, podendo ocasionar danos físicos aos ocupantes do veículo e terceiros”. (O recall começa hoje. Corram!)

“Four Seasons. Privat Residences”. Mais um anúncio gigante da Coelho da Fonseca: “São Paulo at Nações Unidas. A development of iron house real state”. Que legal que os leitores do Estadão estão falando inglês. The newspaper is on the table. Mas o anúncio sobre um MBA da FGV está em português: “Experiência é passar menos tempo no avião e mais tempo no aviãozinho”. Com foto de mãe fazendo aviãozinho para seu bebê. (Funciono pouco de manhã. Leitores, expliquem-me.)

Mais carros, mais empreendimentos. A cidade do futuro dos anúncios do Estadão: com carros gigantescos, espigões. E chego à cereja do bolo: o 1º Simpósio Nacional de Varejo e Shopping. “Um projeto de interesse comum”. (Comum?) Vejamos quem vai participar. Ministro Luiz Fux, do STF. (Ministro Luiz Fux?) Armando Monteiro, ministro da Indústria e do Comércio. Gilberto Kassab, das Cidades. (Kassab?) Jornalista Ricardo Boechat, da Band.

Todos eles em Punta Del Este, no Uruguai, de 31 de março a 3 de abril. Dezenove homens, duas mulheres. Nenhum negro. Patrocínio do governo federal, pátria educadora. Da Caixa. Da Apex, a agência de exportações. O parceiro de mídia é o próprio Estadão. Debates sobre o futuro do varejo em shoppings no Brasil. Com direito a um amplo estudo “com o objetivo de questionar o governo sobre a desburocratização do setor”.

Legal, né? O ministro das Cidades muito atento ao urbanismo dos shoppings. E o ministro Hélio Beltrão. Digo, Luiz Fux. O que será que ele vai fazer lá? Que bom que a agenda tímida do STF oferece essas disponibilidades. E ele é o primeiro da lista, o chamariz! O terceiro é o presidente do McDonald’s. Procuro, mas não vejo alguém representando o Mundo do Enxoval. Nem a Mercedes-Benz. Fecho o jornal. Para que ler notícias, não é mesmo? A day in the life. Brazil, country of the future.

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8 comentários para "O que dizem os anúncios de um grande jornal do país numa quinta-feira chuvosa?"

  1. Ruy Mauricio de Lima e Silva Neto disse:

    Quem lê tanta notícia? Eu vou (“Tropicália”, Caetano Veloso, 1968)

  2. Ruy Mauricio de Lima e Silva Neto disse:

    Quem lê tanta notícia? Eu vou (“Tropicália”, Caetano Veloso, 1968)

  3. Gisela Reis disse:

    Excelente crônica!!!
    O capitalismo, do consumo à apropriação do Estado pelos interesses privados; a comunicação, quase sempre manipuladora; os costumes, de um país que só alcançou o futuro nas compras das classes mais abastadas; e até o sonho, sempre ameaçado, da pátria educadora.

  4. Gisela Reis disse:

    Excelente crônica!!!
    O capitalismo, do consumo à apropriação do Estado pelos interesses privados; a comunicação, quase sempre manipuladora; os costumes, de um país que só alcançou o futuro nas compras das classes mais abastadas; e até o sonho, sempre ameaçado, da pátria educadora.

  5. Ronaldo Costa disse:

    E o Naná Vasconcelos? Claro, sumiu em meio a tanto lixo.

  6. Ronaldo Costa disse:

    E o Naná Vasconcelos? Claro, sumiu em meio a tanto lixo.

  7. Vereda Saúde disse:

    Onde este cara pensa que vive? Na Coreia do Norte? Ou será em Marte?

  8. Vereda Saúde disse:

    Onde este cara pensa que vive? Na Coreia do Norte? Ou será em Marte?

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