Brics entre a ambiguidade e a consolidação
Diante das ameaças de Trump, bloco reafirma soberania de seus membros, condena Israel e almeja maioria no Conselho de Segurança da ONU. Suas pautas principais – uma alternativas ao dólar e a transição energética real – despertam a ira das potências ocidentais
Publicado 14/07/2025 às 18:18

1. A XVII CÚPULA DO BRICS realizou-se no Rio de Janeiro sob o signo do esvaziamento e da tentativa de se retirar do bloco em formação sua principal característica, a de peça importante no desafio à hegemonia atlântica, nucleada pelos Estados Unidos. A ausência de Xi Jinping, presidente de seu membro mais importante, o impedimento da viagem de Vladimir Putin e a ausência das principais lideranças do Irã, do Egito e de convidados, como presidentes da Turquia e do México são sinais de incômodos internos. Uma das causas parece ser a ambiguidade crescente da política externa brasileira e a percepção geral de que a prioridade do país está no G20. A injustificável presença de Lula na reunião do G7, no Canadá, além do reiterado veto à adesão da Venezuela podem entrar na conta.
2. SOB O ARGUMENTO DA REALIZAÇÃO da COP30, a conferência do meio ambiente em Belém, no final do ano, Brasília decidiu antecipar em quase quatro meses o evento. Não há uma data específica para os encontros, mas, em geral, eles até aqui nunca foram realizados em intervalo menor que um ano. Como se não bastasse, o Itamaraty decidiu exibir total falta de tato e mostrar que sua diretriz não é a da busca de autonomia em relação à potência hegemônica. O chanceler Mauro Vieira, com sua reluzente falta de brilho, decidiu escrever às vésperas da cúpula, um artigo na revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), espécie de think tank conservador, definindo os objetivos nacionais no mundo.
3. ESCREVE O MINISTRO: “A atuação dos países do BRICS em foros como o G20 desmente na prática o estereótipo segundo o qual se tratava de uma formulação com viés antiocidental. O absurdo do estereótipo, derivado de análises apressadas ou interessadas, não resiste ao fato de que nenhum bloco que reúna integrantes com a trajetória diplomática e o perfil de países como o Brasil, a África do Sul e a Índia pode ser considerado contrário ao Ocidente. Por geografia, por laços culturais e por trajetória, o Brasil está claramente identificado com o Ocidente, mas não abre mão de seu papel crítico em relação à atual desordem mundial, nem tampouco da sua habilidade de se relacionar com todos os países do mundo que desejem nos ter como parceiro”.
4. A IDEIA JÁ HAVIA SIDO VENTILADA em entrevista na cúpula de Kazan, em outubro de 2024, e reiterada na Folha de S. Paulo, no dia da abertura da reunião do Rio. Vale perguntar: a troco de quê, a partir do nada, Vieira lança esta afirmação? Ao apontar Brasil, África do Sul e Índia, ele claramente tenta dividir o organismo em dois, possivelmente para dar alguma satisfação a Washington. É inacreditável.
5. APESAR DISSO, O BRICS vem tendo papel crescente no contexto global pelo peso dos componentes, apesar de seu caráter de fórum dotado de poucas formalidades. Não se trata de um bloco econômico ou político capaz de realizar ações conjuntas. Inexiste sede ou estatutos e suas iniciativas se concretizam em reuniões de cúpula anuais em distintos continentes. Isso não impede a construção de estruturas institucionais como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o Arranjo Contingente de Reservas (ACR). Genericamente, o BRICS pode ser entendido como expressão do Sul Global, que se afirma também pelo contraste. É possível reconhecer sua importância pela oposição que vem suscitando em Washington.
6. SUAS CÚPULAS PRECISAM ser examinadas como resultado de longos, complexos e variados processos de negociações entre países muito distintos, tanto social e economicamente, quanto por sua inserção planetária. O site da etapa brasileira informa que mais de 100 reuniões de diversos níveis e áreas precederam a XVII Cúpula. Assim, a análise deve levar em conta esse percurso, que gera extensos documentos repletos de nuances e distintas ênfases em cada tópico, em busca da construção de uma unidade nem sempre fácil.
7. GROSSO MODO, OLHANDO-SE para os membros originais, pode-se afirmar que Rússia e China buscam focar em temas que questionam a atual hegemonia global dos EUA, enquanto Brasil, Índia e África do Sul oscilam entre ampliar suas iniciativas internacionais e não criar arestas com os EUA. Se lermos os textos finais emanados de Kazan e do Rio, perceberemos no primeiro uma ênfase clara na demanda pelo uso de moedas locais em transações internacionais e a construção de mecanismos de compensação financeira alternativos ao sistema dólar. Essa foi a tônica do discurso de Vladimir Putin no último final de semana. Nas resoluções aprovadas no Rio, a carga maior fixou-se nas questões climáticas e de transição energética, mote do discurso de Lula na mesma ocasião. Em ambos as cúpulas, a guerra na Ucrânia não mereceu grande detalhamento, dadas as distintas visões existentes no conjunto, agora ampliado. Não é o caso da questão de Israel, que envolve Gaza, Irã e Estados Unidos. As tintas foram muito mais fortes contra o Estado sionista no encontro atual, embora nenhum dos textos mencionasse a ação direta de Washington, apesar da pressão iraniana.
8. SOBRE O CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU, há uma novidade: pela primeira vez, o BRICS aponta nominalmente as pretensões de Brasil e Índia para o comando da instituição. Assim, a constatação de uma possível “crise do multilateralismo” pede melhor qualificação. Se compararmos o mundo atual, com a emergência da China nos terrenos econômico-militar e a volta da Rússia como potência nuclear, ao unilateralismo estadunidense dos anos 1990-2000, veremos que o quadro é radicalmente distinto. Há um novo multilateralismo em construção que não cabe mais nos organismos multilaterais erigidos no pós-Guerra e ao longo da Guerra Fria. A fila de mais de trinta países que manifestam interesse em integrar o agrupamento atesta sua consolidação.
9. O MAIOR SINAL DESSAS TENSÕES são as destemperadas reações de Donald Trump, nos dias seguintes à cúpula: “Qualquer país que se aliar às políticas antiamericanas do BRICS será cobrado com uma tarifa adicional de 10%. Não haverá exceções a essa política”, ameaçou. Seu objetivo central é bloquear a eventual saída de países da economia do dólar.
10. LULA SAIU DE SUA AMBIGUIDADE habitual para desafiar o presidente dos EUA, afirmando a soberania e a independência dos membros do BRICS. Mas o futuro imediato da articulação não será fácil. No final do ano, o Brasil passa o bastão da presidência para a Índia. Narendra Modi não esconde sua aproximação com a Casa Branca, o que pode empalidecer o ritmo da construção de um polo importante no questionamento da hegemonia estadunidense no mundo. É pouco provável que China e Rússia passem recibo para a nova situação e sigam na busca articulações, por enquanto, extra-BRICS.
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