Emendas: As universidades reféns do drama orçamentário
Em 2024, recursos parlamentares somaram quase R$1 bi ao ensino superior. Despesas básicas, assistência estudantil e até continuidade de pesquisas dependem, cada vez mais, de negociações entre reitores e políticos. E a autonomia segue limitada pelo teto de gastos
Publicado 26/11/2025 às 15:00 - Atualizado 26/11/2025 às 15:01

Por Rubia Cristina Wegner, na Le Monde Diplomatique Brasil
As universidades têm função primordial de formar, treinar, produzir conhecimento, compartilhar e trocar com a comunidade e contribuir diretamente com o fomento da capacidade científica e tecnológica do país e com a elaboração de políticas públicas e sua avaliação. Possuem, ainda, um papel no desenvolvimento regional do país. Como destaca Xavier (2011), as universidades são espaços que podem concentrar soluções e confiança da sociedade. Anísio Teixeira, em 1968, na discussão sobre a reforma universitária, dirigiu-se à Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, para argumentar sobre a função social da universidade, afirmando: “A educação não é só um bem para o indivíduo, mas uma necessidade para a sociedade” (XAVIER, 2011).
Estudos que buscam oferecer caminhos para respostas e análise crítica das emendas parlamentares e seus desdobramentos sobre o orçamento público são cada vez mais comuns – Oliveira (2019); Bomfim e Sandes-Freitas (2019); Guimarães (2020); Damasceno (2023); Souza (2022); Santos e Gasparini (2022). É possível identificar que boa parte deles parte da concepção gerencialista da administração pública e de gestora do déficit público com o apelo para a eficiência (‘saúde’) das contas públicas como alicerce. Uma pequena parte critica as emendas parlamentares como instrumento do orçamento, atribuindo a uma elevada participação do pagamento de juros da dívida o regime fiscal de controle de gastos primários, usado no Brasil – como Silva e Guimarães (2022) e Reis (2021).
Os critérios adotados pelos parlamentares para destinar os recursos das emendas também estão no centro do debate. No caso das universidades, pesam muitos questionamentos. As distorções no tamanho das emendas (em número e valores) são outro fator: quer dizer, algumas universidades são mais atrativas na captação de emendas do que outras. Fernandes e Oliveira (2023) concluem em seu estudo sobre a alocação das emendas parlamentares individuais, que se trata de uma questão de representantes de cada universidade buscarem parlamentares para sensibilizá-los das necessidades das instituições, seguindo-se sua base eleitoral. Araújo, Valente e Oliveira (2024), em sua análise das emendas parlamentares individuais para universidades federais rurais, concluem que não há uma correlação direta entre a destinação de recursos por emendas impositivas e o número de deputados federais por unidade federativa analisada.
Assim, o tema “emendas parlamentares” tem ocupado espaço considerável nos últimos anos em agendas públicas – como mídia, parlamento e universidades. Não constituem novidade, sendo parte da Constituição Federal de 1988 (CF 1988), que promulgou o Poder Executivo como a autoridade maior pelo orçamento público (PISCITELLI, 2007; VASSELAI; MIGNOZZETTI, 2014). Ao mesmo tempo, a CF 1988 colocou o orçamento público como mecanismo também favorável para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do país e estabeleceu um conjunto de regras que ordenam seu processo decisório, a saber: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). Dessa forma, as emendas parlamentares funcionariam como instrumentos utilizados por deputados e senadores que indicam recursos orçamentários para atender a demandas específicas da sociedade. Até 2015, com a promulgação do “orçamento impositivo”, o Poder Executivo guardava autoridade para executar ou não a dotação de emendas sem que lhe fosse exigido fornecer uma justificativa ao Poder Legislativo (MENEZES; PEDERIVA, 2015). As emendas podem ser consideradas instrumentos pelos quais o Poder Legislativo pode modificar a alocação do orçamento – suprimindo, acrescentando ou alterando – rubricas do PLOA (FURIATI, 2019).
