Como a ditadura do gerencialismo oprime os professores
Categoria enfrenta precarização, desvalorização e ataques políticos coordenados pela extrema direita. Agora, são avaliados por softwares de “gestão de negócios”. Efeitos: profissionais temporários já são maioria na rede estadual
Publicado 06/08/2025 às 16:33 - Atualizado 06/08/2025 às 16:34

Por Ricardo Normanha, no Blog da Boitempo
No dia 6 de agosto celebra-se o dia dos e das profissionais de educação no Brasil. A comemoração foi estabelecida por lei de 2014 com o propósito de dar visibilidade à categoria e enfatizar a necessidade de sua valorização. O texto da lei é sintético, com apenas dois artigos. Deles não se desdobram outras medidas ou ações que possam, efetivamente, cumprir com o objetivo de reconhecimento dessas trabalhadoras e trabalhadores. A despeito da ausência de caracterização no texto da lei, é fundamental frisar que se trata de um grupo diverso no que se refere às diferentes categorias profissionais: docentes, gestores, profissionais de apoio escolar, agentes de inclusão, merendeiras, cuidadoras, berçaristas. Ressalta-se ainda a predominância feminina no setor – como em outras profissões ligadas ao cuidado —, fator historicamente associado à desvalorização profissional.
Trata-se, portanto, de um momento simbólico, mas não isolado, para refletir sobre os principais desafios cotidianos dessa categoria. Trata-se de uma série de desafios estruturais, agravados por políticas públicas que reforçam as condições precárias de trabalho. É uma tarefa árdua selecionar os principais entre eles, numerá-los e sintetizá-los em um texto curto como este. Mas, mesmo sob o risco de cair em simplificações, vale o esforço para que sirva como elemento de reflexão e, principalmente, para a ação política coletiva.
Desvalorização das carreiras, baixos salários e precarização das condições de trabalho
A precariedade salarial e as condições de trabalho na educação pública são problemas estruturais há décadas. Ainda que os números apresentem um cenário no qual a remuneração de docentes da rede pública seja, ao longo da vida, superior ao de profissionais da rede privada, especialmente em função dos salários oferecidos pela administração federal (Institutos Federais e Universidades), é notório que, em relação a outros setores profissionais, o campo da educação é marcado por grandes distorções no que se refere aos rendimentos e planos de carreira.
Um importante indicador é o Piso Nacional do Magistério, que hoje encontra-se no valor de R$4.867,77 para a jornada de 40 horas semanais. Apesar do último reajuste do piso ter sido acima da inflação, o valor ainda é significativamente baixo. Além disso, muitos estados e municípios não cumprem o piso estabelecido por lei. Segundo o levantamento do Observatório do Piso do Magistério, iniciativa da deputada federal Luciene Cavalcanti (PSOL-SP), mais de 750 municípios do país pagam salários abaixo do piso, sendo 344 só no estado de São Paulo.
A precarização do trabalho docente e de todas e todos os profissionais da educação nas redes públicas é um projeto político de longa data. Diversos estudos evidenciam décadas de deterioração progressiva, especialmente a partir dos anos 1990, quando as reformas neoliberais implementadas pelo PSDB no governo federal — e em vários estados, como São Paulo, governado pelo partido por quase 30 anos — agravaram as condições de trabalho e a qualidade do ensino público. No estado de São Paulo, em especial, são vários os fatores de precarização do trabalho docente e as leis que a impulsionam, mostrando que a rede pública paulista enfrenta carga excessiva, contratos precários e congelamento salarial. A partir dos anos 2000, leis e decretos estaduais “sofisticaram” esse processo, ampliando jornadas, flexibilizando contratos e atrasando reajustes, além de impor controle via avaliações e bonificações. Mais recentemente, conforme aponta a pesquisadora Stephanie Fenseslau, a Reforma do Ensino Médio e a introdução das plataformas digitais tem dado novos contornos à precarização do trabalho dos e das profissionais da educação pública.
