Poderão os países tributar os super-ricos?
Pressões sociais desafiam um grande tabu do neoliberalismo. Os impostos sobre a riqueza voltam a ser considerados, depois de demonizados por décadas. Em Paris, uma escola até há pouco ignorada assumiu a liderança acadêmica desta combate
Publicado 28/07/2025 às 18:20 - Atualizado 28/07/2025 às 18:35

Por Simon Kuper, no Financial Times | Tradução: Antonio Martins
A Escola de Economia de Paris (PSE) fica nos terrenos sombrios do que foi a École Normale Supérieure feminina, escondida na extremidade menos glamourosa da cidade. Fundada apenas em 2006, só oferece cursos de pós-graduação e não pode competir com os US$ 53 bilhões de doações recebidos por Harvard. Ainda assim, é extraordinariamente influente. Sua presidente, Esther Duflo, é vencedora do Prêmio Nobel de Economia. Voltou ecentemente a sua cidade natal, após anos em Harvard. O cofundador da PSE, Thomas Piketty, fez mais que qualquer outro economista para colocar a desigualdade na pauta da profissão.
Há duas décadas, ele também orientou a dissertação de mestrado do atual astro da escola, Gabriel Zucman. Tema: saber se impostos altos incentivam os ricos a emigrar. Hoje, Zucman — de aparência juvenil aos 38 anos e vencedor da Medalha John Bates Clark (que costuma anteceder um Nobel) — lidera um movimento para taxar os super-ricos globalmente. O Observatório Fiscal da União Europeia, dirigido por Zucman, organizou em abril, na PSE, uma conferência para a pequena comunidade — porém, global — que se mobiliza em torno desse imposto.
Além de economistas, havia representantes do FMI, do governo brasileiro, do partido trabalhista da da Bélgica e uma funcionária da OCDE que participou a título pessoal, como “nerd tributária”.Alunos da PSE mais focados em maximizar lucros entraram de fininho para aproveitar o bufê de almoço parisiense gratuito… A mensagem do evento: os super-ricos pagam menos impostos que pessoas comuns. Zucman e seus seguidores querem mudar isso.
Apesar de os palestrantes serem quase todos homens, este campo teórico foi inaugurado por uma mulher. Em 1941, Helen Tarasov, funcionária do Departamento de Comércio dos EUA, coescreveu uma monografia intitulada Quem Paga os Impostos?Demorou quase 80 anos para estimar quanto os super-ricos de fato pagam.”Os bilionários são muito visíveis, exceto nas estatísticas públicas”, disse Lucas Chancel, da Sciences Po, à plateia. Seus rendimentos declarados são modestos, pois sua riqueza vem não do trabalho, mas de participação acionária.Os super-ricos quase nunca pagam muitos impostos sobre essas ações. A maioria é “líquida” o suficiente para deixar os lucros nas empresas, em vez de retirá-los como dividendos tributáveis. (A Amazon, por exemplo, nunca pagou dividendos em dinheiro; a Alphabet só o fez pela primeira vez em 2023). A riqueza cresce sem tributação, muitas vezes oculta em holdings.
Como mapeá-la? A partir de 2018, Piketty, Zucman e Emmanuel Saez lideraram um esforço global para medir toda a renda nacional. Isso exigiu cruzar muitas bases de dados distintas: registros de acionistas, declarações fiscais, registros das atividades internacionais de empresas e até as listas de bilionários compiladas pela revista Forbes e outras publicações.
Piketty e sua equipe criaram a Base de Dados da Desigualdade Mundial [World Inequality Database (WID)], com contribuições de mais de 200 economistas. Os dados revelaram que os super-ricos são mais ricos e numerosos do que se imaginava. Verificou-se desigualdade é gigantesca na África do Sul, onde o 1% mais rico detém 55% da riqueza nacional.
Mas a conferência de abriu foi aberta por apresentações sobre Brasil, Holanda e EUA. As revelações foram supreendentemente simulares. Mostraram padrões parecidos: os super-ricos de quase todos os países pagam menos impostos que os cidadãos comuns. A apresentação de Zucman sobre os EUA foi típica. Entre 2018 e 2020, a alíquota média efetiva de imposto de renda foi de 30,7%, mas os 100 cidadãos mais ricos pagaram pouco mais de 20%. Os favores que eles obtiveram Trump em 2018 pioraram o cenário – porém, o problema é muito mais antigo.
Em 2012, Warren Buffett já reclamava que sua secretária trabalhava “tanto quanto ele, e pagava o dobro de impostos”. Não à toa, a riqueza dos 400 norte-americanos mais ricos saltou de 2% para 20% do PIB, a partir de 1982.
