Haddad e os moradores de rua; ele fala de “hipocrisia”; falemos de cinismo

Prefeito demonstra ao mesmo tempo arrogância e ignorância em relação a aspectos elementares da comunicação com cidadão e imprensa; seria melhor ouvir conselhos

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Prefiro acreditar que as pessoas que cuidam do setor de comunicação da prefeitura paulistana tentem alertar Fernando Haddad sobre aspectos básicos do tema. E que apenas ele – sem ouvir os conselhos – seja o responsável pela sequência de falas desastrosas, no caso da morte de moradores de rua em São Paulo.

Digo isto a propósito de um post de ontem no Facebook, intitulado “mentira e hipocrisia“. Sim, ele começa falando da grande imprensa. Que, de fato, é hipócrita. Com agenda mais eleitoral que humanista. Mas encerra falando de “romantização da permanência na rua em situação de risco extremo”, e associando-a à hipocrisia.

Falemos, então, de hipocrisia. E de cinismo. Muito boa a aula do professor Haddad sobre a diferença entre as duas palavras. Ao falar – cinicamente – de hipocrisia.

De quem está falando, prefeito? Como assim? Quem romantiza a permanência na rua? Está falando do padre Julio Lancelotti? Dos defensores de direitos do povo da rua? Dos jornalistas que não são da grande imprensa e igualmente o criticaram? De quem?

OUTRAS MÍDIAS

Em primeiro lugar, não é somente a grande imprensa que faz críticas à política da prefeitura. (Fosse só ela, ainda assim seria pouco hábil definir as críticas como hipócritas – ainda que demonstrando a hipocrisia que deveras existe na imprensa corporativa. O que ficará é a palavra. Haddad não entende isso? Faltou treinamento de mídia?)

A imprensa alternativa começou a falar bem antes do assunto. Aqui mesmo, no Outras Palavras, no fim de maio, com base em infindáveis relatos do padre Julio Lancelotti: “Haddad vai continuar tirando os cobertores da população de rua?” E a equipe de comunicação do prefeito sabe disso. Tanto que nos enviou uma resposta: “Prefeitura de SP diz que vai investigar e punir coerção a moradores de rua“.

Mas não descobrimos a América. No ano passado a Ponte Jornalismo (um dos melhores veículos alternativos do país) fez uma entrevista consistente com Lancelotti: “Moradores de rua são alvo de repressão e limpeza social“. Outros veículos contra-hegemônicos falaram dos abusos cometidos pela Guarda Civil Metropolitana. Então por que Haddad associa as críticas apenas à grande imprensa? Não percebe que essas ações caíram mal em todo o campo progressista? (Ele espera perder ainda mais votos neste campo ou ganhar votos no campo oposto?)

Antes, porém, desses fatos serem noticiados, existiam os fatos. A grande imprensa decidiu que os temas eram notícia após as mortes. A imprensa alternativa, não. Decidiu que eram notícia porque defende direitos humanos. (Quem é hipócrita na imprensa alternativa, Fernando Haddad? É hipocrisia defender direitos elementares? O de não ter o cobertor ou o colchão arrancados por guardinhas violentos?)

ROMÂNTICOS QUEM?

Haddad quer nos fazer crer que as opções são apenas técnicas. E não políticas. Que, se há visões de mundo distintas, apenas a dele seria técnica. Eficaz. Embasada. As demais visões seriam “românticas”. (Quero quer que ele não esteja associando o romantismo à grande imprensa. Seria uma ousadia.) A política que ele adota, portanto, seria “realista”.

Mas esse encaminhamento esbarra nos fatos. “Não encontramos nenhuma correlação entre a ação da Guarda e os óbitos”, afirma ele, após investigação. (Mas não era para investigar os abusos, prefeito?) Ora, ele quer o quê? Que a família de um morador morto apresente um boletim de ocorrência sobre eventual cobertor ou colchão retirado exatamente nos últimos dias? Qual seria a prova possível dessa “correlação”?

Antes disso: qual a necessidade de estabelecer empiricamente (e não por dedução) essa correlação? O fato é que pessoas estão morrendo de frio – e, que bom, o prefeito admite que a frente fria seja uma das causas. Outro fato é que a GCM pratica sistematicamente, há anos, violência contra moradores de rua. E não somente por meio de confisco. (Enquanto as barracas golpistas em frente da Fiesp seguem intactas.)

Só não dá para dizer que Haddad está fazendo malabarismo – para justificar o injustificável – porque a GCM andou reprimindo também artistas de rua. (Estava no Estadão de ontem. Na imprensa hipócrita. Mas é um fato. Não precisa ir muito longe para ouvir relatos de artistas ou vendedores de livro que são tão vítimas do rapa quanto os que repassam produtos de contrabando.)

PRIVATIZAÇÃO QUAL?