Já o Censo Escolar 2024 revela que, pelo terceiro ano consecutivo, os professores temporários são maioria nas redes estaduais de ensino, representando 52% do total de docentes. A situação reflete a falta de políticas de valorização, como planos de carreira e reajustes salariais, que poderiam atrair e reter profissionais concursados. Estados como Bahia, Maranhão e Pará têm os maiores índices de contratações temporárias, ultrapassando 70% do quadro docente. Nesse sentido, a precarização do trabalho docente, marcada por baixos salários e instabilidade, impacta diretamente a qualidade da educação. Apesar de alguns estados alegarem dificuldades orçamentárias para realizar concursos, profissionais da educação defendem que a efetivação é essencial para garantir direitos trabalhistas e melhorar as condições de trabalho e ensino.
Pressão por produtividade, metas e métricas
Outra realidade enfrentada pelos e pelas profissionais da educação pública, em todos os níveis de ensino, é a gestão do trabalho marcada pelos princípios do gerencialismo. A partir da década de 1990, com o avanço do neoliberalismo em meio às transformações do capitalismo global, construiu-se um discurso que procurava diagnosticar e justificar as alegadas falhas do modelo de “regulação política da sociedade“. No campo das reformas do setor público, esse ideário consolidou a lógica da primazia do mercado como o melhor — e único — mecanismo para distribuição de recursos, supostamente capaz de gerar equidade, justiça social e liberdade individual.
Dentro dessa lógica, o modelo da Nova Gestão Pública — que propõe transplantar métodos da iniciativa privada para o governo, visando eficiência operacional, corte de gastos e melhoria na entrega de serviços (tratando cidadãos como consumidores e funcionários públicos como administradores) — levou, entre os anos 1990 e início dos 2000, a profundas transformações na máquina estatal. Essas mudanças resultaram num padrão de administração pública que segregou as funções executivas das atividades essenciais do Estado, tratando-as como esferas independentes, e implementou em todas as esferas do setor público a lógica empresarial.
Na educação, esse fenômeno se expressa de diversas formas, desde a privatização e terceirização de atividades fundamentais até a adoção de formas de gestão do trabalho com base em metas, métricas e produtividade, às quais são atreladas remuneração e bonificações. Em alguns estados, como Paraná e São Paulo, os mecanismos tradicionais de controle e gestão do trabalho estão sendo incrementados com a adoção de ferramentas digitais que aferem, em tempo real, se professores e professoras estão cumprindo as metas estabelecidas e impostas pelas Secretarias de Educação. Uma dessas ferramentas é o Super BI, software utilizado para gestão de negócios, transposto para a educação pública, e que se transformou no novo capataz digital dos trabalhadores e trabalhadoras da educação.
Nesse sentido, a lógica das plataformas digitais na educação introduz um regime de monitoramento permanente de professoras e professores, gestoras e gestores e estudantes, gerando um clima permanente de cobrança e monitoramento. A prática educativa passa a ser mensurada por indicadores de desempenho numéricos, transformando a busca por qualidade pedagógica em mero alcance de metas quantificáveis. Essa dinâmica transfere para indivíduos a responsabilidade pelos resultados de aprendizagem, ignorando as complexas dimensões sociais, econômicas e culturais que impactam a educação. Consequentemente, profissionais da educação e discentes são julgados por sucessos ou fracassos dentro de um sistema que frequentemente falha em prover condições adequadas para uma educação de qualidade e socialmente referenciada.
Esse aparato de controle e vigilância está intrinsecamente ligado à cultura da quantificação e ao ensino orientado por objetivos mensuráveis — traços fundamentais tanto das plataformas digitais quanto do projeto político que as sustenta. A educação, nesse modelo, se converte em um processo gerencial onde dados e estatísticas substituem a reflexão pedagógica substantiva, e o trabalho pedagógico encontra-se subsumido às ferramentas de controle digital.
Assédio moral e a cruzada contra a educação (e profissionais da educação)
Nos últimos anos, o crescimento da extrema direita em nível global tem chamado a atenção e tornou-se objeto de estudo em diversas áreas. No Brasil, esse fenômeno ganhou força a partir de 2013, influenciando a formulação e execução de políticas públicas, sobretudo na educação. A escolha por focar nas políticas educacionais não é aleatória, pois está ligada a um projeto mais amplo de transformação ideológica mundial. Esse movimento busca questionar e até desmontar os princípios modernos e iluministas, que fundamentam a democracia e a noção de direitos.
