O papel das cozinhas solidárias em um projeto nacional

Mais que distribuição de refeições, elas se afirmaram como espaços de organização popular e acolhimento. Ajudaram a combater a fome, reorganizar territórios e influenciar uma nova política pública. Mas é seu potencial está longe de ser aproveitado

Imagem: MTST
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Durante a pandemia de covid-19 no Brasil, enquanto o governo sob gestão de Jair Bolsonaro se preocupava mais em propagar teorias negacionistas em relação à doença do que no planejamento de estratégias que pudessem proteger os setores mais vulneráveis da população, a sociedade civil organizada, em especial os movimentos populares, se mobilizou para evitar uma catástrofe social. Afinal, desde antes da pandemia havia restrição de investimentos e políticas públicas e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) perdeu orçamento e foi esvaziado no governo do então presidente, mudando de nome para Alimenta Brasil.

Em um contexto de acesso historicamente desigual aos alimentos, as cozinhas solidárias surgiram como uma importante tecnologia social principalmente nas regiões periféricas de áreas urbanas. Uma resposta coletiva, organizada e que ia além da simples distribuição de refeições, constituindo ainda espaços coletivos de acolhimento, trocas, debates, aprendizados e solidariedade em um momento histórico no qual tudo isso também se tornou mais escasso.

Após ter sido aberta a primeira Cozinha Solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em 13 de março de 2021, em Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo, em seis meses já eram 19 unidades nas periferias dos centros urbanos no país. Com as doações, foram distribuídas mais de 79 toneladas de alimentos, que viraram 132 mil marmitas para pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. Outros movimentos também se somaram aos esforços, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), responsável por distribuir dezenas de toneladas de alimentos no período, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Levante Popular da Juventude, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Na Mesa “Cozinhas Solidárias: participação popular, soberania e segurança alimentar e nutricional”, realizada no 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão), no final de novembro, e coordenada por Hermano Castro, pesquisador titular da ENSP/Fiocruz, em parceria com pesquisadoras da USP, UnB e Unifesp, o dirigente do MPA Beto Palmeira relembrou como se deu essa integração. “A experiência do MPA com as cozinhas solidárias começou há alguns anos, quando nos somamos às iniciativas do MTST, ajudando a garantir o abastecimento de cozinhas solidárias em estados como Sergipe, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Ali, nós entendemos com muita força que as cozinhas são instrumentos de levar comida de verdade para as periferias, comida que nasce no campo com dignidade, e chega na cidade com solidariedade, organização e compromisso político”, apontou.

Ele ressaltou ainda o quanto essa integração de movimentos do campo e da cidade pode render frutos do ponto de vista social. “Quando o MPA se junta às cozinhas solidárias, nasce uma força muito potente: de um lado, a produção camponesa agroecológica, construída com trabalho, resistência e cuidado com a terra; de outro lado, as periferias urbanas que resistem contra as ações do desacato do estado”, ponderou. “A cozinha solidária é a ponte entre esses dois territórios que, na verdade, são um só: o Brasil real, o Brasil onde o povo resiste e se organiza.”

Os efeitos no território

Com o fortalecimento das iniciativas e o ganho de relevância política, em 2023, pela Lei nº 14.628/2023, foi instituído o Programa Cozinha Solidária, depois regulamentado pelo Decreto nº 11.937/2024. O governo federal passou a ser parte da estrutura de suporte à preparação e distribuição de refeições por estes equipamentos por meio de três modalidades: apoio com doação de alimentos in natura e minimamente processados, entregues pelo PAA; oferta de refeições por meio de entidades gestoras e apoio à formação e capacitação dos colaboradores e parceiros.

Para a pesquisadora da ENSP/Fiocruz Denise De Sordi, a própria existência do Programa Cozinha Solidária em seu formato atual mostra como ele se diferencia de experiências anteriores relacionadas à distribuição de alimentos e refeições no país. “Um primeiro ponto a ser observado é que as Cozinhas Solidárias são o primeiro ponto territorializado de distribuição de refeições prontas e saudáveis à população de maneira totalmente gratuita e universal. Essa foi uma inovação e uma conquista dos movimentos sociais, que garantiram que o programa social mantivesse a universalidade do acesso à alimentação nas Cozinhas Solidárias, preconizando a realização do acesso ao Direito Humano à Alimentação e não permitindo que propostas de focalização do acesso às Cozinhas Solidárias pela população se impusesse como a regra para o acesso à alimentação. Ou seja, atualmente, qualquer pessoa que chegar em uma Cozinha Solidária, pode se alimentar e ser acolhida por ela”, aponta.

Segundo a pesquisadora, este é um aspecto fundamental, já que, muitas vezes, uma família que não se enquadraria em critérios de extrema pobreza e de pobreza utilizados, por exemplo, pelo CadÚnico, recebe um salário insuficiente para sua própria manutenção. Desta forma, acessar o equipamento é uma forma de garantir a essa família uma alimentação adequada e saudável, liberando parte do orçamento familiar para outras despesas. “Há um duplo efeito simultâneo de combate à pobreza e à fome, e que está presente no ato da distribuição de refeições gratuitas pelas Cozinhas Solidárias. Esse efeito se estende aos produtores desses alimentos que, em geral, são da agricultura familiar camponesa. Assim, quando afirmamos que as Cozinhas Solidárias reorganizam os territórios nos quais estão inseridas, essa ideia de reorganização não se limita ao espaço urbano ou ao entorno dela, mas acompanha o próprio circuito do alimento, da produção à mesa, do produtor ao consumidor”, explica.