O chamado orçamento impositivo, ao permitir remanejamento de recursos públicos, alterou a relação entre os poderes da República, ao exigir que o Poder Executivo deve executar a programação orçamentária aprovada pelo Poder Legislativo via emendas parlamentares individuais ou impositivas (ARAÚJO; VALENTE; OLIVEIRA, 2024). Esses instrumentos estão sob um regramento considerável: CF 1988, Lei de Responsabilidade Fiscal 101/2000, Lei Complementar (LC 101/2000), Lei n. 4320/1964, Resolução n. 1/2006 do Congresso Nacional, além da LDO e LOA, portaria conjunta do Ministério da Economia e Secretaria do Governo da Presidência da República.
Com as alterações na CF e legislações específicas, desde 2015 se tornou obrigatória a execução orçamentária das emendas, bem como seu valor mínimo (MENEZES; PEDERIVA, 2015; CAVALCANTI; TONELLI; CAETANO, 2022). Dados compilados por Cordeiro (2024) sobre a proporção do orçamento da União destinada a emendas parlamentares para o intervalo de 2015 a 2024, permitem afirmar que seus valores (corrigidos) saltaram de R$ 3,9 bilhões para R$ 48,3 bilhões. Essas alterações, de acordo com Faria (2023), induziram a uma mudança contundente no orçamento público federal: passagem de um regime de “dominância orçamentária do Poder Executivo” para o de “dominância orçamentária do Poder Legislativo”. O montante previsto no regramento para as emendas parlamentares tem comprometido o montante do orçamento para despesa discricionária (TOLLINI; BIJOS, 2022). Além disso, as emendas de comissão viriam sendo mais identificadas com emendas para as quais a transparência e a rastreabilidade estariam mais comprometidas.
Em 2024, o ministro Flávio Dino, do Superior Tribunal Federal (STF), após observar nos relatórios apresentados pela Controladoria Geral da União (CGU) o descumprimento de requisitos de transparência e rastreabilidade nas execuções de emendas parlamentares, deu início a medidas objetivas voltadas para execução orçamentária e transparência de emendas parlamentares – em 2014, é criada uma classificação orçamentária própria para as emendas, com primeiro identificador RP6, podendo ser ainda de relator, de comissão e individuais (“pix”) –, como a exigência, para as emendas individuais, de apresentação de um plano de trabalho prévio (CORDEIRO; VELOSO, 2024). Em dezembro de 2024, de um universo de 33 instituições do setor (ONGs e fundações de apoio), 13 foram listadas como impossibilitadas de receber repasses de emendas parlamentares por não atenderem exigências de transparência. Dentre essas instituições, estavam fundações de apoio da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Em abril de 2025, o ministro Flavio Dino suspendeu o repasse de emendas parlamentares para universidades estaduais e fundações de apoio de oito estados – a saber: Acre, Alagoas, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rondônia e Sergipe. Os efeitos das suspensões na liberação das dotações de todos os tipos de emendas parlamentares somados à não aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2025 colocaram as universidades federais em situação de vulnerabilidade. E aquelas modificações do orçamento contribuíram para que mais emendas parlamentares individuais passassem a ser direcionadas para universidades.
A governança do orçamento se dá pelos formatos da interação entre Estado e sociedade, porém, no caso das emendas parlamentares, a governança se estabelece a partir da decisão de parlamentares em indicá-las para determinadas instituições (CAVALCANTI; TONELLI; CAETANO, 2024). O Ministério da Educação (MEC) tem buscado guardar sua posição de responsável pela regulação das emendas parlamentares para educação. Anualmente, o MEC lança uma cartilha orientativa para os parlamentares, em que são indicadas ações como: expansão, reestruturação, modernização das instituições federais de ensino superior; funcionamento das universidades federais; assistência aos estudantes de universidades federais; fomento às ações de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão (BRASIL, 2024).
