Da internet que nos prometeram à distopia em que vivemos
Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web, aponta para o sequestro de sua invenção por uma gigantesca máquina de extração de dados. Resumo: já não somos clientes, mas o produto. Como recuperar o controle e também resgatar a IA das mãos das big techs?
Publicado 01/10/2025 às 17:13 - Atualizado 01/10/2025 às 18:10

Por Tim Berners-Lee, no The Guardian | Tradução: Glauco Faria
Eu tinha 34 anos quando tive a ideia da World Wide Web pela primeira vez. Aproveitei todas as oportunidades para falar sobre ela: apresentando-a em reuniões, esboçando-a em um quadro branco para qualquer pessoa interessada, até mesmo desenhando a web na neve com um bastão de esqui para um amigo meu, no que deveria ser um dia tranquilo ao ar livre.
Insisti incansavelmente com os chefes da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern, acrônimo para Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire), onde trabalhava na época, que inicialmente acharam a ideia “um pouco excêntrica”, mas acabaram cedendo e me deixaram trabalhar nela. Fiquei fascinado pela ideia de combinar duas tecnologias de computador já existentes: a internet e o hipertexto, que pega um documento comum e o torna vivo ao adicionar “links”.
Acreditava que dar aos usuários uma maneira tão simples de navegar na internet iria desbloquear a criatividade e a colaboração em escala global. Se fosse possível colocar qualquer coisa nela, depois de um tempo, ela teria tudo.
Mas para que a web tivesse tudo, todos precisavam ser capazes de usá-la e deveriam querer fazê-lo. Isso já era pedir muito. Eu não poderia pedir também que pagassem por cada pesquisa ou upload que fizessem. Para ter sucesso, portanto, ela teria que ser gratuita. É por isso que, em 1993, convenci meus gerentes do Cern a doar a propriedade intelectual da world wide web, colocando-a em domínio público. Nós demos a web para todos.
Hoje, olho para a minha invenção e sou forçado a perguntar: a web ainda é gratuita? Não, não toda ela. Vemos um punhado de grandes plataformas coletando dados privados dos usuários para compartilhar com corretores comerciais ou até mesmo governos repressivos. Vemos algoritmos onipresentes que são viciantes por natureza e prejudiciais à saúde mental dos nossos adolescentes. Trocar dados pessoais pelo uso certamente não se encaixa na minha visão de uma web gratuita.
Em muitas plataformas, já não somos os clientes, mas sim o produto. Os nossos dados, mesmo que anonimizados, são vendidos a entidades que nunca pretenderíamos que os obtivessem, e que podem nos direcionar conteúdos e publicidade. Isto inclui conteúdos deliberadamente prejudiciais que conduzem à violência no mundo real, espalham desinformação, causam estragos no nosso bem-estar psicológico e procuram minar a coesão social.
Temos a capacidade técnica para devolver esse poder ao indivíduo. Solid é um padrão interoperável de código aberto que eu e minha equipe desenvolvemos no MIT há mais de uma década. Os aplicativos executados no Solid não possuem implicitamente seus dados – eles precisam solicitá-los a você, e você escolhe se concorda ou não. Em vez de estar em inúmeros lugares separados na internet, nas mãos de quem quer que os tenha revendido, seus dados estão em um único lugar, controlado por você.
Compartilhar suas informações de forma inteligente também pode libertá-las. Por que seu smartwatch grava seus dados biológicos em um sistema isolado e em um formato? Por que seu cartão de crédito registra seus dados financeiros em outro sistema isolado e em um formato diferente? Por que seus comentários no YouTube, postagens no Reddit, atualizações no Facebook e tweets são armazenados em lugares diferentes? Por que a expectativa padrão é que você não deva poder ver nada disso? Você gera todos esses dados – suas ações, suas escolhas, seu corpo, suas preferências, suas decisões. Você deveria ser o dono deles. Você deveria ser capacitado por eles.
Em algum ponto entre minha visão original para a web 1.0 e a ascensão das mídias sociais como parte da web 2.0, tomamos o caminho errado. Agora estamos em uma nova encruzilhada, na qual devemos decidir se a IA será usada para melhorar ou prejudicar a sociedade. Como podemos aprender com os erros do passado? Em primeiro lugar, devemos garantir que os formuladores de políticas não acabem repetindo o mesmo erro de “correr atrás do prejuízo” de uma década atrás, o que ocorreu com as mídias sociais. O momento de decidir o modelo de governança para a IA foi ontem, por isso devemos agir com urgência.
Em 2017, escrevi um experimento mental sobre uma IA que trabalha para você. Chamei-a de Charlie. Charlie trabalha para você como seu médico ou seu advogado, vinculado por leis, regulamentos e códigos de conduta. Por que as mesmas estruturas não podem ser adotadas para a IA? Aprendemos com as mídias sociais que o poder está nas mãos dos monopólios que controlam e coletam dados pessoais. Não podemos permitir que o mesmo aconteça com a IA.
Então, como avançamos? Parte da frustração com a democracia no século XXI é que os governos têm sido muito lentos para atender às demandas dos cidadãos digitais. O cenário da indústria de IA é extremamente competitivo, e o desenvolvimento e a governança são ditados pelas empresas. A lição das redes sociais é que isso não criará valor para o indivíduo.
Eu criei a World Wide Web em um único computador, em uma pequena sala. Mas essa pequena sala não era minha, era do Cern. O Cern foi criado após a Segunda Guerra Mundial pela ONU e pelos governos europeus, que identificaram um momento histórico e científico decisivo que exigia colaboração internacional. É difícil imaginar uma grande empresa de tecnologia concordando em compartilhar a World Wide Web sem nenhuma recompensa comercial, como o Cern me permitiu fazer. É por isso que precisamos de um órgão sem fins lucrativos semelhante ao Cern para impulsionar a pesquisa internacional em IA.
Eu cedi a World Wide Web gratuitamente porque achei que ela só funcionaria se fosse útil para todos. Hoje, acredito que isso seja mais verdadeiro do que nunca. A regulamentação e a governança global são tecnicamente viáveis, mas dependem da vontade política. Se formos capazes de reuni-la, teremos a chance de restaurar a web como uma ferramenta de colaboração, criatividade e compaixão além das fronteiras culturais. Podemos empoderar novamente os indivíduos e recuperar a web. Não é tarde demais.
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