Cinema: Mulheres no comando
Uma parábola sombria com um “anjo da morte”. Comédia erótica de casadas infelizes em busca de sexo casual. E drama familiar onde cada personagem tem um lado oculto. Três obras primorosas de mulheres – de três partes diferente do globo – chegam ao cinema
Publicado 13/11/2025 às 14:17

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Por um capricho do destino, três filmes marcantes dirigidos por mulheres chegam aos cinemas quase ao mesmo tempo: um argentino, um canadense e um tunisiano. O “quase” fica por conta do canadense Entre duas mulheres, de Chloé Robichaud, cuja estreia foi adiada para a semana que vem. Os outros dois entram em cartaz nesta quinta-feira. Cada um deles trata de um tema diferente, com um estilo e uma linguagem absolutamente distinto.
O argentino O sítio, de Silvina Schnicer, é, na superfície, um drama familiar. Um casal portenho de classe média, Rudi (Sebastián Arzeno) e Silvia (Cecilia Rainero), chega com seus três filhos (dois meninos e uma menina) para um fim de semana em seu sítio num condomínio rural e descobre que a casa foi invadida e ocupada durante dias por um grupo de desordeiros.
Instaura-se então uma narrativa repleta de mistérios e suspense, em que cada personagem – o casal, os filhos, o caseiro, os vizinhos – parece ter um lado oculto e insondável.
O foco narrativo é cambiante, acompanhando ora os adultos, ora as crianças. É nestas que reside o polo mais inquietante, explorando a fronteira tênue entre a ingenuidade, o desejo de aventura e a pura
perversidade. O menino mais velho, Martín (Valentín Salaverry), pré-adolescente de uns 12 anos, às vezes parece saído de um filme como A fita branca, de Michael Haneke. Seu desempenho é assombroso, em todos os sentidos.
É um filme feito de silêncios e elipses, na tradição do melhor cinema argentino, com um olhar sensível (feminino?) para as fraquezas humanas, sejam elas de homens, mulheres, adultos, adolescentes ou crianças.
A lei do desejo
O canadense Entre duas mulheres pode ser classificado, com as devidas reservas, dentro de um gênero virtualmente ausente da produção “séria” recente: a comédia erótica.
Num bairro de classe média de Montreal, duas vizinhas de apartamento, Florence (Karine Gonthier-Hyndman) e Violette (Karine Gonthier-Hyndman), atravessam momentos delicados em sua vida conjugal. Insatisfeitas com seus maridos, elas passam a seduzir outros homens (eletricistas, entregadores, compradores de artigos anunciados na internet) para um sexo casual e sem compromisso.
Poderia ser o enredo de uma pornochanchada, mas a diretora Chloé Robichaud consegue a proeza de eludir tanto a vulgaridade como o moralismo, abordando com uma graça brejeira a volatilidade da libido.
Num dos momentos mais divertidos, Florence tenta seduzir um homem politicamente correto ao extremo, que resiste até mesmo a mirar seu generoso decote.
O filme é um remake de uma obscura comédia canadense de 1970, cujo título original é o mesmo (Deux femmes en or – Duas mulheres de ouro), dirigida por um homem (Claude Fournier). Talvez seja o caso de cotejar as duas obras para identificar eventuais diferenças entre um olhar feminino e um masculino.
Anjo da morte
Em contraste com a leveza de Entre duas mulheres, o tunisiano A quem eu pertenço, de Meryam Joobeur, tem a gravidade de uma parábola sombria em torno da violência e da intolerância.
A história se passa nos dias de hoje num lugarejo rural no norte da Tunísia. Dois rapazes de uma família de pastores de ovelhas fogem de casa para se engajar no Estado Islâmico. Os pais mentem para o filho menor, Adam (Rayene Mechergui), dizendo que seus irmãos partiram para a Itália em busca de emprego.
Depois de um tempo, o mais velho dos irmãos, Mehdi (Malek Mechergui), retorna clandestinamente à aldeia, acompanhado de uma mulher misteriosa vestida numa espécie de burca que só deixa à mostra
seus profundos olhos azuis. Mehdi diz aos parentes que ela é Reem (Dea Liane), uma síria cuja família cristã foi dizimada pelos muçulmanos fundamentalistas.
O filme assume então uma dimensão entre o realista, o onírico e o alegórico, dominada por duas mulheres de sentidos opostos: Aicha (Salha Nasraoui), a mãe de Mehdi e de Adam, é puro amor desinteressado; Reem é uma espécie de anjo da morte, vetor de uma vingança cega das mulheres vitimadas por séculos de opressão. Ao menos essa foi minha leitura. Outras são possíveis, como ocorre com bons filmes dessa natureza.
O que surpreende é saber que esse é o primeiro longa-metragem de Meryam Joobeur, indicada ao Oscar de curta-metragem ficcional por Ikhwène, de 2018. Um talento a ser acompanhado de perto.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