Segundo a professora Dirce Djanira Pacheco e Zan, da Faculdade de Educação da Unicamp, o avanço da extrema direta sobre a educação pode ser sintetizado em quatro eixos: 1) a tentativa de controle do pensamento crítico; 2) a intenção de formatação ideológica; 3) a fragilização do Estado (por meio do desinvestimento público e da abertura de espaço para o setor privado); e 4) a influência e interferência de organismos internacionais ligados ao imperialismo.
Iniciativas como o projeto Escola Sem Partido, as inúmeras propostas legislativas que têm como alvo uma suposta “ideologia de gênero”, os programas de Escolas Cívico-Militares e a terceirização e privatização de áreas estratégicas para a educação pública são instrumentos fundamentais para que o consórcio estabelecido entre setores conservadores, fundamentalistas religiosos, extrema direita e o capital financeiro encontrassem nos e nas profissionais de educação o inimigo interno a ser combatido. O mapeamento Educação sob Ataque no Brasil, realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, analisou proposições legislativas em todo o Brasil, abrangendo a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, as Assembleias Legislativas estaduais e a Câmara Legislativa do Distrito Federal e apontou mais de 200 ataques à educação com repercussão local, regional e nacional em 10 anos de levantamento (2013-2023).
Desde então, a ameaça constante das patrulhas ideológicas da extrema direita tem feito parte do cotidiano daqueles e daquelas que atuam no sentido de construção de práticas pedagógicas emancipatórias. Pais, mães e responsáveis legais, alunas e alunos foram impelidos a se transformarem em delatores. O Movimento Brasil Livre, que abriga em suas fileiras assediadores, pedófilos e até assessores ligados a neonazistas, foi — e ainda é — protagonista dessa cruzada contra a educação e, principalmente, contra os e as profissionais de educação, vide casos recentes em que membros do grupo invadiram universidades públicas para confrontar estudantes e docentes.
Trabalhadores e trabalhadoras da educação e a batalha por direitos
A análise de alguns dos desafios enfrentados por profissionais da educação pública no Brasil revela um cenário marcado por precarização estrutural, desvalorização sistemática e ataques políticos coordenados. A data simbólica de 6 de agosto, embora importante para visibilizar a categoria, não se traduz em políticas efetivas de reconhecimento, especialmente para uma força de trabalho majoritariamente feminina, que sustenta o sistema público em condições adversas.
Nesse sentido, três eixos críticos emergem com urgência:
- a degradação das condições materiais, expressa em salários aviltantes (com descumprimento do já rebaixado Piso Nacional), terceirização e crescente flexibilização contratual, expressa pelo número de profissionais em contratos temporários e precários e reformas administrativas que intensificam a exploração;
- a ofensiva ideológica da extrema direita, que transforma escolas e universidades em campos de batalha, criminaliza o pensamento crítico através de projetos como o Escola Sem Partido e instrumentaliza o fundamentalismo religioso para desmontar conquistas democráticas;
- a ditadura do gerencialismo, que substitui o projeto pedagógico por metas quantitativas, converte plataformas digitais em ferramentas de vigilância, individualizando fracassos estruturais, aprofundando desigualdades históricas.
Tais desafios não são apenas conjunturais, mas fruto de um projeto político neoliberal — e ultraliberal — em curso desde os anos 1990 e aprofundado na segunda década dos anos 2000, agravado recentemente por reformas como a do Ensino Médio e o processo de financeirização da educação. A resistência exige articulação ampla: da pressão por concursos e planos de carreira à defesa intransigente da educação pública como direito fundamental. Como demonstram as greves docentes e a mobilização contra os ataques conservadores, somente a ação coletiva poderá reverter ou, ao menos, fazer frente a esse cenário, garantindo não apenas melhores condições de trabalho, mas um projeto de educação pública com práticas emancipadoras, antirracistas e antipatriarcais. Sem a valorização radical dos e das profissionais da educação, qualquer projeto de sociedade democrática e justa será uma promessa traída.
Ricardo Normanha é pai, sociólogo, professor e pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Faculdade de Educação da Unicamp, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC), membro do Comitê São Paulo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Observatório das Tecnologias e Inteligência Artificial na Educação (Edutecia).
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