É o mercado quem quer trabalhador fazendo caca “dia sim, dia não”

Aumento do trabalho aos domingos expõe fronteira tênue entre direita conservadora, representada pelos Bolsonaros de plantão, e a direita liberal, que simula bons modos

Jair Bolsonaro não é o artífice do pacote diário de maldades imposto pelo capital. Nem teria condições cognitivas para isso. Ele é apenas uma expressão mais caricata — e bizarra e explicitamente violenta — de um sistema que posa de limpinho e cheiroso quando conveniente, mas aceita bem quando o presidente de um país continental faz arminhas e pratica incontinência verbal várias vezes durante o dia.

De um lado temos as bravatas e as falas fluidas, como o clássico escatológico sobre como evitar o desmatamento: “É só comer menos. Fazer cocô dia sim, dia não”. Para indignação internacional. Ou seria simulação conveniente de uma indignação que vai somente até a metade do quarteirão? Não me refiro, claro, aos que autenticamente combatem o sistema e ficam perplexos e se revoltam; e sim aos beneficiários das medidas promovidas por esse mesmo senhor e esse mesmo governo.

É conveniente para o capitalismo ter, aqui e ali, um títere — pensemos na expressão Moro José, cunhada por Reinaldo Azevedo – que arrebente certas linhas éticas e estéticas até então aceitas pelo conjunto da sociedade. Depois, quando esse cavalo de Troia for expelido (e será), será devidamente queimado e se voltará a propagar que o sistema é legalzinho, aquele desorientado que era uma aberração, algo à margem do que querem os homens de bens e os defensores dos bons costumes.

E não. É o mesmo mercado amoral que se beneficia da reforma da previdência e da minirreforma trabalhista, assim como se beneficiou da reforma trabalhista na gestão cleptocrata de Michel Temer. O mercado lida bem com a corrupção e com presidentes racistas e homofóbicos, desde que enxergue ali uma oportunidade de emplacar suas causas. Quando se lê mercado leia-se também grande imprensa, sua porta-voz mais disciplinada. Observem como os jornalistas esboçam críticas a Bolsonaro — mas batem o pique no meio da quadra e retornam ao estado anterior.

Reforma da previdência, por exemplo. Quem discutirá que a Globo adotou uma defesa incondicional desse assalto aos trabalhadores e desse assassinato de idosos? Não houve vozes dissonantes. Jornalistas estavam instruídos – como parecem estar em relação à minirreforma trabalhista – a tocar essa narrativa como se ela tivesse (e tinha) um destino inexorável. Mesmo que o presidente seja boquirroto e esteja destruindo de vez a Amazônia e promova o ódio contra nordestinos ou indígenas.

Direita liberal e direita conservadora fazem parte do mesmo sistema. Apenas exclamam suas diferenças em um muito bem ensaiado simulacro. Democratas e republicanos promovem nos Estados Unidos as mesmas guerras e estouram os mesmos miolos civis, mas gostamos de pensar que os democratas são mais toleráveis. Afinal, eles defendem direitos civis com mais ênfase, abraçam causas identitárias, são mais inclusivos em relação aos direitos das mulheres e dos negros.

Claro. Desde que todos possam extrair o bagaço de todos no médio e no longo prazo, no campo econômico. Não é a mesma Globo quem defende os direitos LGBT e combate a violência contra a mulher? A gente assiste ao The Voice e fica feliz vendo que Lulu Santos celebra em rede nacional a união entre pessoas do mesmo sexo. E isoladamente, claro, isso soa civilizatório. Só que se trata de uma evolução interna, como se estivéssemos dentro de uma redoma que será chutada pelo mercado como Chaplin chutava seu globo.

Não há como não pensar em simulacro quando se vê a plutocracia brasileira aparentemente dividida em relação às diatribes dos milicianos no poder. Desmatamento da Amazônia? Ora, não é mais ou menos isso que tem sido feito historicamente? Diante da lógica de expansão do capital e das leis que regem a renda da terra nesse sistema? O que estaria errado seria a velocidade e a falta de modos de Bolsonaro em relação a tudo isso, sua condição de assumir o que outros fazem sem dar muita bandeira, por meio de sucessivas lavagens de imagem. (Bolsonaro não falará em sustentabilidade.)

O capitalismo se renova e se multiplica também a partir de seus defensores menos refinados. Mesmo que os sacrifique depois. E lida muito bem com a ilegalidade, com os milicianos e com o desmatamento, com o contrabando e com a corrupção, com Deus e o lobisomem, como diria mestre Raul Seixas, porque ele tem sede e a bolsa de valores não pode parar. Amanhã Bolsonaro dirá outra barbaridade e os escolhidos para serem os limpinhos dessa farsa tecerão suas exclamações. De um modo geral, porém, o jogo a favor dos endinheirados de sempre continuará tão sociopata como sempre foi. Até que venha alguma espécie de FHC para simular honradez.

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