É fato que o financiamento público de universidades pode ser tomado como um dilema no mundo todo, que é acirrado em meio a orientações de austeridade fiscal. Lepori; Wagner-Schuster e Breitfuss-Loidl (2019) investigam o impacto das medidas de austeridade fiscal no financiamento do ensino superior na União Europeia (UE) para propor um modelo que combine atores privados e públicos. No Brasil, os desafios em torno do financiamento de universidades sempre existiram. Desde a CF (Constituição Federal) de 1988, a autonomia universitária esbarra na dotação orçamentária, mesmo que tenha sido nela definido (art. 212) que são destinados 18% da arrecadação da União para as universidades. Esse cenário piora a partir de 2016, quando as universidades passam a enfrentar uma “tesoura orçamentária” sob os regimes fiscais adversos, que agem centralmente nas despesas discricionárias, limitando ainda mais seus graus de autonomia universitária (prerrogativa constitucional) e, mais ainda, seu funcionamento e sua expansão. Dessa forma, buscar receitas próprias e complementar os recursos da Lei Orçamentária Anual (LOA) com emendas parlamentares tem sido quase que exigência da gestão de planejamento e execução orçamentária das universidades brasileiras com maior intensidade nos últimos anos.
É necessário pontuar que o arranjo institucional sobre as emendas parlamentares responde às restrições de gasto discricionário advindas do atual regime fiscal brasileiro. O Novo Arcabouço Fiscal (NAF) flexibilizou, em parte, o Novo Regime Fiscal (Emenda Constitucional n. 95/2016) – permitiu variações no crescimento das despesas seguindo o desempenho da arrecadação, retirando o congelamento absoluto do NRF (Brasil, 2023) –, mas mantém uma estrutura engessada para o gasto. Durante a pandemia da Covid-19, as regras do Teto (NRF) foram sistematicamente burladas, visto que o governo federal elevou muito o gasto federal, postergou o recebimento de impostos e somente com o auxílio emergencial gastou mais de R$ 230 bilhões em 2020 (PIMENTEL; CONCEIÇÃO, 2023), evidenciando que o Teto seria insustentável de ser mantido, pondo em dúvida os pressupostos teóricos que o embasaram (ANDRADE; RIBEIRO; CARDOZO, 2025).
Atividades de pesquisa e extensão têm cada vez mais sido dependentes desses recursos, assim como a assistência estudantil em volume maior do que despesas classificadas como de investimento (OLIVEIRA, 2019; FERNANDES; OLIVEIRA, 2016; ARAÚJO; VALENTE; OLIVEIRA, 2024). Algumas universidades – como a UnB (Universidade de Brasília) com o ‘Simplifica’, que é considerado uma inovação (D’ALESSANDRO, 2023) –, lançaram programas para aprofundar a captação de emendas parlamentares como parte das suas necessidades de funcionamento, ampliação, expansão e atuação.
Muitos projetos de políticas públicas passam pelas universidades. Por exemplo, o Marco Legal da Inovação (Lei n. 10.973/2016) confere destaque também às universidades como atores estratégicos na consolidação do sistema nacional de inovação do país, ainda que sob uma perspectiva de que as universidades cumpram um papel de ofertista de infraestrutura e conhecimento especializado (RAUEN, 2016). O programa Nova Indústria Brasil, lançado no início de 2024, traça metas e objetivos que têm nas universidades elos essenciais. É necessário aprofundar o entendimento da destinação dos recursos de emendas parlamentares e seus efeitos na política de longo prazo da ciência, tecnologia e formação de quadros técnicos e críticos para que as universidades possam cumprir sua missão de transformação humana e social. No entanto, ao estarem cada vez mais com um orçamento de custeio e capital declinante – com base nos dados do Painel da ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) –, a execução de emendas parlamentares em universidades indica um caminho ambíguo sobre o seu papel na sua expansão e aprofundamento de ações de pesquisa voltadas para Ciência e Tecnologia (C&T). E as despesas discricionárias – como investimento público e gastos em C&T – são fundamentais para o processo de desenvolvimento econômico do país.
