Mercosul-Europa: As vozes que vêm das ruas

Acordo caminha para revisão e votação dos países-membros. Críticas vêm dos dois lados do Atlântico: movimentos sociais denunciam lógica neocolonial na América do Sul, danos irreversíveis na agricultura europeia e “processos opacos”. Agora, articulam nova onda de protestos

Foto: EFE/ Sergio Peréz
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Por Sergio Ferrari | Tradução: Rose Lima

No início de julho e após oito anos e 14 rodadas de negociações, os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) anunciaram a conclusão de um acordo de livre comércio com seus homólogos da Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), que reúne Islândia, Principado de Liechtenstein, Noruega e Suíça. Embora o processo de revisão legal, assinatura formal e ratificação por cada parlamento possa levar vários meses, o fim das negociações desse “miniacordo” envia um sinal político por elevação às partes que devem ratificar o “grande acordo”. Ou seja, o Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e todos os 27 Estados da União Europeia (UE). Embora formalmente aceito em dezembro de 2024, está passando pela fase de tradução e debate parlamentar nos dois blocos.

As negociações entre o Mercosul e a EFTA aparecem, assim, como um novo balão de ensaio para toda a negociação entre a América do Sul e a Europa, criticada por organizações camponesas e sindicais, bem como por Organizações Não Governamentais de cooperação ambiental e de desenvolvimento. Essas críticas, na época, se concentraram no “sigilo” da discussão, especificamente, no fato de que um punhado de negociadores — que nem sequer incluía os próprios parlamentares nacionais — eram os únicos que sabiam das propostas iniciais do tratado. Agora, estão se concentrando nos conteúdos essenciais que os movimentos sociais consideram arriscados para o meio ambiente, bem como para o campesinato e para os trabalhadores de ambos os lados do Atlântico.

Mercosul-EFTA, o “pequeno” acordo

O Acordo de Livre Comércio Mercosul-EFTA visa criar uma área de livre comércio de quase 300 milhões de pessoas. De acordo com a própria declaração do Mercosul, “Ambos os lados se beneficiarão de um melhor acesso ao mercado para mais de 97% de suas exportações, o que se traduzirá em aumento do comércio bilateral e vantagens para empresas e indivíduos”. Seu objetivo é cobrir praticamente todas as áreas de atividades do intercâmbio. Regerá o comércio de bens, serviços, investimentos, direitos de propriedade intelectual, compras governamentais, concorrência, medidas sanitárias e fitossanitárias, barreiras técnicas ao comércio, questões jurídicas e horizontais, incluindo a resolução de controvérsias. Também incorpora um capítulo sobre comércio e desenvolvimento sustentável que os críticos consideram formal e insuficiente.

A Suíça, um dos países mais interessados em tornar o Tratado uma realidade, está esfregando as mãos de alegria. Em 2024, as exportações suíças para os países do Mercosul totalizaram 4,9 bilhões de dólares, enquanto suas importações, sem contar o comércio de ouro, foram cinco vezes menores. Embora a balança comercial já fosse muito positiva para a Confederação Suíça, a partir desse novo acordo — e de acordo com seus próprios cálculos iniciais — quase 95% de suas exportações para os países do Mercosul estariam completamente isentas de tarifas. Por sua vez, a Suíça concederia ao Mercosul vinte e cinco cotas bilaterais para produtos agrícolas sensíveis, ou seja, se comprometeria a importar uma certa quantidade de mercadorias de sua contraparte latino-americana. Berna garantiu a seus cidadãos que essas cotas de importação “são sustentáveis para a agricultura suíça”.

O “grande” acordo Mercosul-União Europeia na mira

A União Europeia e os países do Mercosul concordaram com um tratado em dezembro de 2024, após quase quinze anos de negociações. Agora, ele tem que ser ratificado por cada um dos parlamentos sul-americanos e pelos 27 países europeus, bem como pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu. No entanto, algumas partes do acordo só poderiam entrar em vigor provisoriamente com a assinatura da instituição supraeuropeia e da sua homóloga sul-americana. Se aprovado definitivamente, esse seria um dos acordos de livre comércio com maior impacto internacional, representando cerca de 700 milhões de pessoas em países que representam quase um quarto do Produto Interno Bruto mundial.

A última palavra, no entanto, ainda não foi dita. Vários governos europeus, incluindo a França, a Áustria e a Polônia, se opõem, enquanto outros, como a Bélgica, podem se abster (até agora, a Itália e a Holanda estão céticas). Para bloquear o acordo, é necessário um mínimo de quatro países que, em conjunto, representem 35% da população da UE.

