Brasil e big techs: Do servidor à servidão

É a lógica do “aluguel perpétuo”. País investe bilhões para armazenar dados públicos em corporações estrangeiras. Em uma cadeia opaca, intermediários invisíveis impedem auditorias e blindam big techs. Setor educacional é um dos mais capturados

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Por Sara Goes, no GGN

A soberania digital brasileira, hoje, está em estado crítico. E isso não é uma figura de linguagem ou uma provocação retórica. É o retrato cru que emerge do cruzamento entre duas pesquisas extensas e rigorosas: o relatório “Contratos, Códigos e Controle”, realizado por Ergon Cugler de Moraes Silva, Isabela Rocha, José Carlos Vaz, Julia Ribeiro de Almeida Veneziani e Camila de Camargo Modanez, e o dossiê técnico “A Nuvem é Pública?”, elaborado pela mesma equipe em parceria com a Coding Rights. Ambas escancaram um cenário de dependência estrutural, descontrole público e captura institucional das tecnologias de informação e comunicação no Estado brasileiro. Os dados são tão alarmantes quanto reveladores.

Entre janeiro de 2018 e junho de 2025, o setor público brasileiro gastou mais de R$ 23 bilhões em contratos com empresas estrangeiras de tecnologia. O valor, subestimado pela ausência de padronização nos dados oficiais, não inclui contratos de fundações universitárias, bancos públicos, estatais e empresas de economia mista, que poderiam elevar significativamente o montante. Só entre junho de 2024 e junho de 2025, o gasto foi de R$ 10,3 bilhões, distribuídos entre apenas 25 empresas, das quais quatro concentram quase 90% dos valores empenhados: Microsoft (42,79%), Oracle (28,02%), Google (10,34%) e Red Hat (8,69%). Essas quatro gigantes são responsáveis, sozinhas, por R$ 9,23 bilhões em contratos, firmados majoritariamente por meio de intermediários e revendas, dificultando o rastreamento público e mascarando os reais detentores do poder digital.

A situação não é apenas de dependência tecnológica, mas de verdadeira alienação soberana. Como mostram os artigos de Reynaldo Aragon sobre metaintermediários algorítmicos e infraestrutura da opacidade, não se trata apenas de quem fornece os serviços, mas de quem detém os meios invisíveis de mediação, decisão e controle. O Estado brasileiro, em vez de fomentar uma infraestrutura pública, federativa e democrática de dados e sistemas, optou por submeter seus processos mais sensíveis a plataformas proprietárias, estrangeiras, opacas e protegidas por legislações de outros países.

O exemplo das nuvens computacionais é emblemático. O uso crescente de soluções em cloud computing pelos órgãos públicos brasileiros ocorreu sem a definição de um plano nacional, sem diretrizes de interoperabilidade e, sobretudo, sem debate público. Os contratos com provedores estrangeiros de nuvem somaram R$ 9 bilhões no período analisado. Microsoft lidera com R$ 4,8 bilhões, seguida por Google (R$ 1,8 bilhão) e Amazon Web Services (R$ 1,5 bilhão). Todo esse volume foi contratado sem garantias claras de soberania sobre os dados, sem exigência de armazenagem local e sob o risco permanente de acesso extraterritorial via legislações como o Cloud Act dos Estados Unidos. Ou seja, o Brasil investe bilhões para armazenar dados públicos em infraestruturas privadas sob jurisdição estrangeira, abdicando de qualquer controle real sobre informações estratégicas de Estado.

O problema se agrava quando se observa a ausência quase completa de exigências de transparência. Apenas 0,26% dos contratos analisados incluíam cláusulas de código-fonte aberto. O uso de licenças livres foi a exceção, não a regra. Em mais de 11 mil contratos de licenciamento de software, totalizando R$ 5,9 bilhões, o modelo predominante foi o proprietário. A lógica que impera é a do aluguel perpétuo: o Estado paga caro por sistemas que não pode auditar, modificar, redistribuir nem entender. Um modelo que perpetua a dependência e inviabiliza o desenvolvimento tecnológico nacional.

Essa escolha não é técnica, é política. E tem consequências profundas, como já denunciamos, tanto nos meus artigos sobre manipulação digital e erosão da esfera pública, quanto nos ensaios de Reynaldo Aragon que escancaram a captura algorítmica do cotidiano estatal e social. A arquitetura digital do Estado é hoje um espelho da lógica neoliberal: fragmentada, terceirizada, mercantilizada e orientada por critérios de mercado, e não de interesse público. As tecnologias da informação, longe de neutras, operam como dispositivos de poder e controle, moldando os fluxos decisórios, os critérios de eficiência e a própria gramática da política pública.