É cinismo combater o contrabando pela ponta dos camelôs. Assim como é cinismo dos governadores combater o tráfico de drogas pelos aviõezinhos. É cinismo passar pano para a violência de guardas metropolitanos em nome da saúde das vítimas. (Ah, mas o problema é a “favelização”. Felizmente, neste caso, o próprio prefeito voltou atrás.)

É cinismo falar de “privatização do espaço público”. Ora, ora, são os moradores de rua que privatizam o espaço público? Foi o chefe da GCM quem falou, bem sei. Mas não consta que ele tenha sido desautorizado. É cinismo porque os defensores do pato da Fiesp não foram molestados. É cinismo porque a história desta cidade – e a do país – confunde-se com a história da grilagem. Com a pilhagem de terrenos públicos. (Ou quer que o definamos como Fernando Corajosão, aquele que reprime os pobres e faz vista grossa para os ricos?)

Sim, existem ações na prefeitura referentes aos excluídos. A gestão atual não é um show de horrores. O prefeito está certo quando diz que a grande imprensa – aquela – não cobriu serviços como o Transcidadania ou o Família em Foco. (É neste momento que o prefeito fala “do que se ouve nas redes”, de expressões indefensáveis como “bolsa-traveco”. Novamente aqui demonstrando que tem faltado aos treinamentos de mídia.)

Mas está errado no tom. Está errado ao misturar “o que se ouve nas redes” com a grande imprensa, e em não mencionar a imprensa alternativa como se dela também não estivesse falando. O prefeito não aceita críticas e, por isso, abre sua metralhadora giratória. Ao misturar os públicos, mistura estações e mistura classes. Mistura os Mesquitas (os donos do Estadão) com jornalistas que defendem direitos humanos e com os haters de plantão. Mistura. Erra.

ELEITOR QUAL?

E é por isso que o prefeito precisa pensar duas vezes. Respirar mais fundo. Estamos falando de moradores de rua. De mortes. E não de mais uma decisão técnica na Secretaria de Finanças. O eleitor só aceitará que Haddad fique nervosinho se for para demonstrar indignação diante dessas mortes, ou de injustiças brutais. Ao menos o eleitor que ele ainda tem chance de conquistar. (Querido Haddad, eu não queria contar, mas o leitor do Estadão não votará em você.)

Se continuar chamando padre heroico de “hipócrita”, sem chance. (“Ah, mas eu não chamei”. Chamou, sim.)

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2 comentários para "Haddad e os moradores de rua; ele fala de “hipocrisia”; falemos de cinismo"

  1. Maria Fernanda Reali Camargo disse:

    Alceu, gostaria de saber se você ouviu a coletiva de imprensa do Haddad e ouviu que algumas contradições entre o que o Padre Júlio diz e o que a prefeitura diz. Não desacredito o padre, mas me pergunto se não há um desencontro de informações.
    Ainda que excessos da GCM existam, o padre diz que não há consulta à população em situação de rua quanto ao novo protocolo de abordagem da GCM. Nem a reportagem nem o padre citam que existe, conforme soube na coletiva, um comitê paritário que se chama PopRua, vc encontra informações sobre ele no site da prefeitura, existe desde 2013. Ele pode não ser eficiente: mas este seria outro problema. Ele não é sequer citado pelo padre.
    Outra contradição refere-se ao fechamento de um centro de acolhida na Lapa, que o padre denuncia. Na coletiva há um jornalista que pergunta especificamente sobre ele e a secretária Luciana Temer nega o seu fechamento e diz que não sabe de onde o padre tirou esta informação.
    Enfim, temos em alta consideração pelo Padre Julio, mas ele pode errar. Ainda que isso não invalide suas outras críticas.
    Gostaria de ver um trabalho de jornalismo que verificasse essas contradições.
    Obrigada,
    Fernanda

  2. HiroNakamura disse:

    Parabéns pra vocês, nessa data querida:

    “Sob esse decreto, as ações de “zeladoria” deveriam ser preferencialmente realizadas das 7h às 18h, de segunda a sexta, para evitar ações, por exemplo, enquanto as pessoas estivessem dormindo; agora, estão liberadas as ações em qualquer dia e horário sem justificativa.

    Além disso, era vedado subtrair das pessoas em situação de rua “itens portáteis de sobrevivência, tais como papelões, colchões, colchonetes, cobertores, mantas, travesseiros, lençois e barracas desmontáveis”. A redação anterior estabelecia, ainda, que, “em caso de dúvida sobre a natureza do bem, os servidores responsáveis pela ação deverão consultar a pessoa em situação de rua”.

    Ambos dispositivos foram suprimidos nessa modificação de hoje. Ou seja, as forças de segurança poderão retirar itens de sobrevivência das pessoas em situação de rua, o que sabemos que pode levar até ao óbito sob condições de clima muito frio”

    Leia o artigo de Advogado e militante de direitos humanos, Renan Quinalha – http://bit.ly/2k47Yra

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