Estas particularidades, explica Denise, fazem com que o programa seja caracterizado como uma tecnologia social, por reunir um conjunto de práticas e soluções replicáveis em larga escala, respeitando as peculiaridades dos territórios nos quais se inserem. Nesse sentido, um outro aspecto a ser ressaltado é o fato de ele ter origem em uma experiência popular. “Esse é um ponto importante porque permite clarificar a relação das Cozinhas Solidárias com os territórios. Estamos falando de um projeto popular que se origina do coração dos territórios periféricos: com o deslocamento das cozinhas coletivas das ocupações urbanas por moradia para a abertura de Cozinhas Solidárias em territórios periféricos e regiões centrais de grandes capitais”, observa.

“Distribuir refeições e alimentos não é uma novidade no conjunto das diferentes ações que demarcam a história do país, porém, fazer isso de maneira universal, organizada politicamente no nível territorial, articulada com a agricultura familiar e com a oferta de serviços socioassistenciais diversos é, sim, algo novo”, pontua a pesquisadora.

Institucionalização e ação do poder público

Atualmente, o programa conta com 1,2 mil cozinhas habilitadas e 650 delas já recebem alimentos por meio do PAA. Contudo, a institucionalização da experiência das Cozinhas Solidárias traz desafios, como o de evitar uma modulação do fluxo organizativo e de gestão do Estado com iniciativas que são distintas entre si.

“Esse é um processo que gera tensionamentos em diferentes escalas, seja na organização, definição do orçamento e gestão do programa social, até nos mecanismos e possibilidades de controle social do mesmo. A meu ver, a institucionalização dessa iniciativa é o maior ganho e o maior desafio no âmbito dos programas sociais de combate à pobreza e à fome até o momento, e isto se dá pelo próprio êxito da experiência que é a primeira a articular justamente o combate à pobreza e à fome enquanto fenômenos sociais interligados a partir de condições de vida particulares nos territórios, mas que são passíveis de certa generalização desde a condição de classe dos sujeitos”, alerta Denise.

Existem ainda outras questões, do ponto de vista prático, para o funcionamento dos equipamentos em funcionamento e para a ampliação da rede. Um estudo realizado por Luciana Marques Vieira, pesquisadora e professora da FGV EAESP e Fabiano Jorge Soares, doutorando e pesquisador do FGV Analytics e FGV CEAPG, em coautoria com Wagner Cerqueira Nunes, Nicole Martins Bezerra e Carolyne Mendes Espírito Santo, publicado na revista Cadernos Gestão Pública e Cidadania e divulgado em agosto deste ano, atestou a relevância das cozinhas solidárias no combate à insegurança alimentar e propôs também medidas que poderiam ajudar a superar algumas das dificuldades do programa.

Para os pesquisadores, é necessário expandir o Cozinhas Solidárias com recursos contínuos. “Infraestrutura adequada e diversificação das fontes de financiamento são essenciais para garantir a eficiência operacional das cozinhas solidárias”, sugerem. O levantamento também atenta para que sejam elaboradas parcerias com pequenos produtores e bancos de alimentos, além da consolidação de uma maior integração com programas como o PAA.

“O que temos ouvido e aprendido com as Cozinhas Solidárias aponta para a necessidade de resolver gargalos cruciais. Entre eles, destacam-se o reconhecimento do trabalho das cozinheiras e dos sujeitos nas cozinhas, a otimização do fluxo de abastecimento em uma relação mais estreita com cooperativas da agricultura familiar e a compatibilização das demandas por alimentos com uma logística de produção adequada, que não dependa do terceiro setor. Além disso, é fundamental que as cozinhas sejam reconhecidas como parte de um programa social dentro de uma política pública, como o Sisan, para que não sofram com interferências de tensões políticas regionais. Dessa forma, elas podem ser compreendidas como elementos fundamentais para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), tanto no cotidiano da população quanto em situações extremas, como emergências climáticas”, diz Denise De Sordi.

Recém-saído novamente do Mapa da Fome, o Brasil ainda tem na segurança e soberania alimentar dois grandes desafios na redução das suas inúmeras desigualdades. E as cozinhas solidárias demonstraram ser equipamentos importantes não só nestes aspectos, mas também no acesso a outros direitos sociais e no debate e conscientização a respeito de como a fome não é acaso ou falta de alimentos, mas resultado de ações políticas. A fala de Beto Palmeira no Abrascão resume: “Nós já mostramos que funciona. As cozinhas solidárias já provaram que são parte da solução para a fome no Brasil. Agora, o que precisamos é que o Estado brasileiro reconheça isso com condições para funcionar as cozinhas e ampliar as ações”.

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