Data Centers: As big techs cobiçam o Nordeste

Brasil desponta como destino atrativo para instalação de gigantes servidores. Primeiro projeto no Ceará acende alerta. Dos impactos socioambientais ao neoextrativismo, Sul global arrisca-se como depósito de infraestrutura pesada que transfere lucros ao Vale do Silício

A Enegix, que opera na mineração de bitcoin no Cazaquistão: Foto Reprodução
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Por Lauro Accioly Filho, na Le Monde Diplomatique Brasil

Um debate em voga sobre os data centers e seus impactos ambientais suscita uma série de reflexões: a que custo desejamos manter e expandir esse aparato tecnológico? Uma rota desejável, contudo, não seria sua rejeição pura e simples, mas o planejamento mais adequado para reinventá-lo. Embora os artefatos tecnológicos sejam, em geral, concebidos por grupos e corporações que pouco consideram os olhares e as necessidades de regiões e populações periféricas, observa-se que a subversão criativa dessas tecnologias tem gerado mecanismos relevantes para repensar sua utilidade e aplicabilidade. Nesse sentido, uma proposta concreta seria ajustar a infraestrutura dos próprios data centers, integrando fontes de energia renovável — como painéis solares ou turbinas eólicas — a fim de reduzir sua pegada ecológica e torná-los mais sustentáveis. 

Contudo, essa não é a única problemática — nem sua única solução. Existe um aspecto menos visível, mas igualmente central, na materialidade da Inteligência Artificial: seu enraizamento em um extrativismo mineral intensivo, frequentemente ofuscado pela ênfase no extrativismo de dados. A infraestrutura que sustenta os sistemas de IA vai muito além da pilha técnica composta por algoritmos, hardware e redes: ela depende de uma cadeia global de suprimentos baseada na exploração de minerais críticos — como o lítio, o cobalto e as terras raras — essenciais para a produção de servidores, baterias e dispositivos computacionais. Assim, os data centers não são apenas “nuvens digitais”: são também territórios físicos ancorados em minas, trabalhadores explorados e ecossistemas ambientais degradados. 

Essa crescente demanda por minerais críticos também intensifica disputas geopolíticas já em curso, particularmente no contexto da rivalidade entre Estados Unidos e China. A dependência de Washington em relação a cadeias de suprimentos controladas por Pequim — especialmente no refino e processamento de elementos como lítio, cobalto e terras raras — tem gerado preocupações crescentes em torno da segurança energética e tecnológica. Nesse cenário, a transição energética global, embora urgente, tem sido mobilizada como justificativa para reconfigurar alianças estratégicas, ampliar acordos comerciais seletivos e reposicionar investimentos em mineração e infraestrutura tecnológica em países do Sul Global. Essa reconfiguração se insere em uma lógica de contenção e competição, refletida nas medidas adotadas durante a guerra tarifária entre EUA e China, e reforça o caráter instrumental da geopolítica dos dados e dos minerais na disputa por soberania tecnológica. 

O extrativismo por trás dos data centers: impactos “geolocais” e socioambientais 

A dimensão técnico-material e o ciclo de vida da inteligência artificial revela dinâmicas geopolíticas e “geolocais” profundamente entrelaçadas, marcadas por assimetrias de poder e dependência estrutural. Os minerais críticos — como o lítio, o cobalto, o neodímio, o disprósio e o germânio — são considerados “críticos” não apenas por sua importância estratégica, mas porque sua escassez ou interrupção no fornecimento comprometeria setores inteiros da economia, especialmente os vinculados à alta tecnologia, à defesa e à transição energética. Esses elementos são essenciais para o funcionamento de baterias de íons de lítio, motores de veículos elétricos, drones militares, sensores infravermelhos, torres de comunicação móvel, cabos de fibra óptica, satélites e chips que alimentam servidores e dispositivos inteligentes. Em resposta à dependência da China nesse setor, os EUA lançaram, em 2022, a Minerals Security Partnership, com países como UE, Japão, Canadá, Austrália, Coreia do Sul, Reino Unido, Noruega, França e Alemanha. O objetivo é garantir o suprimento de minerais estratégicos e reduzir a vulnerabilidade das cadeias dominadas por Pequim. 

No entanto, a extração e o refino desses recursos estão concentrados em um número limitado de países, muitos deles localizados no Sul Global — como a República Democrática do Congo. Um exemplo emblemático é a mina de cobre e cobalto, em Kolwezi, onde a Anistia Internacional documentou casos graves de despejos forçados e exploração de mão de obra para viabilizar a extração desses minerais. Esse caso evidencia uma realidade alarmante: embora o continente africano detenha cerca de 30% das reservas mundiais de minerais críticos — essenciais para a produção de dispositivos eletrônicos e infraestruturas de inteligência artificial — ele capta apenas 10% da receita global gerada por esses recursos. 