Os ricos sonegam impostos até depois da morte. “O imposto sobre herança quase desapareceu nos EUA”, disse Zucman. A taxa efetiva paga por herdeiros diretos é 7%, contra 40% da alíquota legal. No Reino Unido, a lógica é similar, segundo Arun Advani. Já o Brasil tem sua desigualdade extrema agravada pelo sistema tributário.Quase metade da arrecadação no país vem de impostos sobre consumo, diz Theo Palomo.Isso penaliza os pobres, que gastam quase toda sua renda. E o Brasil não tributa dividendos — majoritariamente destinados aos ricos.
Enquanto os brasileiros comuns pagam uma alíquota efetiva de impostos entre 45-50%, o 1% mais rico paga cerca de 20 pontos percentuais a menos. Zucman afirma que nenhum país tributa efetivamente os super-ricos.
Um participante resumiu: “A partir de todas estas apresentações, parece que a solução é taxar bilionários…”. Sua fala foi cortada por risos. Sim, essa é a mensagem. E em breve pode virar política pública.
O projeto de Zucman é que todo bilionário pague impostos anuais equivalentes a pelo menos 2% de sua riqueza. Esse, explicou ele, é o patamar em que eles pagariam, ao fim das contas, a mesma alíquota sobre a renda que os demais. Se algum super rico já paga 2% via impostos de renda e outros em seu país, “está tudo certo, não precisa pagar mais”. Se pagar menos, qualquer país onde ele faz negócios poderá cobrar impostos adicionais, até atingir 2%. Por exemplo: Brasil ou França poderiam taxar o fundador da Amazon, Jeff Bezos, cuja empresa é norte-americana mas opera nesses países.
“É uma proposta ousada, mas modesta ao mesmo tempo”, disse Zucman. Ele explicou que seu “ponto de partida” foi aprender com o “fracasso” dos impostos sobre riqueza europeus anteriores. Enquanto esses tributos atingiam os milionários, a proposta dele isentaria até quem tem €4,8 milhões (R$ 31,15 milhões, o patamar para entrar no 0,1% mais rico global). Está longe de ser uma revolução bolchevique. Aliás, a alíquota de 2% nem reduziria a desigualdade, já que a riqueza dos bilionários cresce 7% ao ano. Piketty, que apoia o plano do ex-orientando, retruca que é apenas “um primeiro passo útil”.
A União Europeia há muito apoia as pesquisas de Zucman. Mas seu grande passo à frente do economista foi dado em 2023, quando o Brasil, anfitrião do G20, convidou-o para apresentar o plano a ministros da Fazenda.
O Brasil pressionou até Javier Milei, o presidente ultraliberal da Argentina, a assinar uma declaração: “Com total respeito à soberania tributária, buscaremos cooperar para assegurar que os ultra-ricos sejam efetivamente tributados”.Isso gerou um impulso global modesto. O Brasil levou a proposta ao comitê tributário da ONU e à OCDE.
Internamente, o governo brasileiro quer tributar os 141 mil nacionais com renda média acima de R$ 1 milhão (US$ 172 mil). Também planeja taxar dividendos. Na França, a Assembleia Nacional aprovou em fevereiro um imposto de 2% para fortunas acima de €100 milhões. O Senado francês talvez rejeite a “taxa Zucman”, mas o governo quer adotar uma versão mais branda (0,5%). O Reino Unido acabou com o regime “non-dom” (que isentava renda e lucros de estrangeiros), e Zucman está oferecendo sua proposta a integrantes de outros governos europeus.
Ele está otimista. Pesquisas mostram amplo apoio popular ao imposto mínimo de 2%. Zucman diz que poucos partidos ousam se opor, pois isso significaria defender “o direito de bilionários pagarem zero”. E mesmo que comece com alíquota baixa, o imposto mínimo pode ser aumentado depois. O imposto global, acrescenta Zucman, funcionará mesmo se EUA, sob Trump, o rejeitarem. Segundo a proposta, os ricos podem ser taxados em qualquer lugar onde operem.Quem fugir para paraísos fiscais pode pagar um “imposto de saída”.Se residentes de longa data na França forem para, por exemplo, para a Suíça, Zucman propõe que continuem sendo taxados por Paris durante anos. Os céticos permanecerão descrentes…
Um cenário possível é que países aumentem outros impostos sobre os ricos, sem adotar tributação específica sobre a riqueza. Afinal, como observa Advani, os Estados já têm muita dificuldade em aplicar os impostos atuais. O início pode ser taxar mais intensamente os ganhos de capital e heranças. Isso estaria alinhado com o movimento de Zucman.
Piketty, que ouviu todas as exposições atento, subiu ao palco no final para abençoar o movimento. Ele espera uma “onda de reformas”, como em 1910-1940, quando muitos países desenvolvidos adotaram impostos de renda “muito progressivos”. Zombou: “Sempre haverá quem diga: ‘Os ricos são poderosos demais, nada mudará'”.Isso foi verdade por décadas, mas os fatos novos revelam que a PSE é uma adversária formidável.
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