Além dos contratos bilionários com as big techs, o estudo revela a multiplicação de intermediários invisíveis, que prestam serviços de revenda, customização e suporte sem qualquer rastreabilidade clara. São dezenas de empresas que aparecem como contratadas formais, mas que na prática funcionam como meros atravessadores das gigantes globais. Essa cadeia opaca de fornecimento enfraquece ainda mais a capacidade de controle do Estado, impede auditorias independentes e blinda as big techs de responsabilidades diretas.

Os dados da Receita Federal mostram que as big techs transferem bilhões para o exterior todos os anos, com práticas de elisão fiscal baseadas em licenciamento de propriedade intelectual, transfer pricing e acordos intragrupo. Entre 2017 e 2023, Google, Microsoft, Amazon e Meta enviaram juntas mais de R$ 75 bilhões para matrizes e subsidiárias fora do país. Parte desse montante veio, direta ou indiretamente, de contratos com o Estado brasileiro. Em outras palavras, o dinheiro público alimenta estruturas privadas transnacionais que, além de não pagarem impostos proporcionalmente, ainda corroem as bases de autonomia digital do país.

A situação é ainda mais grave quando olhamos para o setor educacional. Universidades públicas, que poderiam ser polos de inovação em tecnologias abertas e autônomas, estão cada vez mais capturadas por pacotes corporativos fechados. O uso de suites educacionais da Google, a contratação de servidores Microsoft e a migração para nuvens proprietárias estão destruindo a possibilidade de formação crítica e soberana em tecnologia. Em vez de formar desenvolvedores, formamos consumidores. Em vez de ensinar código, ensinamos login. Em vez de liberdade, cultivamos dependência.

Eu já alertei sobre esse processo quando denunciei a corrida desordenada por data centers no Nordeste, vendida como modernização, mas na prática orientada por isenções fiscais, consumo energético predatório e completa ausência de regulação pública. A promessa de desenvolvimento esconde um modelo de enclave informacional, em que nossos territórios são transformados em depósitos energéticos para plataformas estrangeiras. Reynaldo Aragon tem exposto essa lógica em seus artigos sobre o projeto ReData, revelando como a arquitetura desses centros de dados favorece a concentração, a vigilância e a intermediação privada das redes públicas. O Nordeste, que poderia ser base para uma infraestrutura digital soberana e popular, corre o risco de ser reduzido a colônia energética das big techs.

A pesquisa propõe alternativas concretas. Entre elas, destaca-se a criação de uma nuvem pública federada, baseada em universidades e instituições públicas, com governança democrática e armazenamento local de dados. Também defende a adoção prioritária de software livre, a exigência de código-fonte aberto nos contratos públicos, a formação de servidores públicos em tecnologias autônomas e a regulamentação ambiental e energética de data centers. Propõe ainda o uso estratégico das compras públicas como vetor de inovação soberana, com critérios de sustentabilidade, transparência e independência tecnológica.

Reynaldo Aragon e eu temos defendido publicamente uma proposta complementar e urgente: uma sobretaxa nacional sobre os lucros extraídos pelas big techs a partir da exploração de dados, interações e serviços digitais no território brasileiro. Trata-se de um instrumento de justiça fiscal e informacional, que reconhece o valor gerado pelas redes sociais, plataformas de busca, publicidade algorítmica e infraestrutura digital como atividade econômica tributável. Essa contribuição incidiria especialmente sobre empresas que operam no país mas mantêm estruturas jurídicas em paraísos fiscais, burlando o sistema tributário por meio de elisão e acordos de licenciamento. O recurso arrecadado seria destinado ao fortalecimento da infraestrutura pública de tecnologia, à ciência aberta e à construção de uma soberania digital compartilhada. Não se trata de punir a inovação, mas de impedir que ela continue sendo financiada à custa da precarização institucional e do esvaziamento da democracia.

Nada disso será possível sem confronto político. É preciso romper com a hegemonia do mercado como único critério de eficiência. É preciso disputar o sentido das palavras “inovação”, “governança”, “transformação digital”. É preciso reconstruir um projeto nacional de tecnologia, baseado no interesse público, na justiça informacional e na soberania popular.

Como já escrevemos, a soberania digital não é uma pauta técnica, mas uma trincheira política. O Brasil precisa decidir se continuará como colônia digital, alugando sua inteligência e terceirizando sua infraestrutura, ou se ousará construir uma democracia informacional de fato, com tecnologias públicas, abertas, auditáveis e alinhadas ao bem comum. A decisão é urgente. Porque cada contrato assinado, cada dado armazenado, cada algoritmo rodando em caixa-preta, nos afasta da possibilidade de decidir sobre o nosso próprio destino.

Estudo diagramado disponível (24p.): https://bit.ly/contratos-big-techs

Paper completo (83p.): https://bit.ly/contratos-big-techs-paper

Sara Goes é comunicadora, designer e nordestina antes de brasileira.

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