Esse desequilíbrio aprofunda uma divisão internacional do trabalho digital, em que os impactos sociais e ambientais recaem de forma desproporcional sobre populações periféricas, enquanto o valor agregado e o controle tecnológico permanecem concentrados em polos de poder como o Vale do Silício. Além de sustentar a base material da IA, essas cadeias de suprimento tornaram-se também instrumentos estratégicos de disputa geopolítica entre grandes potências, que competem pelo domínio de tecnologias emergentes e pela consolidação de sua soberania tecnológica. Em última instância, a inteligência artificial não é composta apenas por códigos e algoritmos: ela representa também uma ameaça concreta ao meio ambiente e as comunidades locais que são expostas aos riscos de saúde por essas atividades extrativistas

Sem sociedade, com mercado: os bastidores silenciosos da política nacional de data centers 

Outro elemento opaco desse cenário é a falta de escuta e participação pública nas consultas que precedem decisões com potencial de impactar profundamente a vida das pessoas. A postura do ministro Fernando Haddad, ao se reunir com representantes da Amazon e da Nvidia e sinalizar o envio de uma Medida Provisória com incentivos fiscais para viabilizar a Política Nacional de Data Centers, evidencia um processo conduzido sem a devida transparência e sem debate democrático. Mais do que isso, a forma como grandes empresas de tecnologia é incorporadas à política — apresentadas como oportunidades incontestáveis de desenvolvimento — ignora a necessidade de discutir abertamente quem serão os verdadeiros beneficiados e quem arcará com os custos socioambientais desse projeto. 

O risco é claro: a concentração de lucros em empresas estrangeiras e o retorno à comunidade local tende a ser mínimo, senão nulo, diante da possibilidade concreta de degradação ambiental, exploração de recursos e aprofundamento das desigualdades. É urgente repensar o modelo proposto, garantindo participação pública, transparência e soberania na formulação de políticas que moldarão a infraestrutura tecnológica do país nas próximas décadas. 

O projeto anunciado por Haddad revela um processo discreto em curso desde o início do governo Lula. De acordo com o The Intercept Brasil, mais de 80 reuniões sobre data centers foram realizadas na Esplanada dos Ministérios, envolvendo cerca de 200 autoridades federais. Nenhuma contou com a participação do Ministério do Meio Ambiente — uma ausência alarmante, considerando o impacto ambiental dessas estruturas, especialmente no consumo intensivo de água e energia. 

A exclusão sorrateira do Ministério do Meio Ambiente acende um alerta preocupante, sobretudo porque, nos próprios países-sede das Big Techs, surgem iniciativas legislativas para restringir a expansão descontrolada de data centers. Nos Estados Unidos, por exemplo, projetos de lei em tramitação propõem regras mais rígidas para o setor — como exigências de zoneamento, avaliações obrigatórias de impacto ambiental e diretrizes para o uso de recursos hídricos. Em diversos estados, como Minnesota, comunidades locais têm resistido à instalação de novos empreendimentos, denunciando a sobrecarga das infraestruturas de energia e água. 

Hub ou depósito? A ocupação das Big Techs no Nordeste 

Nesse cenário, o Brasil desponta como destino mais atrativo para esses empreendimentos, justamente por oferecer um ambiente regulatório mais flexível. A deliberada ausência do Ministério do Meio Ambiente nas discussões federais indica uma estratégia de omissão institucional que facilita a proliferação de projetos com alto custo socioambiental — sob a justificativa da atração de investimentos. Outro ponto crítico na abstração da Inteligência Artificial e na formulação da Política Nacional de Data Centers é a baixa geração de empregos em nível nacional. 

A instalação de data centers de Big Techs já está em curso no Brasil, com os primeiros projetos concentrados no Nordeste, especialmente no complexo portuário de Pecém, no Ceará. A região recebeu autorização do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) para conectar essas estruturas à rede elétrica. A escolha do Nordeste tem sido justificada por suas vantagens comparativas: abundância de energia solar e eólica, além do acesso a cabos submarinos, o que reduz a latência e aumenta a estabilidade na transmissão de dados. Com isso, promove-se a ideia de transformar a região em um hub de inovação digital. No entanto, persiste a dúvida: o Nordeste será, de fato, um polo de inovação ou apenas um depósito de infraestrutura pesada com alto potencial de dano ambiental? Essa pergunta é fundamental, pois os data centers não são criações brasileiras — apenas serão alocados em território nacional. Trata-se, portanto, não de inovação local, mas do uso do discurso da inovação para justificar a instalação de empreendimentos que enfrentam crescente resistência nos próprios países de origem das Big Techs. Nos Estados Unidos, por exemplo, comunidades já se mobilizam contra esses projetos devido ao alto consumo de água e energia, à poluição e aos riscos à saúde de moradores vizinhos às instalações. 

Lauro Accioly Filho é doutorando no programa de Pós-Graduação Interinstitucional em Relações Internacionais – San Tiago Dantas e Pesquisador Visitante na American University (Washington, D.C.). 

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