Importantes atores sociais se opõem abertamente a esse tratado há anos, considerando-o “um acordo tóxico para os agricultores, para o meio ambiente e para os direitos sociais e humanos aqui [na Europa], bem como nos países do Mercosul”. Inúmeros “movimentos sociais, ONGs, cidadãos, agricultores, ativistas, sindicatos, movimentos estudantis, mutualidades, associações ambientais e associações de promoção da saúde”, entre outros, acabam de convocar uma mobilização no Bairro Europeu de Bruxelas (sede do executivo da UE) para 4 de setembro. Embora a votação no Conselho da União Europeia possa ocorrer em meados desse mês, é provável que a data exata só seja anunciada de última hora, algo que preocupa essas organizações. Segundo eles, esses “processos opacos” pressupõem “tentativas de enfraquecer nosso movimento”. Por isso, argumentam, a necessidade imperiosa de mobilizar-se. Além disso, eles explicam que “alguns governos [da UE] estão tentando levar o acordo adiante com um anexo sobre o clima, supostamente destinado a responder às críticas”. No entanto, argumentam os organizadores, “esse anexo não modificaria de forma alguma os impactos reais sobre o meio ambiente, os direitos humanos e a agricultura, tanto aqui quanto nos países do Mercosul”.

Ira social em ascensão

Em meados de julho, quatro das principais organizações rurais da Europa enviaram uma carta aos formuladores de políticas da UE pedindo-lhes que rejeitassem o acordo comercial UE- Mercosul em sua forma atual. Tal acordo, argumentaram, poderia causar “danos irreversíveis” a setores vulneráveis da agricultura europeia e colocar em risco a soberania alimentar dos países sul-americanos. Seus signatários são o Conselho Europeu de Jovens Agricultores (CEJA), o Comitê de Organizações Profissionais Agrícolas, a Confederação Geral de Cooperativas Agrícolas da União Europeia (COPA-COGECA), a Coordenadora Europeia Via Campesina (ECVC) e a Federação Europeia dos Sindicatos de Alimentação, Agricultura e Turismo (EFFAT), organizações que representam uma ampla diversidade de comunidades rurais e trabalhadores do setor agroalimentar no continente.

Seus pares latino-americanos também expressaram sua rejeição ao tratado por anos. Já em fevereiro, as mulheres da Via Campesina marcaram claramente o terreno ao afirmar que, embora “a equipe diplomática do governo Lula tenha proposto rever alguns aspectos, eles não mudam a essência da estrutura neocolonial do acordo”. Por isso, disseram, “é urgente entender a magnitude das violações sociais planejadas e também analisar a ameaça aos direitos das mulheres, especialmente das mulheres no campo, nas águas e nas florestas”. Por outro lado, e não menos preocupante, “O pilar comercial do acordo reitera assimetrias históricas, uma vez que estabelece tarifas externas desfavoráveis aos povos sul-americanos [ao privilegiar] o antigo intercâmbio de bens minerais e agrícolas produzidos pelo Mercosul por bens industrializados da Europa, como veículos, máquinas e agrotóxicos”.

No entanto, a oposição não vem apenas dos movimentos sociais do campo. De fato, na última semana de julho, a Central Única dos Trabalhadores do Brasil (CUT) e a Coordenação Sindical do Cone Sul (CCSCS) entregaram pessoalmente uma carta à delegação do Comitê de Comércio Internacional (INTA) do Parlamento Europeu para expressar sua oposição ao atual Acordo Mercosul-UE. Parlamentares europeus e diversas organizações da sociedade civil latino-americana, incluindo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil, participaram da cerimônia de entrega desse documento na cidade de São Paulo. Elaborado em colaboração com a Confederação Europeia de Sindicatos (CES), denuncia “A falta de transparência nas negociações, a ausência de participação social, o uso de linguagem inacessível e os riscos concretos que o acordo representa para os trabalhadores, para a indústria regional e para o meio ambiente”. Os sindicalistas consideram que o tratado aprofunda uma lógica neoliberal e neocolonial, favorecendo as grandes corporações em detrimento do desenvolvimento sustentável e da integração soberana dos países do Mercosul. Caso se concretize, acrescentam, provocará a desindustrialização, a redução da produção nacional e uma maior dependência das importações de produtos manufaturados europeus.

Após 25 anos de discussões, a América do Sul e a Europa conseguirão passar a pílula amarga de um acordo contestado por vários Estados e repudiado por importantes movimentos sociais em ambos os continentes? Uma pergunta em aberto, muito difícil de responder e sobre um pano de fundo alarmante. Assim como a ofensiva tarifária global lançada nos últimos meses pelo protecionismo trumpiano, que promove uma nova dinâmica comercial e política que poderia jogar a favor daqueles que apostam em um “mau acordo” Mercosul-UE como a melhor opção para “nenhum acordo”.

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