É fundamental estabelecer critérios, elementos ou eixos de comparação, evitando-se, assim, reduzi-la a mera descrição e sistematização de dados (Sartori, 1994 apud Gonzales, 2007). Mendes (2024) empregou o método comparativo para, a partir do levantamento da governança orçamentária em onze países da OCDE, traçar uma rota de compreensão das alternativas para o Brasil sob critérios como papel do Executivo e Legislativo no planejamento e execução orçamentária, papel da fiscalização e regulação, tetos definidos na alocação das despesas discricionárias e regramentos existentes para liberação de emendas parlamentares. Tollini e Bijos (2021) também empregam o método comparativo em estudo que buscou subsidiar uma estratégia de reformulação das emendas parlamentares no orçamento.
Os dados divulgados em relatório pelo Observatório do Conhecimento apontaram que, em 2024, as emendas parlamentares somaram cerca de R$ 993 milhões e as universidades, de modo geral, utilizam esses recursos para cobrir despesas básicas de custeio. O observatório avalia que o uso das emendas parlamentares para complementar o orçamento contribui para acentuar a fragilidade do financiamento da educação superior pública no país. Além disso, a distribuição desse recurso se baseia na articulação política de cada universidade com os parlamentares e a maior parte dessas emendas possui caráter obrigatório (impositivo).
O papel das universidades públicas brasileiras não é e não pode se limitar aos dramas orçamentários. Seu potencial de influenciar e transformar a realidade não pode ficar dependente ou moldado por interesses eleitoreiros. É urgente retomar um projeto para o sistema público superior que seja consistente com um projeto de desenvolvimento para o Brasil.
Rubia Cristina Wegner é professora do Departamento de Ciências Econômicas do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Referências
ANDRADE, M. R. de; RIBEIRO, C. G.; CARDOZO, S. A. O Paradoxo do Ajuste Fiscal: Entre a Contenção do Gasto Público e a Sustentabilidade Econômica. Encontro Nacional de Economia Política (ENEP). Disponível em: 1336_1742762864_Artigo_ENEP_2025_(identificado)_pdf_ide.pdf
ARAÚJO, A. P. de; VALENTE, A. C. S.; OLIVEIRA, L. S. Q. F. de. Distribuição De Emendas Parlamentares Individuais Em Universidades Federais Rurais (2016-2023). REJUR – Revista Jurídica da UFERSA, Mossoró, v. 8, n. 16, jul./dez. 2024, p. 78-104.
BAIÃO, A. L. Emendas orçamentárias individuais: efeitos eleitorais, condicionantes da execução e qualidade do gasto público. 2016. Tese – Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2016.
CAVALCANTI, V; TONELLI, D. F.; CAETANO, E. F. S. Emendas parlamentares no Ministério da Educação: governança ou desgovernança no financiamento das universidades federais? SciELO Preprints, [S. l.], 2024.
CORDEIRO, T. Emendas parlamentares do Brasil destoam do padrão dos países da OCDE. Insper, 6 de novembro de 2024. IN: Emendas parlamentares do Brasil destoam do padrão dos países da OCDE. Acesso em 02 de maio de 2025.
OLIVEIRA, A. G. de. O impacto das emendas parlamentares individuais sobre a eficiência dos gastos públicos em saúde e educação nos municípios mineiros: uma análise para a legislatura de 2011-2014. Dissertação de mestrado. (Programa de Pós-Graduação em Economia). Universidade Federal de Viçosa. 99 fls. 2020.
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PIMENTEL, K.; CONCEIÇÃO, D. N. Sobre o novo arcabouço fiscal: uma breve avaliação. Boletim IPPUR nº 69, 27 de abril de 2023. IN: https://ippur.ufrj.br/sobre-o-novo-arcabouco-fiscal-uma-breve-avaliacao/. Acesso em 20 de maio de 2023.
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XAVIER, L. N. Universidade, pesquisa e educação pública em Anísio Teixeira. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, v.19, n.2. abr.-jun., p.669-682.
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